Como numa decisão de campeonato, é impossível contentar os dois times. Os sedentários vão se sentir desconfortáveis, talvez a ponto de repensarem as justificativas de não moverem o corpo além do mínimo necessário, enquanto os praticantes de uma atividade física regular e moderada certamente ficarão com o orgulho fortalecido ao conhecerem os resultados a que chegou o pesquisador Luis Fernando Costa Rosa. Seu trabalho, conduzido no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), revela os mecanismos pelos quais os esportistas estão mais preparados que os adeptos da imobilidade para enfrentar infecções causadas por vírus ou bactérias.
Os amantes do movimento saem na frente também na resistência ao câncer, como indica um dos experimentos desse grupo: ratos que fizeram uma hora de esteira por dia – o equivalente a duas ou três horas para os seres humanos – sobreviveram o dobro do tempo esperado ao tumor de Walker, um dos mais letais, que leva à morte em duas semanas. As análises de sangue retirado tanto de animais de laboratório quanto de esportistas profissionais indicam que modalidades esportivas distintas, como natação ou corrida, determinam respostas diferentes do sistema imunológico. Dependendo da intensidade e dos músculos acionados, pode haver maior ou menor mobilização de células do sangue ou de substâncias chamadas citocinas, que promovem a ação integrada do sistema imune.
As conclusões abrem a possibilidade de indicar os exercícios mais apropriados para doenças específicas, algo feito até agora com base apenas na intuição, sem evidências experimentais. A equipe da USP concluiu, por exemplo, que a natação ajuda a conter a artrite reumatóide, um tipo de inflamação crônica e incurável que se desenvolve nas articulações, com dores e deformidades progressivas. Estima-se que no Brasil existam cerca de 2 milhões de brasileiros com artrite reumatóide, mais comum em mulheres, sobretudo após os 50 anos. Com a cautela típica dos pesquisadores, Rosa alerta, porém, que as conclusões emergiram de experimentos com ratos e ainda é cedo para se pensar em aplicações imediatas em seres humanos.
Suplementos
Mas há uma vertente dessa pesquisa cujos resultados já podem ser adotados. A equipe da USP examinou os suplementos energéticos à base de aminoácidos (as unidades das proteínas) vendidos em lojas muitas vezes vizinhas das academias de ginástica – e a conclusão é que nem sempre fazem tudo o que se imagina que fazem. Para desgosto de quem sonha em ganhar rapidamente o corpo de um Arnold Schwarzenegger, a má notícia é que os aminoácidos em geral não aumentam a massa muscular – o suposto efeito anabolizante. Em compensação, ao menos um deles, a glutamina, atua de fato como uma fonte extra de energia para as células de proliferação rápida – tanto as do sistema imune como as da parede do intestino – durante o exercício físico.
Desse modo, a glutamina satisfaz as necessidades imediatas do organismo, em um processo que se esgota com o fim do exercício, sem que reste nada para tornar os braços ou as pernas mais apresentáveis.Rosa começou a estudar o papel da glutamina nas alterações da resposta imune de atletas profissionais – mais sujeitos a estresse físico e a infecções que os indivíduos sedentários – em 1996. Tinha acabado de chegar de um pós-doutoramento no laboratório de Eric Newsholme, em Oxford, Inglaterra – foi Newsholme o descobridor de que a glutamina é a principal fonte de energia para as células do sistema imunológico. Rosa detalhou esse processo e comprovou que a ação da glutamina é complementar à da principal molécula provedora de energia do organismo, a glicose, ainda que ambas percorram caminhos bioquímicos diferentes, conforme noticiado num artigo publicado em maio de 2002 na revista Nutrition.
“Com essa adaptação metabólica”, diz o pesquisador, “as células ganham versatilidade e produzem energia a partir de uma matéria-prima abundante, a glutamina, enquanto empregam a glicose na síntese de proteínas essenciais ao processo de duplicação celular. “Esse não é o único meio pelo qual o sistema imune ajuda o organismo a produzir energia mais rapidamente. Há apenas dois anos, Bente Pedersen, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, descobriu que a interleucina-6 – uma proteína que ativa as células do sistema imunológico em resposta a inflamações – ajuda a converter as reservas de glicose armazenadas no fígado em glicose pronta para ser queimada pelas células. Esse trabalho estabeleceu outra função estratégica para o sistema imunológico – conjunto de 2 trilhões de células brancas agrupadas sob o nome genérico de leucócitos.
Dispersos na corrente sangüínea e nos tecidos, os leucócitos equivalem a 2% do peso corporal – se pudessem ser reunidos, corresponderiam, em massa, ao fígado ou ao cérebro. Eram vistos apenas como faxineiros do organismo, aptos tão-somente a destruírem vírus, bactérias e células velhas ou doentes, até o trabalho de Pedersen vir à tona e atrair outros cientistas. “Devem existir outras proteínas do sistema imune que regulem a produção de energia”, acredita Rosa. À frente de um dos únicos centros brasileiros de pesquisa sobre exercício e imunidade, o pesquisador da USP toma fôlego para seguir pela trilha aberta pela pesquisadora dinamarquesa, disposto a avaliar a importância desses mecanismos em seres humanos.
Ganhos de imunidade
Quem faz ginástica, nada, corre ou pedala pelo menos três vezes por semana – numa intensidade equivalente a 60 ou 70% da capacidade máxima de consumo de oxigênio, de acordo com a clássica definição de atividade física moderada – tem acesso mais rápido que os amigos do sofá a essas vias alternativas de energia. Mas quem inveja o vigor agora comprovado dos esportistas tem um consolo: bastam dez minutos de subida na escada para usufruir de um benefício da atividade física já comprovado e iniciar o recrutamento de leucócitos.
Meia hora depois do início do exercício, o sangue que corre pelo corpo contém um número de células brancas duas ou até quatro vezes maior que o normal – a proporção depende da intensidade do exercício, fazendo jus ao esforço de quem não pensa duas vezes antes de subir na esteira ou na bicicleta. Mas de onde vieram esses leucócitos que caem na circulação? Eles foram liberados mais intensamente pela medula óssea, onde são produzidos, e retirados das profundezas de órgãos como pulmão, fígado e baço. Só dois dias depois, em média, é que essas células saem das artérias e veias e se espalham pelos músculos e por outros tecidos do corpo – é quando começam a limpar o corpo de vírus, bactérias, toxinas ou mesmo células doentes, cumprindo assim sua missão mais conhecida.
Com o trabalho desse grupo está provado também que o esforço físico moderado amplia a resposta a vacinas. Num experimento feito no ICB com ratos sedentários, a vacina usada contra a tuberculose, a BGC (sigla de Bacillus Calmette-Guerin), aumentou em 69% a quantidade de um tipo de anticorpo chamado imunoglobulina do tipo G (IgG), ao passo que os ratos treinados ganharam quase o dobro (135%) desses anticorpos. A atividade física pode ainda recuperar as perdas do sistema imune causadas pela desnutrição, como indica um trabalho cujas conclusões detalhadas devem sair em breve na revista Clinical Nutrition.
Explorando essas vertentes, os dois pós-doutores, oito doutorandos, dois mestrandos e oito estagiários da equipe de Rosa – todos nadam, correm ou pedalam, embora o coordenador do laboratório negue que a afinidade pelo esporte seja uma exigência curricular – dão sustentação científica ao lugar-comum de que a atividade física faz bem. Mas a busca de explicações para os ganhos de imunidade exige o fôlego de uma maratona. Em março de 2001, Reury Frank Pereira Bacurau, um dos alunos de Rosa, concluiu seu doutoramento mostrando a ação do esforço físico contra o tumor de Walker, que ataca órgãos vitais, como o pulmão, o fígado e o intestino. Normalmente o exercício moderado faz bem ao organismo, e os intensos tendem a ser prejudiciais, por consumirem energia em excesso, mas Bacurau conseguiu demonstrar que, no caso do câncer, tanto um quanto outro tipo podem ser benéficos. Ficou no ar, porém, a dúvida sobre como o organismo seria beneficiado.
Só agora, dois anos depois, é possível explicar os resultados de modo mais consistente. A atividade física parece atuar como um marcador de tempo – os ratos do experimento iam para a esteira sempre às 8 horas da manhã, cinco vezes por semana. A corrida funcionaria assim como a melatonina, o hormônio produzido pela glândula hipófise, na base do cérebro. Por ser liberada em maior quantidade à noite, a melatonina diminui a temperatura do corpo e induz ao sono. Desse modo, atua como um regulador do relógio biológico, regido pela alternância entre claro e escuro. A regularidade com que é liberada – tal qual o exercício feito no mesmo horário – determina o padrão de funcionamento de outros processos do organismo, como a digestão, o ritmo cardíaco e a respiração.
O crescimento de um tumor, em qualquer parte do corpo, desregula a produção de melatonina e desorganiza o ritmo em que o organismo costumava funcionar – é parte da bagunça orgânica conhecida como caquexia. “Quando começa a caquexia, o organismo se perde, mas o exercício pode substituir parcialmente o pico noturno de melatonina”, diz Rosa. “O organismo parece trocar o sinal da melatonina pelo exercício, recuperando ao menos em parte a organização anterior.” Durante o exercício, há uma intensa comunicação entre os sistemas nervoso, hormonal e imune, que são mobilizados de modo a gerar energia o mais rapidamente possível. Os experimentos realizados no laboratório do ICB reforçaram a idéia de que as horas de esteira a que os ratos se submeteram podem ter restabelecido as conexões perdidas com o avanço do tumor.
Alívio à artrite
Pouco a pouco, fortaleceu-se a hipótese de que diferentes exercícios podem ajudar a resolver doenças distintas. Para reduzir as dores nas articulações causadas pela artrite reumatóide, por exemplo, agora se sabe que uma atividade eficaz é a natação, conforme mostrou Francisco Navarro, outro aluno de Rosa, em um trabalho com ratas – esse problema é mais comum em fêmeas. Em comparação com os animais que ficaram longe da água, observou-se uma diminuição de até 40% nos sintomas da artrite reumatóide, medidos por meio de marcadores de dor, como a prostraglandina, nas ratas que nadaram uma hora por dia, cinco vezes por semana. Está também mais claro por que o exercício faz bem para o coração. Em termos gerais, é porque estimula a produção das chamadas citocinas pré-inflamatórias – a exemplo do fator de necrose tumoral alfa – em um processo que conduz à recuperação do coração de ratos infartados, de acordo com os resultados preliminares de um estudo a ser apresentado este mês emCopenhague no Congresso Internacional de Imunologia do Exercício.
No encontro científico da capital da Dinamarca, Rosa vai submeter-se à sabatina de outros especialistas também com os resultados mais recentes sobre desnutrição e atividade física. Sabe-se há pelo menos 30 anos que a falta de comida reduz a produção de células do sistema imune – como, de resto, afeta todo o organismo. No entanto, como a equipe do ICB demonstrou, exercícios moderados revertem essa perda e aumentam a produção de citocinas e a proliferação de linfócitos, um tipo de leucócito, em um processo intermediado pela glutamina.
Produzido principalmente pelas células dos músculos, esse aminoácido também reequilibra os dois tipos de respostas imunes: a celular, acionada no combate a tumores e infecções, e a humoral, promovida pelos anticorpos e adotada contra parasitas e em reações alérgicas. Além das novidades sobre os processos que ocorrem no interior dos leucócitos, os pesquisadores descobriram um fenômeno que chamaram de Paradoxo do Corredor Africano: ratos desnutridos correm mais que os bem nutridos. “Pode ser que corram mais por terem metade do peso que os bem nutridos ou por conseguirem armazenar mais energia, já que passam 23 horas descansando e uma hora em atividade”, diz Rosa. “Na hora de usarem energia, têm mais reserva que os do outro grupo.”
A equipe da USP reforça os resultados acompanhando atletas profissionais, como Rodrigo Tadei e Edmundo Caetano, dois expoentes do triatlon nacional que participam das pesquisas há cinco anos. O estudo, que mostrou a importância da glutamina para resposta imune de atletas como fonte extra de energia, por exemplo, foi feito com 12 triatletas que nadaram 1,5 quilômetro, pedalaram 40 quilômetros e correram outros 10, além de 24 maratonistas que fizeram um percurso de 30 quilômetros em duas horas – um mês antes da competição, esticaram o braço para a primeira retirada de sangue, cuja análise fundamentaria o estudo.
O próprio Rosa deu o sangue pela ciência, literalmente. Foi em janeiro do ano passado, quando ele subiu na bicicleta, seu aluno de doutorado Reinaldo Bassit subiu em outra, e os dois partiram pedalando rumo a Uberaba, no Triângulo Mineiro, a 500 quilômetros de São Paulo. Paravam a cada 12 horas, após terem percorrido250 quilômetros, e doavam um pouco de sangue para a equipe de apoio, que os seguia em uma perua. “Pretendíamos fazer os 1.000 quilômetros de ida e volta, mas fizemos apenas 700 porque na volta começou a chover e a ventar forte, perto de Ribeirão Preto, e tivemos de desistir”, diz o pesquisador-esportista, que foi remador durante 18 anos. Trocou o barco e o remo por uma bicicleta de corrida e ainda acorda todo dia às 4h30 da manhã para pedalar de 80 a 120 quilômetros. Chega ao laboratório às 8 e, sempre que consegue se liberar dos compromissos familiares, termina o dia correndo 12 a 15 quilômetros na volta para casa.
O projeto
Influência do Exercício Imune sobre a Resposta Imunológica de Ratos Desnutridos (nº 01/06655-1); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Luis Fernando Bicudo Pereira Costa Rosa – Instituto de Ciências Biomédicas da USP; Investimento R$ 383.047,25