Em agosto do ano passado, a Universidade de São Paulo (USP) inaugurou um laboratório que reúne, num mesmo ambiente, um conjunto de equipamentos modernos para uso compartilhado em pesquisas em biologia celular e genômica, nos moldes das research facilities existentes em universidades no exterior. Espalhado por 10 salas de um dos prédios do Instituto de Ciências Biomédicas, o Centro de Facilidades de Apoio à Pesquisa da USP (Cefap-USP) disponibiliza a pesquisadores de todo o país serviços de sequenciamento de nova geração, microscopia para estudo de células vivas, separação celular, espectrometria de massa para identificação de macromoléculas, entre outros. Em um ano de atividade, a facility já recebeu cerca de 80 grupos de pesquisa e apoiou estudos em temas como genes de reparo de DNA, busca de drogas contra a malária e plasticidade muscular, entre muitos outros. A maioria dos usuários veio da USP, das universidades Federal de São Paulo (Unifesp), Estadual Paulista (Unesp) e Estadual de Campinas (Unicamp). O Cefap recebeu investimento de cerca de US$ 4 milhões da FAPESP na compra dos equipamentos, enquanto a estrutura do laboratório e a contratação de funcionários couberam à USP. Também houve apoio da própria USP e da Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes) para a compra de equipamentos.
Para obter os serviços de um dos 15 equipamentos do laboratório, os pesquisadores precisam verificar a disponi-bilidade e agendar, no site do Cefap, a data e o horário de uso. Um dos serviços mais procurados é o de microscopia confocal, utilizado por 51 grupos de pesquisa em mais de 180 projetos. Trata-se de uma ferramenta importante para estudos em biologia celular, pois ajuda a localizar proteínas no interior das células e a visualizar a interação entre proteínas. Há dois equipamentos disponíveis neste serviço: um microscópio Zeiss LSM 780-NLO, que utiliza laser para gerar imagens de fluorescência em células, e o InCell Analyzer 2200 GE, próprio para pesquisas que necessitam de uma grande quantidade de imagens. “A ideia por trás dos equipamentos multiusuários é facilitar o acesso a ferramentas de última geração e de difícil aquisição”, diz Carlos Menck, professor do ICB-USP e presidente do Cefap.
Exemplos como o do Cefap vêm se tornando frequentes. No estado de São Paulo, aproximadamente 50 facilities foram criadas a partir de 2009, após o lançamento do segundo edital do Programa Equipamentos Multiusuários (EMU), estabelecido em 2005 pela FAPESP. O programa já concedeu cerca de R$ 250 milhões para compra de equipamentos de uso compartilhado. Em 2009, foram aprovados investimentos em torno de R$ 167 milhões para a aquisição de 250 equipamentos, sendo mais de 200 deles com valor superior a US$ 50 mil.
O modelo das research facilities garante um acesso mais abrangente a tecnologias essenciais para realizar estudos de nível internacional, e também economiza custos, com o compartilhamento de técnicos e insumos. Em países da Europa e nos Estados Unidos, esse esquema faz parte da rotina de muitos grupos de pesquisa. No Brasil, experiências desse tipo eram encontradas em situações isoladas, que serviram de referência às iniciativas mais recentes. O principal exemplo é o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em operação desde 1997. Nele funciona a única fonte de luz síncrotron da América Latina, usada por pesquisadores brasileiros e estrangeiros em estudos da estrutura de proteínas e de materiais. “O Programa Equipamentos Multiusuários está conseguindo, paulatinamente, estimular a cultura de facilities no estado”, avalia José Antonio Brum, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp e coordenador adjunto de Programas Especiais da FAPESP.
Em junho, Brum participou do primeiro Workshop on Multi-User-Equipment and Facilities, que reuniu representantes de facilities instaladas em São Paulo. Segundo ele, muitos pesquisadores ainda resistem em utilizar equipamentos alocados em laboratórios administrados por outros grupos. “Muitos gostariam de ter seu próprio equipamento”, diz. A FAPESP estimula a utilização das facilities nos projetos de pesquisa que financia, a menos que o pesquisador mostre que a aquisição de um novo equipamento é imprescindível.
Alguns números apresentados pelo Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) – que assim como o Laboratório Síncrotron é vinculado ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas – sugerem que diminui a resistência ao uso compartilhado. “A procura por nossos equipamentos e consultoria aumenta a cada ano”, diz Fernando Galembeck, professor aposentado do Instituto de Química da Unicamp e diretor do LNNano. Em seus cinco laboratórios – de Microscopia Eletrônica (LME), de Microfabricação (LMF), de Caracterização e Processamento de Metais (CPM), de Ciência de Superfícies (LCS) e de Metais Nanoestruturados (LMN) – já foram executados cerca de 2.700 projetos de pesquisa até 2013. Só o LME, o mais antigo do LNNano, já apoiou mais de 2 mil projetos. Em 2001, haviam sido submetidos ao LME 86 projetos. Em 2012 o número havia aumentado para 207. Esse número não aumentou nos últimos três anos, porque a utilização da capacidade instalada é de praticamente 100%. Fundado em 1999, o LME integra o LNNano desde 2011.
Segundo Galembeck, as facilities cumprem um papel importante no sistema de ciência e tecnologia, que é o de acelerar o andamento das pesquisas. É cada vez maior a utilização das instalações do LNNano por pesquisadores que não pertencem aos quadros da instituição: no LCS, foram 50% em 2012; 70% em 2013 e quase 80% em maio de 2014. Nesse período, a maior parte dos usuários externos veio da Unicamp (13%), Unesp (10%) e USP (9%). A maior demanda é por serviços de microscopia eletrônica e de sondas, utilizadas para a caracterização de substâncias e desenvolvimento de novos materiais em projetos acadêmicos e empresariais. A análise da estrutura de polímeros, uma das últimas etapas do doutorado de Rafael Bergamo Trinca no Instituto de Química da Unicamp, por exemplo, não poderia ter sido feita sem a ajuda de um Nanoscope III, microscópio de força atômica que fornece imagens tridimensionais da superfície de materiais em escala nanométrica. A orientadora de Trinca, a professora Maria Isabel Felisberti, sugeriu que ele procurasse o LNNano, que não apenas dispõe do equipamento como também oferece treinamento para sua utilização. “Aprendi a usar o microscópio e a obter dele os melhores resultados”, diz Trinca. Sua pesquisa, apoiada pela FAPESP, busca obter membranas biocompatíveis capazes, por exemplo, de liberar fármacos a partir de certos estímulos, como o aumento de temperatura.
A formação dos chamados superusuários, isto é, pesquisadores que dominam o uso de equipamentos e podem utilizá-los sem o auxílio de técnicos, é algo que o Cefap, da USP, também busca desenvolver. “Temos limitação de especialistas para trabalhar nos laboratórios. Uma solução é capacitar os usuários”, explica Menck. Mas a maior parte do trabalho realizado no centro ainda é feita pelos técnicos, que recebem amostras enviadas por pesquisadores. “A consolidação dessa cultura de facilities no país é lenta, porque, entre outros fatores, ainda não há pessoal suficiente para operar os equipamentos”, avalia Menck. “Além disso, muitos coordenadores de facilities não podem dedicar-se exclusivamente à gestão dos laboratórios, porque também lideram pesquisas e orientam alunos.”
Para evitar essa situação, o Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho (LaCTAD) da Unicamp – uma facility induzida pela FAPESP e inaugurada no ano passado – criou o cargo de gerente-geral com dedicação exclusiva à administração do laboratório, ocupado pela química Sandra Krauchenco. “A gestão precisa ser profissional”, diz Paulo Arruda, professor do Instituto de Biologia da Unicamp e membro do conselho gestor do LaCTAD, criado com o objetivo de dar suporte a pesquisas em genômica, bioinformática, proteômica e biologia celular. A FAPESP investiu R$ 6 milhões na compra dos equipamentos para o laboratório, no âmbito do EMU.
Para trabalhos na área de genômica, o LaCTAD conta com três sequenciadores. No campo da proteômica, um dos equipamentos realiza cromatografia líquida para análise e purificação de proteínas, e há também um calorímetro, utilizado para determinar parâmetros termodinâmicos de interações bioquímicas (ver Pesquisa FAPESP nº 206). Em biologia celular, o serviço mais demandado é o de microscopia confocal, que à diferença dos demais equipamentos exige a presença do usuário no momento da análise. “No caso da microscopia, o usuário é quem observa a imagem e decide qual parte da célula será observada”, explica Sandra Krauchenco.
Uma peculiaridade do LaCTAD em relação a outros laboratórios é o apoio aos pesquisadores desde o planejamento e a preparação das amostras até o processamento e análise dos dados obtidos. No exterior, se o usuário não souber solicitar com propriedade o que ele quer extrair da amostra, o experimento pode dar errado, porque a facility segue à risca o que o pesquisador pede. “Aqui procuramos o pesquisador e pensamos em conjunto”, diz Arruda.
Antes da criação do LaCTAD, membros do conselho visitaram laboratórios nos Estados Unidos para conhecer o modelo adotado em instituições daquele país. Uma dessas facilities foi a de sequenciamento de DNA e RNA da Universidade da Carolina do Norte (UCN), coordenada por Piotr Mieczkowski. Uma das missões da facility da UCN é estimular pesquisas que desenvolvam técnicas para ser implementadas em seus serviços. Essa característica chamou a atenção da equipe do LaCTAD. “Queremos investir nessa vocação de pesquisa, para melhorar o uso de algumas técnicas e criar outras”, diz Paulo Arruda. Na palestra que realizou em São Paulo, Mieczkowski ressaltou o ritmo “industrial” com que o laboratório opera: em 2013 foram realizados 6 mil sequenciamentos. “O desenvolvimento de uma facility deve estar associado a grandes e estáveis projetos de pesquisa”, conclui Mieczkowski.
Outra facility que se destaca no exterior é a da Escola de Medicina da Universidade Duke. Lá estão à disposição mais de 70 laboratórios multiusuários espalhados pelo campus. Cada um tem um site próprio, no qual o usuário pode solicitar o serviço e consultar os preços cobrados. A Faculdade de Medicina da USP também segue um modelo descentralizado, no qual os equipamentos estão disponíveis em diferentes lugares. Mas a coordenação está centralizada no programa Rede Premium de Equipamentos Multiusuários, que propicia acesso a pesquisadores da instituição e de fora dela a tecnologias da pesquisa biomédica. Um dos serviços mais procurados é o de microscopia confocal, cujo equipamento, um LSM 510 Meta, da Carl Zeiss, foi obtido com financiamento da FAPESP.
Em alguns casos, a facility pode ser um ponto de encontro para estabelecer parcerias científicas. No Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da USP, um dos equipamentos, um espectrômetro de massas de alta resolução, foi o pivô na aproximação de dois grupos de pesquisa. O equipamento foi comprado em 2013, com recursos da FAPESP, para o grupo de Emanuel Carrilho, professor do IQSC que estuda biomarcadores para diagnóstico de câncer e de doenças como a malária. Dois professores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, Vitor Marcel Faça e José César Rosa, que também trabalham com pesquisas proteômicas em câncer, pediram abertura para usar o equipamento, já que não faziam parte da equipe original de usuários que submeteram o projeto à Fapesp. O que inicialmente era apenas prestação de serviço converteu-se em colaboração. “Vimos que tínhamos objetivos em comum”, diz Carrilho. O espectrômetro, um LTQ Orbitrap da marca Velos, custou US$ 700 mil e está acoplado a um cromatógrafo líquido de alto desempenho, usado para o isolamento de proteínas.
O equipamento foi importante numa pesquisa coordenada por Daniel Rodrigues Cardoso, do IQSC-USP, em parceria com a Embrapa e a Universidade de Copenhagen, na Dinamarca. Por meio da adição de extrato de erva-mate na ração de gado, os pesquisadores chegaram a uma carne vermelha mais macia e com prazo de validade maior, efeito atribuído à presença de antioxidantes no mate. O espectrômetro está sendo usado para compreender as alterações no metabolismo animal. “Analisamos amostras de carne e de mate para identificar as variações metabólicas”, diz Cardoso.
O Laboratório de Caracterização Estrutural (LCE) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) dedica-se ativamente à formação de microscopistas, como forma de otimizar a utilização de seus equipamentos, além de prestar serviços. “Nosso modelo é baseado na formação de microscopistas, porque não temos como disponibilizar oito horas por dia de técnicos operando cada um de nossos oito microscópios eletrônicos e de sonda”, explica Walter Botta Filho, coordenador do LCE. “Queremos que os usuários regulares dependam minimamente de auxílio para operar os equipamentos, o que flexibiliza os horários de uso”, diz. O conceito de facilities não é novo no Departamento de Engenharia de Materiais, onde o LCE é abrigado. A partir de 1976, o laboratório de microscopia e raio X da unidade passou a ser aberto a pesquisadores de outras instituições, o que serviu de base para, 10 anos depois, o LCE sistematizar o modelo para outros serviços. Entre 2012 e maio de 2014, 1.018 pesquisadores utilizaram a facility e 419 deles foram habilitados a operar equipamentos sozinhos. Botta conta que no momento do agendamento para utilização de um equipamento o usuário pode optar por operá-lo, após passar pelo treinamento, ou solicitar o auxílio de um técnico. De todo modo, é cobrado o tempo de utilização do equipamento.
José Antonio Brum acredita que vários modelos de facilities vão coexistir em São Paulo. “Cada laboratório tem suas próprias dificuldades e demandas, o que resulta numa variedade de modelos. Isso não é necessariamente ruim”, diz. Outro desafio é aprender a gerenciar recursos. Segundo ele, muitos laboratórios não conseguem estimar corretamente os custos de manutenção e mão de obra e depreciação dos equipamentos, o que prejudica a definição dos preços cobrados pelos serviços. O workshop realizado pela FAPESP discutiu as circunstâncias em que as facilities devem cobrar pelo uso de equipamentos. “O ideal é cobrar sempre”, defende Menck, do Cefap. “É uma forma de valorizar o serviço. O problema é que a cultura da pesquisa brasileira não vai nessa direção”, completa. No Cefap, o preço para a utilização do microscópio confocal é de R$ 200 para projetos patrocinados por órgãos governamentais e de R$ 275 para os financiados por outras fontes. Menck diz que, em geral, o valor foi definido levando em conta principalmente os gastos com insumos. Os recursos obtidos pela cobrança dos usuários não são suficientes para pagar contratos de manutenção de algumas máquinas, que chegam a custar R$ 150 mil por ano cada uma. “Se incluíssemos outros gastos, o valor cobrado não seria competitivo”, diz Menck.
A situação é diferente no LNNano, onde os serviços não são cobrados de pesquisadores. O laboratório é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que todos os anos repassa recursos para cobrir gastos com manutenção de equipamentos, salários e insumos. “Cobramos apenas de empresas, que nos procuram em projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e prestação de serviços”, diz Fernando Galembeck. Nem sempre as facilities oferecem preços competitivos. “Quando o pesquisador brasileiro tem colaboração no exterior, ele consegue pagar o preço de usuário interno na facility da universidade parceira, que costuma ser mais barato do que o daqui”, explica Sandra Krauchenco, do LaCTAD. “Quando o usuário não tem colaboração internacional, aí conseguimos competir de igual para igual”, diz.
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