Admiradas e temidas, misteriosas e sedutoras, as serpentes desafiam os herpetólogos (especialistas em répteis) e paleontólogos, que não conseguem encontrar a resposta para uma velha pergunta: qual é, afinal, a origem desses animais? O debate é acalorado. Em 1997, o canadense Michael Caldwell e o australiano Michael Lee acreditavam ter desvendado o enigma. Num artigo publicado naquele ano na Nature, analisaram dois fósseis de cobras com patas posteriores, que viveram há 95 milhões de anos, encontrados em Israel. A conclusão: eram espécies originárias do ambiente marinho e o possível elo entre os mosassauros – grandes lagartos que habitaram os mares, na época dos dinossauros – e as serpentes, um grupo de cobras formado por cerca de 3.000 espécies.
O brasileiro Hussam Zaher torceu o nariz assim que leu o trabalho. Pesquisador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), ele jogou um balde de água fria nos entusiastas da idéia de que a espécie estudada, a Pachyrhachis problematicus, seria o ancestral comum de todas as cobras e tivesse vindo do mar. Seus estudos, que se transformaram em onze artigos, inclusive um publicado em 2000 na Science, sustentam: a Pachyrhachis não é o tão aguardado elo perdido. Seria, sim, um animal próximo de um grupo de cobras atuais, as macrostomatas, como a cascavel (Crotalus durissus), a jibóia (Boa constrictor) e a píton (Python reticulatus). “Essa polêmica ajudou a refinar o conhecimento morfológico sobre as serpentes e mostrou que a evolução desse grupo de animais é bem mais complexa do que se imaginava, embora a questão sobre a origem das serpentes continue sem resposta”, garante Zaher.
O debate sobre a origem das cobras, alimentado por meio de artigos científicos com argumentos minuciosamente construídos, faz os especialistas ora aplaudirem uma idéia, ora hesitarem nas conclusões que pareciam assentadas. De modo mais amplo, lembra que o processo evolutivo das espécies em geral não tem uma direção predeterminada nem leva necessariamente a organismos mais avançados – características como as patas, aparentemente essenciais, podem surgir e, mais tarde, simplesmente desaparecer.
As patas dianteiras das cobras já haviam desaparecido, milhões de anos antes, por mecanismos distintos dos que levaram à eliminação das patas posteriores. De acordo com estudos publicados em 2000 por pesquisadores ingleses, os membros da frente se foram de modo radical, sem deixar rastros, devido ao desligamento de um grupo de genes reguladores. Já o desaparecimento das patas de trás se deve à perda de uma estrutura do embrião chamada crista apical ectodérmica. As patas traseiras atrofiam e desaparecem se não são usadas, como se o organismo decidisse não mais direcionar energia para manter essa parte do corpo que se mostrou desnecessária – num processo similar ao verificado com peixes de cavernas, quase todos com olhos atrofiados ou mesmo ausentes.
Segundo Zaher, no período Cretáceo, de 144 a 65 milhões de anos atrás, todas a serpentes tinham patas posteriores, que desapareceram paulatinamente, à medida que as linhagens foram evoluindo até os dias de hoje, e não de uma só vez, a partir de um ancestral que ainda mantinha vestígios de patas. Com certeza, essas patas não eram usadas para locomoção ou sustentação, por serem muito pequenas. Uma hipótese é que poderiam cumprir algum tipo de função durante o ato sexual.
A história da Pachyrhachis, a primeira cobra com patas, começa no final da década de 60, quando o fóssil foi descoberto em Ein Yabrud, sítio arqueológico perto de Jerusalém, em Israel. Com cerca de 95 milhões de anos, a intrigante serpente com patas foi inicialmente estudada pelo paleontólogo judeu de origem austríaca George Haas, um dos grandes nomes da herpetologia daquela época.
Por um momento, no final dos anos 70, Haas teve em mãos dois fósseis de cobras com patas. O primeiro tinha crânio, mas estava sem a cauda. O segundo apresentava características inversas: a cauda, da qual saíam as patas posteriores, estava preservada, mas o crânio é que não estava bem visível. Embora os dois animais guardassem enorme semelhança e estivessem muito próximos das serpentes, Haas preferiu não arriscar e descreveu duas espécies diferentes: a que tinha patas foi classificada como Ophiomorphus colberti e associada a um lagarto marinho da linhagem dos dolichossauros. A outra, uma cobra, recebeu o nome de Pachyrhachis problematicus – uma clara alusão às interrogações que deixava.
Os fósseis passaram mais de 20 anos engavetados na Universidade Hebraica de Jerusalém, até que Caldwell e Lee, já na década de 90, resgataram o assunto. “Aqueles animais eram supostamente os ancestrais das cobras, mas ninguém ainda os tinha estudado com os métodos adequados, como precisava ser feito”, conta Lee, da Universidade de Adelaide, na Austrália. Os dois paleontólogos não precisaram de muito tempo para concluir que Haas, falecido em 1981, tinha sido cauteloso demais. Os dois fósseis descritos, na verdade, pertenciam a uma única espécie – a Pachyrhachis. “Passamos a ter um só animal”, afirma Zaher. “Era uma cobra com patas.” As concordâncias param aí.
Caldwell e Lee retomaram as teses do paleontólogo norte-americano Edward Drinker Cope, que viveu no século 19. Para ele, as serpentes haviam se originado no ambiente marinho – e seriam herdeiras dos mosassauros. O local onde foram encontrados os fósseis da Pachyrhachis tornava essa possibilidade bastante viável. A presença das patas posteriores fechava o círculo. Foi esse o quadro que levou os dois paleontólogos a afirmar, no artigo de abril de 1997 na Nature, que havia sido encontrado o elo perdido entre as cobras e os lagartos marinhos. “A Pachyrhachis oferece evidências adicionais sobre as afinidades existentes entre os mosassauros e as serpentes, trazendo à tona novas informações sobre as características dos ofídios primitivos”, diz Caldwell, hoje na Universidade de Alberta, no Canadá.
“Assim que li o trabalho, percebi uma série de inconsistências”, contesta Zaher. Em primeiro lugar, diz ele, não foram consideradas algumas características cranianas dos animais, a seu ver decisivas, como a presença de dentição no pálato, um dos ossos do céu da boca, e um osso supratemporal que se alongava para trás do crânio. Além disso, a análise teria deixado de fora uma espécie primitiva e fundamental para se compreender a evolução desses animais: a Dinilysia patagonica, serpente já extinta do Cretáceo Superior argentino. Por fim, Caldwell e Lee teriam resumido toda a diversidade atual de cobras em apenas dois grupos, Scolecophidia e Alethinophidia, passando ao largo das macrostomatas, que ocupam uma posição superior na linha evolutiva das serpentes – e com as quais, como se veria, a Pachyrhachis guarda significativas semelhanças.
As críticas tornaram-se mais contundentes quando Zaher soube de um terceiro fóssil de cobra com patas que teria sido descoberto junto com a Pachyrhachis, também em Ein Yabrud. Só dois anos depois, em 1999, Zaher conseguiu autorização da Universidade Hebraica de Jerusalém para estudar o bicho. Nessa época, ele já trabalhava com Olivier Rieppel, curador de fósseis do Field Museum de Chicago, Estados Unidos, que em dezembro de 1999 trouxe à USP uma cópia fiel da nova cobra com patas. Rieppel e Zaher analisaram o fóssil minuciosamente, com base em conceitos modernos de anatomia comparada e biologia evolutiva. “É no crânio que se encontra a chave para a compreensão do problema”, afirma o pesquisador da USP.
Essa linha de raciocínio mostrou que se tratava de uma nova espécie: a dentição especializada no céu da boca e na mandíbula, somada à ausência de sínfise, o ponto de união firme entre os dois ossos dentários, que garante mais mobilidade à mandíbula, representa uma novidade evolutiva de porte na história do grupo e confere às serpentes habilidade maior na captura de presas de médio e grande porte. Segundo Zaher, essas são características das macrostomatas, serpentes como a cascavel, a jibóia e a píton, que desenvolveram a capacidade de se alimentar de presas inteiras, bem maiores que o diâmetro de suas cabeças. Uma análise retrospectiva confirmou: também se vêem esses elementos, de maneira evidente, na Pachyrhachis.
Para não deixar dúvidas, Zaher faz comparações com serpentes mais distantes: nas Scolecophidia, o grupo mais primitivo de cobras conhecido até hoje, cujos representantes externamente se parecem com minhocas, a realidade é inversa. Nelas, os movimentos do focinho são limitados, a mandíbula é curta e não há dentes no céu da boca. São animais adaptados à microfagia – alimentação de presas pequenas como formigas e cupins.
Zaher e Rieppel descreveram na Science em março de 2000 a nova espécie de cobra com patas, chamada de Haasiophis terrasanctus em homenagem a Haas e à região onde foi encontrada. No artigo, são categóricos: “Pachyrhachis e Haasiophis são serpentes derivadas, próximas evolutivamente das macrostomatas, e de maneira alguma podem ser associadas ao momento histórico em que esses animais se originaram”. Caldwell rebate: “Eles admitem que descreveram apenas os ossos do crânio, ignorando outras partes do fóssil. Esse é um procedimento extremamente limitado.”
Enquanto corre o debate, Zaher amplia a coleção de grupos atuais e de fósseis de cobras, já com centenas de exemplares, sobre a qual assenta a busca das relações de parentesco entre as famílias e dos episódios evolutivos como a redução das patas. Para ele, a procura pelo elo perdido, que desvendaria a história sobre a origem das serpentes, ainda não terminou. “Minha intuição diz que o mais forte candidato a cumprir esse papel é um animal fossorial”, comenta. “Com o tempo, as evidências científicas dirão se tenho razão.”
O Projeto
A fauna de microvertebrados tetrápodes do Cretáceo Superior nas regiões de Marília e Presidente Prudente (SP): biodiversidade, filogenia e tafonomia; Modalidade Linha regular de auxílio a projeto de pesquisa;
Coordenador Hussam El Dine Zaher – Instituto de Biociências/USP;
Investimento R$ 124.270,00