Imagine que, para expulsar um inimigo de seu território, um exército empregue tanta força e selvageria que acaba por destruir também a própria população que desejava defender. Isso é basicamente o que acontece quando alguém sofre de sepse. Trata-se de uma reação inflamatória aguda causada pelo próprio sistema imunológico, ao reagir a uma infecção. Conhecida também como septicemia (termo que está caindo em desuso), a doença costuma ser fatal, afetando múltiplos órgãos e levando-os à exaustão em pouco tempo.
Aos poucos, os cientistas têm decifrado o que acontece com o corpo quando há essa reação imunológica exagerada e desesperada. Isso está levando ao desenvolvimento de novos tratamentos, que têm sido eficazes em aumentar a sobrevida dos pacientes. Contudo, ainda continua sendo muito difícil salvá-los, uma vez que a sepse se instaura.
“Os pacientes seguem morrendo, mas não nas fases iniciais da infecção”, afirma José Carlos Alves Filho, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. “O que estamos vendo é que a fase tardia é bem diferente da fase inicial.”
Alves Filho faz parte do grupo liderado por Fernando de Queiróz Cunha, que trabalha há anos na decifração de vários dos mistérios da sepse em escala biomolecular. A equipe se concentra nos mecanismos que ocorrem nas células e tecidos para levar o corpo a essa reação deletéria ao identificar a presença de um patógeno. E eles descobriram que a sepse, quando o paciente sobrevive por tempo suficiente, leva a um desligamento do sistema imunológico.
Doença da UTI
Não é toda infecção que causa a sepse. Na verdade, a maioria das invasões de bactérias no organismo é repelida com relativa facilidade pelo sistema imunológico. A infecção e a inflamação generalizadas só costumam acontecer quando há algo errado com a rede de defesa do corpo. Por isso, normalmente a sepse acomete quem já está hospitalizado, sobretudo nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
“Normalmente é uma infecção secundária que leva à morte dos pacientes”, diz Alves Filho. “Primeiro a pessoa é internada com uma infecção, é tratada, e aí pega uma segunda, no próprio hospital.”
Quando o quadro se instala, o resultado é devastador. Nos Estados Unidos, por exemplo, é a segunda causa de morte nas UTIs. São mais de 700 mil casos por ano, e cerca de 30% deles levam à morte. No mundo inteiro, são 18 milhões de ocorrências anuais. Por essa razão, o tema se tornou um exemplo clássico de um novo ramo de pesquisa denominado “medicina translacional”.
É o nome que se dá a uma linha de estudos que nasce da necessidade imediata dos médicos, volta à bancada do laboratório e então tenta retornar à origem, trazendo novas soluções. No caso, Queiróz Cunha e Alves Filho buscam, ao desvendar os enigmas moleculares da sepse, identificar intervenções medicamentosas eficazes para cortar o processo antes que ele leve à fatalidade.
No laboratório, a sepse é induzida em roedores, tentando de certo modo mimetizar o que acontece nos hospitais. Então, primeiro os animais são submetidos a uma perfuração intestinal, que causa a infecção primária. Surge uma peritonite. Depois, os pesquisadores provocam o ataque secundário – uma pneumonia. O resultado é um rato acometido pela sepse. A partir daí começam as investigações do que está havendo e como conter o problema.
Sistema imune
Na sepse, já está claro há mais de uma década que o grande problema não é a infecção em si, mas a resposta imunológica exagerada, que não só fracassa em conter as bactérias invasoras como se espalha pelo corpo de forma generalizada e provoca falência múltipla dos órgãos. Mas, ao intervir nesse problema, trata-se de uma escolha de Sofia: se os médicos atacam o sistema imune, a infecção corre desimpedida. Se deixam que ele atue, ele mesmo destrói o organismo.
É preciso, portanto, uma estratégia mais fina, que manipule de forma mais sutil o sistema sem desligar nada. É na busca desse conhecimento que está o grupo de Queiróz Cunha.
Eles descobriram, por exemplo, que o óxido nítrico é um componente importante da rede de relações químicas que levam à sepse. Em circunstâncias normais, ele é usado pelos leucócitos (em particular por uma classe deles, os neutrófilos) para atacar e destruir as bactérias. Além disso, o óxido nítrico tem um papel importante ao induzir o relaxamento vascular. Ele permite um aumento no volume de sangue em circulação e leva mais células de defesa ao foco infeccioso.
Contudo, é como bem sabe a sabedoria médica, a diferença entre o remédio e o veneno costuma estar na dose. Num quadro de sepse, a produção de óxido nítrico vai às alturas. Chega a ser mil vezes maior que o normal. Aí a pressão arterial cai drasticamente. E o pior: qualquer tentativa de inibir a produção da substância no corpo do paciente elimina a principal arma dos leucócitos contra as bactérias invasoras.
Para completar o drama, Queiróz Cunha e seus colegas descobriram que óxido nítrico em excesso também inibe a migração das células de defesa, o que ajuda a explicar como o quadro se torna generalizado. Os detalhes desse processo foram publicados em artigos nas revistas científicas Shock, Blood e Critical Care Medicine, em 2006. No ano seguinte, o grupo demonstrou por que o óxido nítrico inibe a ação dos neutrófilos: eles deixam de expressar certos receptores que os tornam sensíveis à inflamação. A migração das células é interrompida, e é como se o exército de defesa do organismo declarasse unilateralmente um cessar-fogo. Enquanto o inimigo ainda avança.
Coração flácido
Um desenvolvimento interessante aconteceu quando a linha de pesquisa de Queiróz Cunha encontrou a de Marcos Rossi, patologista da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. Rossi havia percebido, ao longo de muitos anos realizando necrópsias em pacientes que morreram com sepse, que o coração deles havia passado por mudanças radicais. “Era diferente, meio flácido, o que indicava que em vida havia apresentado problema de funcionamento”, diz Rossi, que contou com um projeto de equipamentos multiusuários no valor de R$ 850 mil.
Rossi e Cunha investigaram o que levava a essa devastação do músculo cardíaco. Adotaram o camundongo como modelo animal para os estudos e constataram que, sob a sepse, havia uma redução expressiva na quantidade de proteínas responsáveis por manter as células do coração fortemente unidas. Como resultado, as células se desconectavam umas das outras.
Mais uma vez, o óxido nítrico em excesso apareceu como o vilão. Liberado em excesso durante o processo inflamatório, ele danifica a parede das células cardíacas, tornando-as mais permeáveis ao cálcio. Em consequência, o excesso de óxido nítrico leva à morte celular. Quanto mais células são afetadas, mais se reduz a capacidade de o coração bombear sangue.
O achado foi publicado em 2010 na revista científica Shock e levou a uma estratégia promissora. Como diversos medicamentos bloqueiam a absorção do cálcio e são usados no controle da pressão arterial e na regulação do ritmo cardíaco, Rossi e Cunha tiveram a ideia de tentar usá-los, em animais, para ver se havia como protegê-los da sepse. Os resultados, em colaboração com pequisadores do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, foram muito expressivos.
O grupo demonstrou conclusivamente que há um aumento dramático de cálcio nas células cardíacas quando o organismo passa por um quadro de sepse. Apenas dois minutos depois da instituição do choque séptico, o cálcio aumenta 60%. Passadas 24 horas, ele continua aumentado em 20%. Mas, quando há tratamento, a história é outra.
“Mostramos que há extrema melhora quando os animais são tratados com bloqueadores de cálcio”, diz Rossi. Enquanto no grupo controle (camundongos sem nenhum tratamento), após 72 horas, a mortalidade era de 90%, nos tratados o número caiu para 50%. “Alguém pode dizer, ‘ainda assim morreu muito’. Mas o ponto é que melhoramos a sobrevida em cinco vezes.”
O principal problema é que a sepse é um quadro generalizado. Ela afeta drasticamente o coração, mas também outros órgãos. Os pesquisadores desenvolveram um meio de proteger o músculo cardíaco, mas ainda assim, em boa parte dos casos, os animais continuam a morrer – desta vez pela falência de outro órgão.
Volta ao hospital
Para Rossi, ainda há muito que aprender sobre os mecanismos da sepse. Entretanto, ele vê o trabalho específico com bloqueadores de cálcio pronto para testes clínicos. Uma vez que essas drogas já foram aprovadas para alguns usos, seria possível encurtar bastante o tempo de teste para convertê-los numa ferramenta útil na proteção ao coração durante um quadro de sepse – o que, por si só, já reduziria significativamente a mortalidade, pelo menos na fase inicial da doença.
Apesar desse potencial, nenhum grupo especializado em pesquisa com seres humanos o procurou para colocar a estratégia em prática. “Fala-se muito na tal medicina translacional, mas não se pratica. A gente conduz a coisa no laboratório, mas falta quem pegue dali e leve de volta ao hospital. E no Brasil são ainda mais temerosos”, critica.
Enquanto a transferência não acontece, Rossi e Cunha continuam trabalhando para desvendar todos os mecanismos moleculares envolvidos nesse conflito do organismo contra si mesmo. E seus estudos seguem apresentando potenciais alvos para intervenção médica no grande desafio que é vencer a sepse.
Os Projetos
1. Mediadores envolvidos na gênese da dor e na migração de leucócitos e na sepse (nº 2007/51247-5) (2007-2012); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Sergio Henrique Ferreira – FMRP-USP; Investimento R$ 2.303.227,35
2. Sepse e choque séptico: alterações funcionais e morfológicas do coração: estudo experimental em camundongos (nº 2004/14578-5) (2005-2007); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Sergio Henrique Ferreira – FMRP-USP; Investimento R$ 153.565,78
3. Avaliação in vitro da expressão de distrofina em cardiomiócitos submetidos a diferentes estímulos (nº 2009/53544-2) (2010-2012); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Marcos Antonio Rossi – FMRP-USP; Investimento R$ 310.920,30
Artigos científicos
ROSSI, M. A. et al. Myocardial structural changes in long-term human sepsis/septic shock may be responsible for cardiac dysfunction. Shock. v. 27, n. 1, p. 1-18, 2007.
CELES, M. R. et al. Disruption of sarcolemmal dystrophin and beta-dystroglycan may be a potential mechanism for myocardial dysfunction in severe sepsis. Laboratory Investigation. v. 90, p. 531-42, 2010.
CELES, M. R. et al. Reduction of gap and adherens junction proteins and intercalated disc structural remodeling in the hearts of mice submitted to severe cecal ligation and puncture sepsis. Critical Care Medicine. v. 9, p. 2176-85, 2007.
CELES, M. R. et al. Increased sarcolemmal permeability as an early event in experimental septic cardiomyopathy: a potential role for oxidative damage to lipids and proteins. Shock. v. 33, n. 3, p. 322-31, 2010.
De nosso arquivo
Fora de controle – Edição nº 172 – junho de 2010
Resposta controlada – Edição nº 160 – junho de 2009