Darwin, além de talento, teve sorte. Ao chegar ao arquipélago de Galápagos, no Pacífico, encontrou uma rica variedade de tartarugas e aves vivendo sob condições ambientais peculiares, como o isolamento geográfico e a dieta, que devem ter influenciado fortemente sua evolução ao longo de milhões de anos. As prováveis causas do fato de haver tantos animais tão semelhantes entre si – as aves, por exemplo, com o bico mais curto ou mais longo, dependendo do que comiam – pareciam claras. Mas o mundo não é só como Galápagos. Os biólogos de hoje, mesmo estudando espaços ricos em biodiversidade como a mata atlântica, nem sempre encontram histórias evolutivas e espécies próximas com diferenças tão claras entre si. Em compensação, ao trabalhar com trechos de DNA conhecidos como marcadores moleculares, agora eles podem encontrar as bases genéticas da diversificação das espécies. Um mecanismo de formação de novas espécies que vem ganhando reconhecimento entre os pesquisadores é a possibilidade de espécies de plantas e animais geneticamente próximos entre si cruzarem naturalmente e gerarem híbridos férteis.
Antes essa ideia era pouco aceitável porque, em geral, espécies diferentes apresentam número distinto de cromossomos, estruturas no interior das células que contêm os genes. Essa diferença poderia inviabilizar o desenvolvimento do embrião, já que cada cromossomo que veio do macho precisa estar alinhado com um equivalente que veio da fêmea na hora de a célula fertilizada se dividir. Sem esse alinhamento, na maior parte das vezes a célula não se reproduz e morre. Mas há exceções, que parecem ser menos raras do que se imaginava. O cruzamento entre plantas – ou animais – de espécies próximas pode gerar seres que, apesar de híbridos, são férteis, ainda que na fase inicial de multiplicação celular alguns cromossomos não encontrem o respectivo par. Se tiverem tempo e condições ambientais favoráveis, esses híbridos podem gerar espécies diferentes das que lhes deram origem.
Hoje a palavra “híbrido” não define só seres estéreis como a mula, resultado do cruzamento de jumento com égua, mas também seres férteis como as orquídeas da mata atlântica mantidas em um dos viveiros do Instituto de Botânica de São Paulo. O híbrido, com 38 cromossomos, resulta do cruzamento natural entre duas espécies selvagens, Epidendrum fulgens, com 24 cromossomos, e Epidendrum puniceolutem, com 52. Externamente, as diferenças são sutis. As flores das chamadas plantas parentais são vermelhas ou amarelas. Já as das híbridas podem ser alaranjadas com pontos vermelhos.
Só a genética não basta para reconhecer os híbridos férteis. Eles agora são identificados com relativa facilidade porque, além de comparar o número de cromossomos, os especialistas examinam, inicialmente, os aspectos mais visíveis dos ambientes onde os híbridos e as espécies que lhes deram origem vivem. Depois entram na história da paisagem, estudando os mapas geológicos e de variações climáticas, que indicam se deslocamentos de blocos de rochas, tremores de terra ou variações prolongadas de chuva ou temperatura aproximaram ou afastaram populações de plantas ou animais, beneficiando ou não a formação de novas espécies.
No caso das orquídeas, os híbridos viviam tanto na restinga, ambiente típico da E. puniceolutem, quanto nas dunas, onde E. fulgens é encontrada. “Essa versatilidade sugere que algumas regiões do genoma podem ser trocadas entre essas espécies, conferindo ao híbrido capacidade maior de aproveitamento do hábitat”, diz o botânico Fábio Pinheiro, pesquisador associado do Instituto de Botânica de São Paulo. “Provavelmente a hibridação natural é uma das explicações da elevada diversificação do gênero Epidendrum, constituído por cerca de 1.500 espécies.”
Por precaução, em uma apresentação no Kew Botanic Gardens, de Londres, em maio de 2009, Pinheiro não mencionou o número de cromossomos dos híbridos, com medo das reações. “Mas os especialistas em orquídeas do Kew perguntaram e, quando viram, não acreditaram. Disseram que havia algo errado, mas depois aceitaram”, conta. A visão predominante é que espécies diferentes não cruzam naturalmente e que os híbridos que porventura se formem são estéreis. O argumento usado é que as células germinativas não conseguiriam formar descendentes viáveis.
No entanto, a maioria das plantas resulta de hibridações naturais ou induzidas entre espécies próximas, lembra Fábio de Barros, coordenador do projeto no Instituto de Botânica. A hibridação induzida é o que faz aparecerem espécies únicas de orquídeas e de plantas usadas na alimentação, como o milho e a cana-de-açúcar. Normalmente os híbridos apresentam alguma vantagem – no caso dos alimentos, são mais resistentes a doenças e mais produtivos do que as espécies puras. “Darwin já tinha escrito que os híbridos podem ser estéreis ou férteis, mas não tinha como provar, porque não havia marcadores moleculares para identificar as assinaturas genéticas de híbridos férteis”, diz Barros. “Aparentemente a hibridação é bastante comum e parece ter um papel muito mais importante na evolução do que imaginamos.”
Os botânicos já viram outros casos. As orquídeas do gênero Ophrys, da região do Mediterrâneo, formam híbridos de alta fertilidade. O cruzamento entre duas plantas baixas com flores amarelas da Europa e dos Estados Unidos, Senecio squalidus e S. vulgaris, originou um híbrido que atrai mais polinizadores e poderia gerar mais frutos que as espécies que lhe deram origem.
Espaços misturados – Animais também formam híbridos férteis. O geneticista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Thales Freitas observou que duas espécies de roedores subterrâneos conhecidos como tuco-tucos – a Ctenomys minutus, com 42 a 50 cromossomos, e a C. lami, com 54 a 58 cromossomos – são capazes de cruzar e às vezes gerar filhotes férteis. O resultado depende da origem do macho e da fêmea. Se a fêmea é da espécie Ctenomys minutus e o macho um Ctenomys lami, a prole pode ser fértil. A combinação inversa, machos da Ctenomys minutus cruzando com fêmeas da Ctenomys lami, leva a híbridos estéreis. Pererecas da mata atlântica do gênero Phyllomedusa passam por situações semelhantes. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e na Universidade do Porto, em Portugal, Tuliana Brunes estuda a formação de espécies de Phyllomedusa, a identificação genética dos híbridos e as origens históricas das zonas híbridas.
Os lugares mais prováveis em que os híbridos podem surgir são os espaços que reúnem populações de espécies próximas de plantas ou animais que antes viviam separadas. “Temos encontrado híbridos com mais frequência nas zonas de transição ecológica, os chamados ecótonos, que combinam dois tipos de vegetação e favorecem o encontro de populações de plantas e animais antes geograficamente distantes”, diz João Alexandrino, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Anos atrás, quando estava na Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, Alexandrino verificou esse fenômeno estudando híbridos férteis resultantes do cruzamento de espécies aparentadas de salamandras das matas próximas aos rios da Califórnia. Agora ele, Tuliana e Célio Haddad, da Unesp, verificaram que as pererecas formam híbridos onde dois tipos de mata atlântica, uma mais úmida e outra mais seca, se combinam no interior paulista. Os híbridos de orquídeas e de tuco-tucos também estavam em espaços ocupados por grupos de espécies que passaram a conviver provavelmente por causa de variações climáticas, que uniram áreas antes isoladas ou forçaram a migração de plantas e animais ao longo de milhares de anos.
A consequência dos processos que levaram à separação das espécies, favorecendo o cruzamento ou hibridação entre espécies próximas, é que florestas de biodiversidade elevada como a mata atlântica tornam-se “um caldeirão de novas espécies em contínua transformação”, na definição de Nuno Ferrand, da Universidade do Porto. “A riqueza em diversidade biológica não é só o número de espécies, mas também o de processos que podem dar origem a novas espécies”, diz Clarisse Palma da Silva, do Instituto de Botânica.
O mecanismo mais conhecido de formação de novas espécies de animais ou plantas consiste no acúmulo de mutações genéticas nos descendentes de uma mesma espécie. Agora se vê que novas espécies podem resultar também do agrupamento de populações de espécies diferentes que antes viviam separadas. Tudo resolvido? Longe disso. “As regras de surgimento e diferenciação das espécies não estão todas claras, porque a evolução é um processo contínuo, que segue por caminhos diferentes, por longos períodos de tempo”, disse Craig Moritz, biólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley.
Efeitos do isolamento – Um dos princípios que sobrevivem desde Dar-win é que o isolamento favorece a diversidade genética e a diferenciação de espécies, ao longo de milhares ou milhões de anos. Um dos exemplos mais conhecidos são as duas espécies de jararacas exclusivas de ilhas – a Bothrops insularis, que só vive na ilha de Queimada Grande, e a Bothrops alcatraz, da ilha de Alcatrazes, a menos de 50 quilômetros de distância, no litoral sul paulista – que começaram a se diferenciar ao se isolar, cada uma em sua ilha, há cerca de 18 mil anos (ver Pesquisa FAPESP nº 132).
Pode haver muito mais escondido por aí. Os trabalhos de Ana Carolina Carnaval, bióloga brasileira atualmente na Universidade da Cidade de Nova York, indicam que, na mata atlântica, as variações de clima (do seco ao úmido) e de altitudes (de zero a 1.600 metros) ao longo de uma faixa litorânea de 5 mil quilômetros favoreceram o isolamento, o surgimento e o desenvolvimento de novas espécies, em uma intensidade maior que na Amazônia, cujas variações de clima e relevo não são tão intensas. Essas áreas isoladas que separam e protegem plantas e animais formam os chamados refúgios, trechos de mata que sobreviveram a intensas variações climáticas nos últimos milhares de anos e levaram à redução das matas próximas, com a consequente eliminação das populações de animais que ali viviam.
Luciano Beheregaray, biólogo brasileiro que leciona nas universidades Flinders e Macquarie, na Austrália, verificou que os Estados Unidos, o Reino Unido e a França lideram a crescente produção científica mundial sobre essa área, chamada filogeografia, que concilia análises genéticas, geográficas, geológicas e históricas. Em seu levantamento, o Brasil, mesmo sendo o país mais rico em biodiversidade, ocupou o 15º lugar entre os 100 países examinados.
“Podemos ir muito além, fazendo análises mais completas de nossos dados, em vez de morrer na praia”, alertou Célio Haddad. “Coletamos os dados, mas são os especialistas de outros países que os analisam. Deveríamos ser líderes nessa área, não estar a reboque”.
Artigo científico
PINHEIRO, F. et al. Hybridization and introgression across different ploidy levels in the Neotropical orchids Epidendrum
fulgens and E. puniceoluteum. Molecular Ecology. v. 19, n. 18. p. 3981-94. 2010.