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Sociologia

Quantos ex-detentos voltam a cometer crimes?

Pesquisadores procuram calcular a taxa de reincidência criminal do país para tentar reduzi-la

Reincidência policial e reincidência penal são conceitos que buscam dimensionar o fenômeno do encarceramento no Brasil

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Uma cifra muitas vezes repetida intriga pesquisadores brasileiros da segurança pública há décadas. Lideranças como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes ou Cezar Peluso, ex-ministro do mesmo tribunal, além de documentos como o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o sistema carcerário, de 2008, reiteradamente indicam que 70% das pessoas que cumprem pena de prisão, no Brasil, reincidem no crime depois de algum tempo em liberdade. A taxa desafia os especialistas: ninguém sabe dizer de onde ela teria sido extraída, nem como se chegou a ela. Estudos recentes realizados em diferentes estados do país chegaram a números que variam entre 24% e 51% de reincidência, todos distantes dos 70% usados como referência.

O estranhamento serviu de impulso para que o problema da recidiva merecesse atenção redobrada da academia, nos últimos anos. “A repetição desse número, sem base, ajudou a consolidar o consenso de que o sistema prisional é falido, não recupera ninguém e não tem salvação. Mas será isso que os dados mostram?”, questiona o sociólogo Luís Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Cepesp-PUC Minas). “Talvez seja por causa desse consenso que se investiga bastante o crime, a violência e a prisão no Brasil, mas não tanto a reincidência. Por que estudar algo que já sabemos não funcionar?”

Entrevista: Luís Flávio Sapori
00:00 / 09:38

No Brasil, o interesse científico pelo cárcere recebeu grande impulso na década de 1980, de acordo com a socióloga Maiara Corrêa, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Dois momentos decisivos foram a aprovação da Lei de Execução Penal (LEP), em 1984, e a Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, que trouxe a temática dos direitos humanos para o primeiro plano. O massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos pela polícia, depois de uma rebelião, em outubro de 1992, na cidade de São Paulo, e a atenção crescente da opinião pública às facções do crime organizado também contribuíram para incentivar os estudos da realidade penitenciária.

Nesse contexto, os primeiros trabalhos brasileiros que buscaram estimar uma taxa de reincidência, ainda em escala local, foram conduzidos pelos sociólogos Sérgio Adorno e Eliana Bordini, ambos do NEV-USP. Em 1988, eles observaram que 46% dos egressos do sistema penitenciário paulista retornavam à prisão. Em 1991, Adorno e Bordini analisaram algo ligeiramente diferente: quantos egressos haviam sofrido uma nova condenação judicial. Chegaram a 29%. Em 1999, no Rio de Janeiro, a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, calculou 30% de retornos ao cárcere.

Pisco del Gaiso/FolhapresEm outubro de 1992, durante uma rebelião, a Casa de Detenção do Carandiru, na capital paulista, foi palco de um massacre no qual 111 presos foram mortos pela políciaPisco del Gaiso/Folhapres

A última década trouxe os esforços mais amplos para entender a recidiva no país, principalmente após a publicação, em 2015, do relatório “Reincidência criminal no Brasil”, uma parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No estudo, foi considerada reincidente a pessoa que, depois de cumprir pena, voltou a ser condenada em ação penal. Chegou-se, assim, a uma taxa de 24%.

Seguiram-se outros trabalhos, com foco no sistema prisional de adultos ou no sistema socioeducativo, que lida com adolescentes em conflito com a lei. Destacam-se o trabalho “Aí eu voltei para o corre: Estudo da reincidência infracional do adolescente no estado de São Paulo”, do Instituto Sou da Paz, publicado em 2018, que elaborou um perfil do jovem reincidente, mas não calculou uma taxa, e o relatório “Reentradas e reiterações infracionais: Um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros”, também do CNJ, publicado em 2019, que encontrou 23,9% de reentradas no sistema socioeducativo e uma reincidência de 42,5% no prisional.

A mais recente pesquisa de vasto escopo sobre reincidência foi tornada pública no final do ano passado e resulta de uma parceria entre o Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça (Depen) e o Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Econômicas da Universidade Federal de Pernambuco (Gappe-UFPE). O documento reúne informações de 12 estados e do Distrito Federal, com dados sobre 979 mil pessoas que estiveram presas entre 2010 e 2021.

Entrevista: Camila Rodrigues Gomes
00:00 / 07:43

As escolhas conceituais e metodológicas de cada um desses estudos mostram que a reincidência é definida de diferentes maneiras, dependendo da área de conhecimento em que a investigação se desenvolve ou dos objetivos da pesquisa. No Código Penal, o artigo 63 considera reincidência o crime cometido após uma sentença transitada em julgado por crime anterior. O artigo 64 limita a reincidência a um intervalo de cinco anos entre o cumprimento da primeira pena e o segundo crime. Essa limitação de cinco anos segue o padrão internacional, de acordo com a economista Camila Gomes, da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e uma das coordenadoras da pesquisa realizada para o Depen.

Estudos com foco na administração do sistema penitenciário ou em políticas públicas para encarcerados e egressos tendem a preferir os conceitos de “reincidência judicial”, que considera a condenação do indivíduo por um novo crime, e “reincidência penitenciária”, que considera o retorno à prisão em razão desse segundo delito. Para além do encarceramento, as pesquisas voltadas à segurança pública costumam dar preferência à “reincidência policial”, que se refere a novo registro policial de um crime cometido por aquela pessoa, ou à “reincidência penal”, que considera reincidente o indivíduo que sofre um novo processo judicial.

Delitos ligados ao patrimônio apresentam taxa de reincidência maior do que homicídio ou agressão

Tamanha diferença nas definições adotadas constitui parte da explicação para a disparidade dos percentuais obtidos nas diversas pesquisas. Ainda assim, as taxas apresentadas são sempre significativamente mais baixas do que os 70% que permeiam o debate público nacional. Usando cinco definições, o relatório do Depen e da UFPE encontrou valores entre 36% e 42%. Em Minas Gerais, ao tomarem como referência um novo indiciamento pela polícia, a taxa encontrada por Sapori e a socióloga Roberta Fernandes Santos foi de 51%, conforme o artigo “Fatores sociais determinantes da reincidência criminal no Brasil”, publicado por ambos em 2017. “Adotar um critério judicial não nos parece adequado para um país como o Brasil, onde a Justiça é lenta. Por isso, consideramos reincidente o indivíduo que é investigado e, ao fim da investigação, a polícia concluiu que ele cometeu um novo crime”, afirma o sociólogo.

Pesquisas sobre a reincidência também esbarram nos bancos de dados incompletos, mal preenchidos e sem padronização das secretarias de segurança pública ou da administração penitenciária dos estados. Essa é uma das razões pelas quais a maior parte dos estudos até recentemente se limitava a investigar uma única unidade federativa. Mesmo o trabalho do Ipea para o CNJ restringiu seu universo de pesquisa. Concentrou-se nos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco.

“Hoje, o Depen vem tentando reunir dados administrativos dos estados, agregando as informações de todos os presos do Brasil, com a ideia de alimentar estudos e elaborar diagnósticos de segurança pública”, afirma Gomes. A parceria com o Gappe-UFPE visa estabelecer o perfil do presidiário brasileiro. A economista acrescenta que o relatório completo está programado para sair ainda neste semestre e deverá conter informações como raça, escolaridade e renda dos detentos, além de sua participação no mercado de trabalho, antes e depois da prisão.

Esse esforço é justificado pela necessidade de produzir evidências que sustentem políticas voltadas à redução da criminalidade. “Ter o número daqueles que tornam a cometer crimes é só o primeiro passo no estudo da reincidência”, afirma Sapori. “É importante investigar os fatores sociais, psicossociais e outros aspectos que impactam a probabilidade de um indivíduo cometer novos delitos após deixar a prisão. Com esses dados, uma gestão técnica do sistema prisional poderia ter políticas mais consistentes de acompanhamento dos presos e egressos, de acordo com os perfis com maior probabilidade de reincidência, direcionando principalmente para eles as medidas de acolhimento e inserção.”

Na avaliação de Sapori, um exemplo de política bem-sucedida vem da Catalunha, na Espanha. “Os catalães têm uma tradição de muitas décadas de estudos nessa área e usam os dados para criar um protocolo de risco de reincidência, que mede a probabilidade, desde a entrada na prisão, de um indivíduo voltar a cometer um crime, para direcionar as políticas de atenção a ele, não apenas dentro do sistema prisional, mas também depois que ele sai.” O protocolo RisCanvi, como é chamado, foi instituído na Catalunha em 2009.

Mario Tama/Getty ImagensComplexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, Maranhão. Em registro de 2015, um problema recorrente no sistema carcerário brasileiro: a superlotaçãoMario Tama/Getty Imagens

“É preciso pensar em muitos fatores para entender a dinâmica da reincidência, desde a alta taxa de criminalidade do Brasil até as condições em que funcionam as prisões”, afirma o sociólogo Almir de Oliveira Junior, pesquisador do Ipea e um dos coordenadores da pesquisa realizada em 2015. Oliveira Junior descreve a criminalidade como um mercado, onde interagem a motivação dos indivíduos, as oportunidades, os recursos envolvidos e outros incentivos.

Segundo o sociólogo, as prisões superlotadas favorecem o ingresso da pessoa sentenciada na chamada “carreira do crime”. “A criminalidade, como qualquer profissão, demanda aprendizado. Como usar uma arma? Quando desistir da empreitada? Como lidar com uma pessoa que reage ou corre? Qual é o lugar ideal para realizar um assalto? O melhor lugar para aprender é a penitenciária, onde estão aqueles que já detêm o conhecimento”, observa.

Nas pesquisas brasileiras, os delitos ligados ao patrimônio, como furto e roubo, e ao tráfico de drogas, apresentam taxa de reincidência maior do que homicídio ou agressão. De acordo com Oliveira Junior, uma das razões é que os dois primeiros grupos são mais associados à carreira criminal e, mais especificamente, à atuação do crime organizado. “Quando alguém entra no mundo do crime, rapidamente se fecham as portas do mercado de trabalho formal. A comunidade se afasta quando sabe que alguém cometeu um crime, mesmo que esse indivíduo não vá para o presídio. Às vezes, a família também vira as costas. A chance de ser arregimentado por grupos criminosos só cresce”, afirma o pesquisador do Ipea.

O relatório do Depen revela um dado que pode ter grande impacto na formulação de uma política pública para egressos. O novo crime do reincidente ocorre, na maior parte das vezes, logo após a soltura. Cerca de dois terços desses delitos acontecem no primeiro ano após a liberdade. Dentre eles, quase 30% se dão no primeiro mês e 50% até o terceiro. Gomes interpreta esses dados como indicativos de que políticas voltadas para egressos são cruciais para reduzir a taxa de reincidência.

Entretanto, essas políticas são escassas no Brasil, não dispõem de verba suficiente e apresentam baixa prioridade governamental. Uma iniciativa pioneira se deve a esforços de organizações da sociedade civil, caso da Rede de Atenção à Pessoa Egressa do Sistema Prisional (Raesp), no Rio de Janeiro, criada por entidades como a Fundação Santa Cabrini, a Pastoral Carcerária, o Banco da Providência e o Instituto Consuelo Pinheiro. Sapori instituiu um Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), em Minas Gerais, quando era secretário estadual de Segurança Pública, em 2005. Em 2009, o CNJ, por sua vez, implementou o projeto Começar de Novo, que promoveu programas de reinserção sob responsabilidade de Tribunais de Justiça estaduais. Mais tarde, em 2019, o conselho formulou uma Política de Atenção a Pessoas Egressas do Sistema Prisional, incentivando a criação dos chamados escritórios sociais em ao menos 18 Estados, com a função de acompanhar e atender os egressos.

Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESPPrivação de liberdade: de acordo com o artigo 64 do Código Penal, a reincidência envolve um intervalo de cinco anos entre o cumprimento da primeira pena e o segundo crimeLéo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Tão importantes quanto as políticas destinadas a quem deixa a prisão são aquelas que buscam preparar o indivíduo, ainda atrás das grades, para o retorno à liberdade. São iniciativas de reintegração, ressocialização e reeducação, por meio de trabalho, estudo e outras atividades, graças às quais o preso pode obter a remição de sua pena na proporção de três dias de atividade para um dia de redução. Essas medidas estão previstas na Lei de Execução Penal desde 1984, mas também sofrem com a baixa prioridade e o orçamento insuficiente.

“Na maior parte das vezes, as ações de ressocialização são iniciativas de organizações da sociedade civil. A Pastoral Carcerária da Igreja Católica é um exemplo clássico. Professores universitários também apresentam projetos à Secretaria de Administração Penitenciária dos estados, para poder levar voluntários à prisão, oferecer aulas e outros projetos de ressocialização. A mão-de-obra dos detentos é ofertada por algumas poucas empresas privadas, que se beneficiam do baixo custo dessa força laboral. O investimento público é baixo porque até hoje o Estado se envolve muito pouco”, afirma Corrêa.

Dois fatores cruciais para determinar a reincidência são a juventude do indivíduo e o estigma que acompanha o ex-detento. “O criminoso adulto, em geral, iniciou na adolescência. Por isso, quanto melhor conhecermos as razões e a maneira que um jovem ingressa no crime, mais condições vamos ter de pensar políticas de prevenção social”, argumenta Sapori. O estigma, no entanto, é mais difícil de enfrentar: o egresso é rejeitado por potenciais empregadores e corre o risco de só conseguir se sustentar com a ajuda do crime organizado, que, em retribuição, exige sua participação em novos delitos.

“O estigma do ex-presidiário equivale a ter sua trajetória marcada na carne. É fácil identificar, pela linguagem corporal e verbal, pelas roupas, alguém que passou pelo cárcere”, explica Corrêa. “Quando consegue superar a primeira barreira e ser contratada, de modo geral surgem as queixas de que a pessoa não sabe se portar, nem lidar com os colegas, nem se adequar à disciplina que o ambiente de trabalho exige. Não é estranho? Afinal, pelo menos em tese, o sistema penal existe justamente para disciplinar.”

Projeto
Transformações, continuidades e tensões: o universo res no sistema prisional brasileiro contemporâneo (n° 22/07866-2); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Marcos César Alvarez (USP); Beneficiária Maiara Corrêa (USP); Investimento R$ 106.430,04.

Artigos científicos
ABBADIE, C. E. S.; ARÃO, T. S. e MATTOS, L. A reincidência criminal do sistema penitenciário brasileiro. Revista Ibero-Americana De Humanidades, Ciências E Educação, 7(4), 2021.
FARIA, A. H. P. Reincidência criminal e criminalidade em série. Revista do Instituto Brasileiro De Segurança Pública, v. 3, n. 6, 2020.
IFANGER, F. C. A e GRAVINA, N. B. Um estudo da agravante da reincidência na cidade de Campinas-SP. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 7, n. 1, 2020.
SAPORI, L. F.; CAETANO, A. J. e SANTOS, R. F. A reiteração de atos infracionais no Brasil: O caso de Minas Gerais. Revista Direito GV, v. 16, n.3, 2020.

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