REPRODUÇÃOEm 1944, a Revista do Inep (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), do Ministério da Cultura, publicou ao longo de três edições um estudo bombástico a partir de uma pesquisa feita com professores e estudantes sobre as histórias em quadrinhos, um produto de massa surgido no país na década anterior. A conclusão era das mais alarmistas: os comics constituíam um nocivo instrumento que estava prejudicando o aprendizado escolar de diversas formas: desestímulo ao estudo das disciplinas, abandono dos livros infantis e, pior, causavam preguiça mental, ao viciar os estudantes com imagens e poucos textos. Seguiu-se, então, uma guerra em escolas de todo país, quando fogueiras foram organizadas para queimar gibis. Mais lenha foi jogada no incêndio quando o professor Antonio D’Ávila publicou, em 1958, A literatura infanto-juvenil, um tratado em defesa dos livros para crianças e contra as revistinhas.
Foi preciso duas décadas para que editoras como Ibep e Ática adotassem a linguagem dos quadrinhos em seus livros de português, geografia, história e matemática. Desde então, a aceitação das revistinhas pelos professores como reforço paradidático parecia pacífica. Na verdade, os quadrinhos se tornaram quase sempre o primeiro contato de várias gerações de crianças com o aprendizado da leitura e da escrita e de entretenimento, além de um objeto de grande valor afetivo, sempre ligado à infância. É o que está exposto na tese de Valéria Aparecida Bari, O potencial das histórias em quadrinhos na formação de leitores: busca de um contraponto entre os panoramas culturais brasileiro e europeu, com orientação do professor Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP.
Na pesquisa, ela se propôs a discutir a importância das histórias em quadrinhos na formação do gosto pela leitura das crianças, a partir das experiências de dois países: Brasil e Espanha. Ao mesmo tempo, debruçou-se sobre a compreensão das mensagens transmitidas tanto pelo texto das histórias quanto pelos desenhos – que são indissociáveis e se completam nesse tipo de arte. Segundo a pesquisadora, os elementos que constituem os quadrinhos, como o letramento, abrem possibilidades de inserção dos produtos da linguagem gráfica sequencial nas práticas biblioteconômicas e pedagógicas atuais. “A leitura de histórias em quadrinhos forma leitoras que gostam de todo o tipo de leituras, com a vantagem de criar também uma cultura de leitura infantil e comunidades leitoras de grande abrangência”, observa. “Afinal, é preciso lembrar que a formação do leitor só chega ao amadurecimento se a pessoa gostar de ler. O vínculo emocional é um elemento fundamental. Nesse sentido, as histórias em quadrinhos, além da facilidade de mostrar conteúdos complexos para leitores iniciantes, também amadurecem a relação emocional entre o leitor e sua leitura”.
REPRODUÇÃOA pesquisadora destaca que, em um país que muito recentemente deixou de ser predominantemente analfabeto, o primeiro contato de grande parte da população com a leitura se deu nos bancos escolares e nas bibliotecas públicas. “Temos uma geração que, no início do século XXI, foi impulsionada a ingressar num mundo letrado e virtualizado, sem que as vivências leitoras tenham um significado em sua vida real. Somente o prazer e o gosto podem justificar esse esforço para subir os enormes degraus da alfabetização e letramento”. Segundo ela, a linguagem híbrida das histórias em quadrinhos, que conjuga texto e imagem na formação dos significados complexos, forma um leitor atento, eclético e proficiente, para a leitura competente de diversas mídias e linguagens, assim como na qualidade da organização das ideias e a formulação de textos escritos, com muita diversão e articulação.
O letramento, prossegue ela, compreende fases evolutivas como pré-requisitos para a formação das habilidades e competências leitoras. Primeiro, a decodificação, que requer a memorização do registro da linguagem escrita e sua reprodução gráfica. Segundo, a de reprodução, repetição e produção própria, que requer a memorização de estruturas mais complexas da linguagem escrita, ao mesmo tempo que o desenvolvimento de habilidades motoras para a reprodução de letras e sinais gráficos, competências linguísticas e articulação de ideias e raciocínios. “A prática da leitura e da escrita como exercícios de reprodução, repetição e produção, quando bem conduzida, leva à formação de hábitos leitores. Os hábitos, por sua vez, levam ao gosto pela leitura, a parte mais requintada e pessoal do processo de letrar alguém”.
Nesse contexto, as histórias em quadrinhos contribuem de forma relevante com todas essas fases: auxiliam muito na memorização, estimulam naturalmente a reprodução e produção própria do seu leitor, habituam as crianças à leitura e, de forma muito clara, formam o gosto leitor. “Todas essas fases têm em comum o grande esforço mental, sofrimento e comprometimento necessário por parte do indivíduo, para o êxito do letramento. Como uma vantagem adicional, preparam o cérebro para trabalhar integradamente as amídalas direita e esquerda, já que se utilizam de linguagem híbrida, facilitando a subjetividade e preparando o cérebro para o pensamento complexo”. Em sua opinião, não seria possível compreender o fenômeno da formação do leitor, ou seja, do letramento, sem as vivências sociais nos ambientes nos quais se dá a apropriação social da leitura. Nem seria procedente que tivesse obtido o grau de especialista, sem viver e reviver o fenômeno da leitura em sua plenitude. “As histórias em quadrinhos chamam a atenção para os aspectos mais positivos da leitura, tornando o ensino da leitura mais afetivo e voltado para a formação de gosto e personalidade do leitor, conforme pude constatar nas minhas entrevistas para a pesquisa, indo muito além das leituras que não poderiam deixar de embasar uma pesquisa científica”.
REPRODUÇÃOO trabalho da Valéria parecia ter colocado uma pedra sobre o preconceito de décadas contra os gibis no Brasil. “A inegável popularidade dos quadrinhos foi, talvez, responsável por uma espécie de desconfiança sobre os efeitos que eles poderiam provocar nos leitores. Já que são um meio de comunicação de vasto consumo e com seu conteúdo voltado para os jovens, as HQs se tornaram, logo cedo, objeto de restrição por parte de pais e professores”, observa Waldomiro Vergueiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos da ECA-USP e organizador do livro Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula (Editora Contexto, 160 páginas, R$ 25,00), ao lado de Angela Rama, Alexandre Barbosa, Paulo Ramos e Túlio Vilela. Foi só depois de os quadrinhos ganharem um novo status, em especial na Europa, como forma de arte que o preconceito foi diminuindo e se começou, timidamente, a incluir quadrinhos em materiais didáticos, de início para ilustrar partes das matérias que, antes, eram explicadas por um texto escrito. “Houve erros e exageros pela inexperiência do uso em ambiente escolar, mas as iniciativas contribuíram para refinar esse processo”, afirma Vergueiro. Hoje é muito comum usar quadrinhos para transmitir conteúdo, em especial após a avaliação realizada pelo Ministério da Cultura, a partir de meados de 1990. Mais recentemente, o emprego de histórias em quadrinhos na educação é reconhecido pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). “Há várias décadas, os quadrinhos fazem parte do cotidiano dos jovens e, assim, a inclusão desse material na sala de aula não é objeto de qualquer tipo de rejeição por parte dos estudantes que, em geral, o recebem de forma entusiasmada”.
Vergueiro lamenta que haja no Brasil e até mesmo no mundo um subaproveitamento dos quadrinhos nas salas de aula das mais diversas formas – reforço paradidático, estímulo à alfabetização (uma vez que é uma forma de entretenimento) etc. “A interligação do texto com a imagem, que existe nos quadrinhos, amplia a compreensão de uma forma que qualquer um dos dois códigos, sozinho, não conseguiria atingir”. Segundo o pesquisador, há ainda um desconhecimento do meio por parte dos professores, que não lhes possibilita saber o que escolher e como utilizar em aula. “Soma-se a isso o pouco incentivo governamental existente para utilização das histórias em quadrinhos, deixando praticamente toda a iniciativa por conta dos professores”.
Como argumentos para defender a adoção dos quadrinhos no ensino, ele destaca a familiaridade dos alunos com as histórias em quadrinhos e com os elementos de sua linguagem desde os primeiros anos de vida, o fácil acesso aos produtos quadrinhísticos, o baixo custo do material (na banca de jornal) quando comparado a outros meios, a possibilidade de aplicação em virtualmente todas as áreas e disciplinas e a possibilidade de desenvolver estudos ou projetos multidisciplinares com histórias em quadrinhos. “Acho que devemos ter uma atitude permanente de esclarecimento dos professores quanto às vantagens e possibilidades de utilização dos gibis em sala de aula”.
REPRODUÇÃOPara Vergueiro, isso poderia começar na formação dos professores que, quando ainda alunos de graduação, podem e devem ter contato com as histórias em quadrinhos como instrumento de trabalho de sua futura profissão, familiarizando-se com produções importantes da área e recebendo orientações de como utilizá-las em ambiente didático. “A ideia preconcebida de que os quadrinhos colaboram para afastar as crianças e jovens da leitura de livros e outros materiais já foi refutada por vários estudos. Hoje sabemos que os leitores de quadrinhos são também leitores de outros tipos de jornais, revistas etc. A ampliação da familiaridade da leitura de quadrinhos, na sala de aula, permite que muitos estudantes se abram para a leitura, encontrando menos dificuldades para concentrar-se nas leituras que são destinadas ao estudo”. Há quem defenda a importância dos quadrinhos como forma de facilitar o acesso à literatura. “Já cresceu o reconhecimento da HQ como recurso pedagógico, porém, na escola, instituição que homologa o uso dos quadrinhos como ferramenta de ensino e aprendizagem, a concepção que prevalece é aquela que vê nos quadrinhos apenas um recurso auxiliar para aprender, não reconhecendo neles o seu diálogo com o literário. Há uma carência sobre o quadrinho e as possibilidades comunicativas que ele oferece”, explica Maria Cristina Xavier de Oliveira, autora da tese de doutorado A arte dos quadrinhos e o literário, defendida há poucos meses na USP sob orientação de Nelly Novaes Coelho.
“O quadrinho apresenta novas formas de criar textos e de leitura. É uma arte que, ao contrário do que se pensa, precisa ser apreendida e compreendida. O quadrinho é um meio que pode servir a muitos fins, como despertar um olhar criativo, o raciocínio rápido, a concatenação de ideias, o domínio de técnicas de composição e da exploração visual. Os quadrinhos podem ser um meio de formação de leitores, não passivos, meros receptores, mas ativos, colaboradores importantes na leitura e na construção de novos textos”, acredita. Quem disse que aquilo que você adora ler é “apenas um gibi?” Com certeza foi alguém que não participou da Campanha de Desarmamento Infantil, em Recife, onde, em poucas semanas, mais de 500 mil armas de brinquedos foram trocadas por gibis. A pena do quadrinho, com certeza, é mais forte do que a espada ou o revólver. E bem mais gostosa de se ver.
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