Depois de cinco anos de pesquisa, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) inaugurou no último mês de maio uma antológica exposição dedicada à obra de Lygia Clark. Com mais de 300 obras, além de um catálogo alentado e uma intensa programação paralela, a mostra Lygia Clark: o abandono da arte, 1948-1988, vem sendo apresentada como uma confirmação da enorme relevância de seu trabalho. É verdade que desde os anos 1990 a artista tem sido alvo de um crescente interesse, com mostras e retrospectivas importantes organizadas na Europa e no Brasil, acompanhadas de uma constante valorização de mercado, e que essa é sua primeira exposição em território norte-americano. Mas a mostra é bem mais do que um coroamento natural por parte de uma das mais prestigiosas instituições museológicas do mundo. Num claro esforço em aprofundar a reflexão sobre esse legado, os curadores Luis Pérez-Oramas – responsável pelo núcleo de América Latina no MoMA e autor do projeto curatorial da 30a Bienal de São Paulo (2012) – e Connie Butler – atualmente curadora-chefe do Hammer Museum (Los Angeles) – esmiuçaram a obra de Lygia, deixando evidente por que a artista é um caso raro na cena internacional da segunda metade do século XX. Afinal, ela estabelece a partir do interior da criação artística um profundo questionamento e ruptura dos limites da representação estética; desestabiliza os cânones, questiona a noção de arte e introduz aí uma dimensão humana, o que a coloca no centro do processo de reflexão sobre os desdobramentos, limites e superações da arte moderna e contemporânea.
A mostra segue uma ordem cronológica e se articula em torno de três blocos principais: as pinturas iniciais e o abstracionismo; o envolvimento com o neoconcretismo; e as experimentações sensoriais e ligadas ao campo da psicoterapia. O primeiro grupo reúne os trabalhos do fim dos anos 1940, quando Lygia estuda sob a orientação de Burle Marx, e início dos 1950 – período em que mora em Paris, frequenta o ateliê de Fernand Léger e desenvolve um profundo vínculo com a obra de Piet Mondrian, influência central em sua trajetória. Trata-se ainda, nas palavras de Connie Butler, do “clássico treino do legado da influência europeia”.
A partir daí são apresentados vários momentos-chave em seu percurso, como a passagem do estudo do movimento centrífugo das escadas para a construção geométrica e abstrata da forma; a intensa e rápida participação em movimentos como o Grupo Frente e o Movimento Neoconcreto; a descoberta da linha orgânica, em meados dos anos 1950, quando expande radicalmente a pintura para além do limite da moldura; o intenso diálogo com a arquitetura e o estudo do espaço (“o que eu quero é compor um espaço e não compor dentro dele”, dizia); o questionamento cada vez mais profundo do estatuto do objeto de arte, do artista e do espectador; até chegar ao que ela mesma define como “o estado de arte, sem arte”.
Apesar dessa sucessão temporal, não se trata de um modo meramente evolutivo de mostrar um percurso das pinturas ainda figurativas do final dos anos 1940 até os experimentos terapêuticos dos anos 1970 e 1980. Adotando como estratégia eliminar as divisões entre os espaços expositivos e promover um diálogo entre obras de diferentes momentos de sua produção, os curadores enfatizaram os nexos internos – formais e conceituais – entre os diferentes grupos de obras. “Nossa proposta foi olhar para Lygia Clark simultaneamente de maneira progressiva e regressiva”, explica Oramas.
Um dos principais pontos de partida da dupla foi deixar claro que não compartilham da ideia – segundo eles canonizada pela interpretação corrente e baseada na leitura crítica de Ferreira Gullar – de que haveria dois momentos estanques na produção de Lygia, um artístico e outro simplesmente terapêutico. Seria portanto um equívoco apresentar uma fratura, considerar sua trajetória como proveniente de duas pessoas estéticas distintas. “Não importa quão radicalmente distinto seu trabalho possa ser do fenômeno que usualmente chamamos (ou chamávamos) de arte, ele permanece parte da arte”, escreve o curador.
Vista em termos museológicos, a crescente radicalidade da artista, sobretudo no caso dos objetos transicionais e proposições relacionais desenvolvidos em especial a partir de 1976, quando inicia seu trabalho terapêutico, é um desafio. Afinal, como apresentar dentro de um museu experiências que claramente rompem com a noção de obra de arte como objeto final, único, a ser observado passivamente? Objetos de uma simplicidade impressionante, feitos de sacos plásticos, pedras ou elásticos e que foram pensados não como obra final, mas como ferramentas de transição que buscam estimular uma maior sensibilidade e libertação criativa, que servem para promover um mergulho na subjetividade, libertar o que Lygia chamava de “fantasmagorias do corpo”?
Um aspecto interessante dessa retrospectiva do MoMA é que ela parece ter sabiamente aproveitado as experiências anteriores de mostrar a produção de Lygia. Nas duas últimas décadas sua obra tem sido objeto de retrospectivas e participações especiais em eventos internacionais e o tema sobre a dificuldade de expor seu trabalho volta e meia vem à baila. Muitas críticas foram feitas à tendência em fetichizar as ações experimentais, condenando os objetos de ativação à imobilidade das vitrines, ou em transformá-las em uma performance vazia, um jogo lúdico que esteriliza o caráter transformador pretendido pela artista. Desta vez a dificuldade é assumida e enfrentada a partir de diferentes estratégias, como o uso generoso de réplicas e facilitadores especialmente treinados no espaço expositivo, a realização de uma série de workshops, bem como a criação de um programa dentro do projeto MoMA Studio para que os visitantes possam explorar alguns objetos transicionais com maior tranquilidade e a concentração necessária.
Recepção
Se obras como Bichos (ela fez mais de 70 deles) e as pequeninas maquetes feitas com caixas de fósforo (estruturas de caixas de fósforo) parecem ter encantado a crítica de maneira unânime, e as pinturas iniciais mereceram uma admiração distanciada, a reação aos objetos relacionais que Lygia cria a partir de meados da década de 1970 como forma de estabelecer um vínculo afetivo, libertário e terapêutico, com seus pacientes, parece trazer à tona reações mistas. Segundo o curador, enquanto tais experiências parecem fascinar uma parcela do público interessada em arte-terapia e estética relacional e reafirmam a coerência e radicalidade de Lygia para um público já acostumado com as dinâmicas internas à arte latino-americana do período, um segmento do público ainda estreitamente vinculado à ideia de arte como espetáculo se espanta. Foi o caso, por exemplo, da crítica Ariella Budick, do Financial Times (FT), que resumiu de maneira rude a impressão que a mostra lhe causou: “A artista brasileira progrediu de uma abstração afetadamente modernista à improvisação confusamente hippie”. A censura foi respondida em tom sarcástico e direto por Simon Watson, do Huffington Post, para quem a colega do FT demonstrou “a pior sorte de provincianismo” e não compreendeu o enorme tour de force da exposição. Ou de forma indireta pela pesquisadora espanhola Estrella de Diego, que afirma em texto publicado no El País que a mostra alcança uma “coerência comovente”.
Tal embate serve como uma luva para ilustrar a ideia muitas vezes expressa por Oramas da importância de uma revisão da historiografia hegemônica, em busca de uma maior incorporação das experiências latino-americanas. Segundo ele, os brasileiros entenderam melhor a tradição construtiva europeia e apresentam “uma nova chave para o entendimento entre o pensamento geométrico e a arte conceitual, uma vez que a arte americana saiu do expressionismo abstrato diretamente para o minimalismo”. Essa maior abertura já se faz sentir na mostra permanente da coleção do museu e também em projetos paralelos como o de tradução para o inglês da obra do crítico Mário Pedrosa, autor de uma das mais precisas definições da obra de Lygia Clark como um “exercício experimental da liberdade”.
Caminhando
Como explica Connie Butler em seu texto, tal construção parece sintetizar o caráter profundamente revolucionário de obras como Caminhando, momento crucial na trajetória de Lygia e que adquire grande centralidade nessa retrospectiva. Ao dar ao espectador uma simples fita de Moebius de papel e uma tesoura, propondo que ele recorte essa fita transversalmente, transformando-a em linhas cada vez mais finas, ela promove uma mudança fundamental na sua relação com o objeto de arte, deslocando-o da função de espectador para a de agente. O ato de cortar exige escolhas e transforma um gesto negativo (corte) em produtor de matéria corpórea (os restos de papel que se acumulam desordenadamente, quase como uma escultura aleatória). Novamente a relação entre a linha e o espaço se impõe, da mesma forma que em outros núcleos importantes de trabalhos. A pessoa (não mais o “autor”) realiza uma operação de corte, “mas o resultado é aditivo, uma prodigiosa acumulação e multiplicação da diversidade material contida na unidade do plano”, acrescenta Oramas.
Caminhando se constitui assim como uma metáfora desse traçado tênue e persistente de questionamentos que costura os quase 40 anos de trabalho de Lygia. Pode-se pensar que a ênfase nos grandes momentos e fases poderia dar uma falsa impressão de genialidade, de lampejos criativos que iluminam sem grande esforço. Talvez por isso um dos maiores méritos da exposição do MoMA seja exatamente o de demonstrar, por meio da grande quantidade de trabalhos e de um conjunto impressionante de estudos, maquetes e esquemas compositivos, que cada passo, ataque ou expansão dos limites decorre não apenas de um espírito radical, mas também do esforço de uma pesquisa incansável em torno daqueles que considerava seus temas: o espaço e o tempo.
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