Acostumados a ser mal recebidos durante milhões de anos, os parasitas da família do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, desenvolveram mecanismos próprios de funcionamento que lhes permitem escapar das defesas dos organismos que invadem e se reproduzir com rapidez. No momento de se dividir e originar outra célula idêntica, esses protozoários não seguem a estratégia de outros organismos formados por células com núcleo. Na etapa inicial de produção de proteínas, em vez de decodificarem um gene por vez, os parasitas da família do Trypanosoma cruzi lêem todos os genes de uma vez. Nesse momento, a longa molécula espiralada de DNA, que contém os genes, esparrama-se pela periferia do núcleo do parasita. Só depois que essa cópia simultânea dos genes termina é que a mensagem de cada gene é separada e começa a produção de proteínas que vão formar seus descendentes.
Biólogos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) identificaram a região do núcleo onde se concentram centenas de cópias de um único gene, o SL (spliced leader ou seqüência líder), essencial para organizar essa aparente bagunça. É ele que vai marcar, em cada um dos outros genes já copiados, o ponto a partir do qual deve começar a produção das proteínas. Os genes SL se acumulam em uma região bem central do núcleo da célula: a fábrica de transcrição do gene SL. Essa descoberta pode criar alternativas para a busca de compostos mais eficientes para o protozoário que infecta cerca de 18 milhões de pessoas na América Latina. “Se conseguirmos evitar que essa fábrica de transcrição se forme, talvez possamos impedir que esses parasitas se reproduzam”, diz o biólogo Sergio Schenkman, coordenador do grupo que desvendou as peculiaridades dessa família de protozoários, que inclui o Trypanosoma brucei, causador da doença do sono, e representantes do gênero Leishmania, que provocam a leishmaniose.
O mecanismo especial de reprodução é bem diferente do funcionamento clássico de uma célula – seja a de um ser humano, seja a de uma esponja. De certo modo, uma célula normalmente lembra uma cidade grande. Só que em vez de carros e pessoas transitando por ruas há milhões de estruturas que carregam ou interpretam os genes – além de moléculas de proteínas, açúcares e gorduras -, sendo transportadas o tempo todo para fora ou para dentro do núcleo, por sua vez cercado por um espaço superpovoado, o citoplasma. O núcleo equivale a uma prefeitura e coordena as atividades executadas continuamente na célula. É de lá que saem os comandos que indicam se é hora de aumentar os estoques de proteínas e se preparar para a reprodução ou se é tempo de descansar e economizar energia.
Armazenados dentro do núcleo, os genes integram a longuíssima molécula em forma de uma escada em espiral – o ácido desoxirribonucléico, DNA. Os genes guardam os comandos celulares como se fossem livros de leis arquivados na prefeitura. Como estão escritos em uma linguagem muito específica, esses comandos são copiados e interpretados antes de seguirem adiante, para serem executados no citoplasma. Nesse processo de cópia e interpretação, denominada transcrição, cada trecho de DNA correspondente a um gene é lido por enzimas e transformado em uma molécula de material genético menos complexa, o ácido ribonucléico, ou RNA. Entre as quase dez formas de RNA já descobertas, uma em especial – o RNA mensageiro – atravessa a membrana que envolve o núcleo e leva uma cópia simplificada dessa informação aos ribossomos, unidades produtoras de proteínas espalhadas pelo citoplasma. É assim na maior parte dos seres vivos, exceto com os protozoários da família Trypanosomatidae.
Parece que até agora só esses protozoários apresentam a fábrica transcritora de genes SL, descrita pela equipe da Unifesp na Eukaryotic Cell. Essa região do núcleo é rica em RNA polimerase II, enzima capaz de ler e interpretar a informação contida no gene SL. Essas enzimas geram uma molécula de RNA criado a partir do gene SL, o SL-RNA, que vai aderir a uma das extremidades das cópias dos outros 22.500 genes do Trypanosoma cruzi, indicando que já pode ser iniciada a produção de proteínas no citoplasma.
Transformação intensa
Schenkman e seu aluno de doutorado Fernando de Macedo Dossin mostraram também que essa fábrica é montada cada vez que o parasita vai se reproduzir. Nessa fase seu núcleo apresenta-se como uma esfera quase perfeita. Bem próximo ao centro dessa esfera, a fábrica de transcrição do gene SL assume a conformação de um pequeno globo e funciona a pleno vapor. No fim do período reprodutivo, o protozoário passa por uma intensa transformação em apenas três dias e seu núcleo se torna alongado. Nesse estágio o parasita não se reproduz mais, mas se encontra pronto para infectar os mamíferos, e sua fábrica de transcrição se torna menos ativa, com seus componentes dispersos pelo núcleo. Liberado nas fezes do barbeiro, o Trypanosoma chega à corrente sangüínea, penetra nas células humanas e retorna à forma reprodutiva.
Como pessoas que se unem em um mutirão, a fábrica de transcrição se recompõe no centro do núcleo e cerca de 200 cópias do gene SL se agrupam em uma área rica em enzimas RNA polimerase II. Para o parasita, é mais eficiente construir essa fábrica nos períodos em que é preciso produzir muito e desativá-la quando o consumo cai. Não se sabe ao certo por que isso ocorre no núcleo dessa família de protozoários, mas há algumas hipóteses. Dossin acredita que a concentração de RNA polimerase II em uma região específica torne mais eficiente a transcrição.
Em um estudo anterior, publicado em 2002 na Eukaryotic Cell, Schenkman e Maria Carolina Elias já haviam observado outro tipo de mudança na estrutura nuclear do Trypanosoma cruzi. Quando o parasita assume sua forma reprodutiva e inicia a transcrição do gene SL, os demais genes migram para a periferia do núcleo, onde são copiados. Só no fim do período reprodutivo os genes voltam a se distribuir pelo núcleo. Para Schenkman, esse talvez seja o mecanismo pelo qual a atividade dos genes do parasita é regulada.
Nas últimas décadas, microscópios mais potentes – e capazes até mesmo de produzir imagens tridimensionais do interior de células vivas – têm permitido aos biólogos constatar que o núcleo das células é tão complexo que deixaria pasmo o botânico escocês Robert Brown, que descreveu essa estrutura celular pela primeira vez em 1831.
Aparentemente existem regiões bem definidas do núcleo das células que, à semelhança de bairros operários, agrupam fábricas de RNA às quais os genes se dirigem no momento da transcrição. Outras regiões, por sua vez, parecem servir de depósito para diversos compostos que se deslocam até os genes no momento da duplicação celular. O trânsito de moléculas de DNA, RNA e proteínas no interior do núcleo é tão elevado a ponto de biólogos e bioquímicos o compararem à movimentação – aparentemente caótica – de pessoas e vagões de trem nos horários de maior movimento de uma estação de metrô. Uma análise detalhada, porém, revela que esses movimentos são tão precisos quanto os do mecanismo de um relógio suíço.
O Projeto
Organização nuclear e controle da expressão gênica
Modalidade
Projeto Temático
Coordenador
Sergio Schenkman – Unifesp
Investimento
R$ 818.071,51 (FAPESP)
R$ 482.518,54 (FAPESP)