Imensos blocos de rochas devem ocupar o interior da Terra e, mais densos e mais rígidos do que o material que os cerca, ajudariam a estabilizar os movimentos do manto, a camada entre a superfície e o núcleo que responde por cerca de 80% do volume do planeta. Chamados de beams, sigla em inglês de estruturas antigas do manto enriquecidas em bridgmanita, esses blocos devem ter milhares de quilômetros (km) de extensão, situar-se a pelo menos mil km de profundidade e flutuar no manto inferior, chegando até perto do limite com o núcleo terrestre, a quase 2.900 km da superfície.
Uma equipe que reuniu pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Tóquio e da Escola Politécnica de Zurique, com a participação da física brasileira Renata Wentzcovitch, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, propôs essa nova hipótese sobre a composição e o funcionamento do manto inferior em um estudo publicado na Nature Geoscience em 27 de fevereiro deste ano. Embora não seja considerada completa, essa abordagem explica alguns fenômenos, como a subida de material rochoso menos denso do manto para a superfície e a trajetória do mergulho das bordas das placas tectônicas, formadas pela crosta e pela parte superior do manto, no in-terior do planeta. Ambos poderiam ocorrer nas regiões de viscosidade menor entre os beams.
Os pesquisadores elaboraram essa proposta com base em duas evidências sobre a composição do manto. A primeira delas é indireta, obtida por meio dos chamados modelos tomográficos, que indicam a consistência do interior do planeta a partir de variações de velocidade das ondas sísmicas. Geradas por terremotos, essas ondas cruzam o interior do planeta em velocidades que dependem da densidade e da temperatura do material que atravessam.
A segunda evidência é direta. São os meteoritos primitivos chamados condritos, ricos em magnésio e silício. Embora vindas do espaço, essas rochas devem representar o mesmo material que formou o interior da Terra, há 4,5 bilhões de anos. A composição desse tipo de meteorito indica que o manto inferior poderia ser diferente da camada imediatamente mais próxima da superfície, o manto superior. A camada mais externa do manto começa logo abaixo da crosta terrestre e chega a 660 km de profundidade, com rochas a temperaturas que aumentam com a profundidade, chegando a cerca de 1.600 graus Celsius (ºC) no limite com o manto inferior. No manto inferior, as rochas apresentam maior densidade e a temperatura varia de 1.600 ºC a 3.700 ºC no limite com o núcleo do planeta.
Os pesquisadores verificaram que essas indicações sobre a composição do interior da Terra não se encaixavam com um pressuposto, estabelecido na década de 1960, segundo o qual as composições do manto superior e inferior deveriam ser iguais. “A proporção entre a quantidade de magnésio e a de silício da Terra deveria ser a mesma que a do Sol, porque ambos se formaram a partir da mesma nebulosa”, supõe Renata. “O manto superior contém 25% mais magnésio do que silício na forma de silicato de magnésio (Mg2SiO3). Se essa proporção se mantivesse no manto inferior, haveria menos silício na Terra do que esperado com base na composição solar ou dos condritos.”
Nesse estudo, os pesquisadores do grupo assumiram o pressuposto de que o manto inferior deveria ter mais silício, aumentaram a proporção desse elemento químico e fizeram simulações numéricas por computador, em duas dimensões, dos possíveis movimentos dessa camada mais profunda da Terra. As simulações indicaram que boa parte do manto formado logo após o início do planeta poderia ter permanecido até hoje na forma de um mineral conhecido como perovskita ou bridgmanita (MgSiO3), sem se misturar com a região vizinha, formada por rochas com uma viscosidade de 20 a 30 vezes menor. Portanto, esse material mais viscoso, os beams, poderia representar resquícios dos primeiros tempos do planeta. “Nossas simulações indicaram que esses blocos rígidos não se diluíram ao longo da evolução da Terra”, explica a pesquisadora, que tem estudado os possíveis processos de formação e transformações da brigmanita no interior do planeta (ver Pesquisa FAPESP no 198). “O silício que parece faltar deve estar escondido no manto inferior.”
“Não sabemos quantos beams existem, mas não devem ser muito mais do que três ou quatro”, afirma Renata. “Nosso próximo trabalho será delimitá-los com precisão, por meio de uma análise detalhada da variação da velocidade das ondas sísmicas.” A comprovação de sua real existência é muito difícil. Um grupo internacional de cientistas anunciou neste mês de abril que, provavelmente em 2030, pretende ser o primeiro a perfurar o manto, com o navio Chikyu, chegando a 11 km de profundidade da superfície, ainda distante dos mil km em que os blocos ricos em silício já poderiam ser encontrados.
O que se supõe agora é que as placas tectônicas devem mergulhar na região menos viscosa entre os beams e chegar ao fundo do manto. O fato antes intrigante de algumas placas pararem a cerca de mil km de profundidade agora poderia ser explicado pela possibilidade de terem encontrado um beam, que barraria o mergulho. No sentido inverso, o material do manto profundo poderia subir à superfície também pelas regiões entre os blocos rochosos.
Esse estudo indica também que os beams poderiam fixar a origem e a trajetória das plumas, como são chamados os jatos de rocha quente e pouco densa, com 100 a 200 km de diâmetro, que saem do limite entre o manto e o núcleo e chegam à superfície, originando regiões vulcânicas como os arquipélagos de Fernando de Noronha, Havaí ou Galápagos. A partir dessa proposta, os pesquisadores elaboraram um mapa que assinala uma possível distribuição dos beams e das regiões ricas em plumas, concentradas no sul da África e na região central do oceano Pacífico.
Limites e interações
Em um comentário publicado na mesma edição da Nature Geoscience, o geofísico Frédéric Deschamps, pesquisador do Instituto de Ciências da Terra da Academia Sinica, em Taiwan, observou que a hipótese dos beams poderia de fato explicar a movimentação das placas tectônicas nas regiões do manto com menor viscosidade e a localização das regiões vulcânicas sobre as plumas. No entanto, segundo ele, o modelo de duas dimensões não consegue descrever inteiramente a heterogeneidade espacial das medidas de velocidade das ondas sísmicas a profundidades maiores que 2.500 km. Para entender melhor essa situação, ele sugere, “seriam necessárias simulações em três dimensões”.
“A simulação apresentada na Nature Geoscience é um passo a mais na compreensão do manto inferior”, comenta o geofísico Eder Molina, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “O fato de a modelagem não explicar alguns registros da tomografia pode ser decorrente de suas limitações, feita em duas e não em três dimensões, mas pode também ser consequência de erro no modelo ou de problemas na detecção das ondas sísmicas, que não é um método infalível.”
O físico João Francisco Justo Filho, professor da Escola Politécnica da USP que tem trabalhado com Renata desde 2007, mas não participou do estudo publicado na Nature Geoscience, observa: “O modelo geodinâmico proposto é o mais simples possível para levar a resultados plausíveis. Há, no entanto, outros elementos químicos, como ferro, hidrogênio e oxigênio, que podem mudar a viscosidade das rochas do manto, mesmo em pequenas proporções”. Em 2013, em um estudo publicado na Physical Review Letters, Renata, Justo e Zhongquing Wu, da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, mostraram que o aumento de pressão nas camadas mais profundas do planeta poderia alterar o magnetismo do ferro, aumentar a viscosidade de rochas com outro mineral, o ferropericlase, além de bridgmanita, e favorecer a formação de beams.
Artigos científicos
BALLMER, M. D. et al. Persistence of strong silica-enriched domains in the Earth’s lower mantle. Nature Geoscience. v. 10, p. 236-40. 2017.
WU, Z. et al. Elastic anomalies in a spin-crossover system: Ferropericlase at lower mantle conditions. Physical Review Letters. v. 110, p. 228501. 2013.