Um grupo de pesquisadores brasileiros está empenhado no estudo da variação da temperatura da crosta terrestre ao longo de milhões de anos. Além de contribuírem para o conhecimento da história térmica do continente, eles desenvolveram aplicações econômicas relevantes para a identificação e a caracterização de minérios. “Usamos uma técnica de datação que está auxiliando na descoberta de jazidas de petróleo, gás, diamante, minério de ferro e bauxita, entre outras, porque, na medida em que nos ajuda a compreender o processo de erosão e deposição de sedimentos ocorridos há milhões de anos, nos dá pistas dos minerais existentes debaixo da Terra”, diz o geólogo Peter Christian Hackspacher, do Departamento de Petrologia e Metalogenia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Rio Claro.
“Desde que começamos os nossos estudos já contribuímos para a vinculação entre a ocorrência de bauxita e a temperatura das rochas no passado em uma jazida em Poços de Caldas, Minas Gerais, exploradas pelas empresas Alcoa e Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) entre outras”, conta Hackspacher, coordenador de um Projeto Temático financiado pela FAPESP sobre o tema. A idade da formação de jazidas como essa ou de petróleo gira em torno de 30 milhões de anos e depende de vários fatores geológicos. No caso da bauxita, o aumento da temperatura na crosta em determinada época, como em Poços de Caldas, influencia o soerguimento das rochas de uma área, permitindo um processo de lixiviação (retirada seletiva de íons, com perda ou ganho de elétrons) de sílica e conseqüente enriquecimento de alumínio (esse elemento químico aparece na natureza normalmente junto ao silício) que está agregado ao minério. No caso do petróleo a situação é diferente. Uma região aquecida por vários fatores geológicos, entre outros processos tectônicos (estudo dos campos de esforços que atuam na crosta terrestre provocando movimentos na superfície), será favorável à geração de petróleo. É o chamado fenômeno da maturação, quando a matéria orgânica encontrada nos sedimentos depositados em bacias sedimentares — a exemplo da bacia de Santos ou de Campos — atinge o intervalo de temperatura entre 60 e 120°C.
Com isso, essa matéria orgânica se transforma em hidrocarboneto (petróleo e gás). O método também poderá ser empregado para avaliação de aqüíferos e suas respectivas zonas de recarga, as regiões por onde o lençol de água é reabastecido. Em outro projeto, o grupo que também inclui pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) trabalha em parceria com a Petrobras e em projetos financiados pelo Fundo Setorial do Petróleo e Gás Natural (CT-Petro), do Ministério da Ciência e Tecnologia, em conjunto com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Nosso objetivo é melhorar o conhecimento sobre campos petrolíferos em diferentes regiões do país, que vão do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo, fazendo a termocronologia (estudo da temperatura das rochas ao longo do tempo) do relevo brasileiro”, diz Hachspacher. “A qualidade dos dados gerados no Projeto Temático, que pela sua abordagem multidisciplinar teve repercussão nacional e internacional nessa área de estudos, chamou a atenção de empresas privadas e da Petrobras. A estatal concordou em entrar como parceira nos projetos do CT-Petro que ainda não possuem resultados consolidados.” Em relação ao projeto temático, um dos desdobramentos foi a criação da NuclearGeo, em novembro de 2003, uma empresa abrigada na Incubadora de Base Tecnológica da Unesp de Rio Claro (Incunesp). O objetivo da NuclearGeo, que foi montada por ex-alunos e docentes da Unesp, da UFRGS e da Unicamp, é usar as técnicas e os conhecimentos desenvolvidos durante a execução do Projeto Temático na exploração mineral e na identificação de aqüíferos e suas propriedades.
Temperatura de superfície
Para atingir os resultados que já extrapolaram o âmbito acadêmico, o grupo do professor Hackspacher concentrou seus estudos em torno da identificação da temperatura da superfície e da sub-superfície em determinadas épocas da história do planeta. Isso permite modelar a evolução de serras, planícies e outras paisagens, além de determinar os processos de soerguimento e erosão da superfície terrestre em eras geológicas distantes. Um exemplo desse cenário é a serra da Mantiqueira, maciço montanhoso localizado na Região Sudeste, que já foi bem mais imponente. Há 120 milhões de anos, quando estava em curso a separação da Pangéia, massa continental única que formava o nosso planeta, colocando em lados opostos do Atlântico os continentes sul-americano e africano, a Mantiqueira passava por um gradual processo de soerguimento (movimento de subida) e atingia uma altura de cerca de 4 mil metros superior à atual. Tempos depois, o maciço foi progressivamente erodindo até chegar à altura máxima de 2.800 metros. Os sedimentos resultantes desse desgaste foram depositados na plataforma continental brasileira, na área que compreende as atuais bacias de Campos, no Rio de Janeiro, e de Santos, em São Paulo.
O estudo da relação direta entre a temperatura das rochas e a conformação da paisagem de uma região funciona da seguinte forma: quanto mais quente era uma determinada rocha no passado, mais profunda ela se encontrava. E, quanto mais fria, maior a sua proximidade da superfície. Tudo isso tem a ver com a apatita, um mineral incolor composto por fosfato de cálcio e usado na fabricação de fertilizantes e inseticidas, entre outros produtos, que é o principal objeto de estudo de datação do grupo. Esse mineral é uma espécie de testemunha da temperatura da crosta terrestre em diferentes épocas. A apatita contém urânio em seu interior e pode se fissionar (quebrar o núcleo do átomo de urânio em duas metades) de forma espontânea produzindo danos em seu interior — os traços de fissão — que são analisados em um microscópio óptico após tratamento químico.
O início dos estudos de termocronologia com traços de fissão no mundo aconteceu por meio de métodos desenvolvidos principalmente por pesquisadores australianos a partir dos anos 1980. A técnica de datação e termocronologia usada no projeto temático é um aprimoramento desses estudos e foi desenvolvida no Instituto de Física (IF) da Unicamp. O princípio do método é a análise do tamanho dos traços que dá pistas da temperatura do mineral no passado. “A apatita é muito sensível à temperatura. Sabemos que seus traços de fissão têm o comprimento reduzido quanto mais elevada e duradoura for a temperatura à qual o mineral estava submetido”, explica o físico Júlio César Hadler Neto, professor do IF da Unicamp que participa do Projeto Temático como responsável pela área de traços de fissão. Ao estudar os grãos de apatita, os pesquisadores conseguem fazer um mapa do relevo de uma determinada região no passado. Se a idade estiver próxima a 30 milhões de anos, por exemplo, a chanceda existência de minerais como bauxita é grande. Simulações também são feitas para jazidas de minérios de ferro e de diamante.
“Com os nossos estudos, estamos resgatando o soerguimento e o afundamento da Região Sudeste do Brasil, entre o norte do Estado de São Paulo e o sul de Minas Gerais, nos últimos 250 milhões de anos. Pesquisamos rochas e minerais que possam fornecer informações sobre as histórias térmica, tectônica, estratigráfica (estudo das rochas sedimentares), geomorfológica (processo de formação da superfície) e da evolução da paisagem”, afirma Hackspacher. Existem cerca de 20 grupos no mundo que trabalham com traços de fissão, metodologia do início dos anos 1960, mas são poucos os que empregam todas as ferramentas utilizadas pelos cientistas brasileiros. “Com as nossas pesquisas, criamos critérios adequados à nossa latitude e substituímos modelos importados de regiões de evolução geológica e climática distintas às nossas.” Segundo Hackspacher, as pesquisas realizadas e coordenadas com os professores Hadler, da Unicamp, Antônio Saad do Laboratório de Geociências da Universidade de Guarulhos (UnG), e Iandara Mendes, do Departamento de Planejamento Territorial do Instituto de Geociências da Unesp, permitiram o desenvolvimento de novas tecnologias, como um software para modelagem da história térmica a partir da apatita e novas técnicas para separação e concentração desse mineral.
Coleta de amostras
O primeiro desafio para os pesquisadores que trabalham com a apatita é encontrá-la. Para isso, os geólogos vão a campo, munidos de seus martelinhos, para colher pedras que podem conter o mineral — até o momento, a equipe já coletou amostras de 540 diferentes locais. “Pela gênese e propriedades mineralógicas das rochas, sabemos quais são as que têm maior concentração de apatita e as coletamos. O granito, o xisto e o gnaisse são algumas delas”, diz Hackspacher. Como a apatita está presente nas rochas em tamanho microscópico — grãos de cerca de 50 micra (1 centímetro dividido 200 vezes) -, é preciso moer e peneirar as amostras coletadas para localizar o mineral. A amostra pulverizada passa em seguida por um processo de bateamento (circular a água com o minério dentro de uma espécie de prato côncavo), que pode ser manual e lembra o trabalho dos garimpeiros. O concentrado obtido, composto pela apatita e por minerais pesados como zircão, sulfetos e óxidos, é colocado em um separador isodinâmico, aparelho que isola os metais magnéticos dos menos ou não-magnéticos. A apatita enquadra-se nesse último grupo.
Feixe de Irradiação
Depois de um minucioso processo de separação, os cristais de apatita são imobilizados em pequenos cubos de resina epóxi, de menos de 1 centímetro quadrado — cada cubo contém pelo menos 40 cristais do mineral -, que então são fatiados para redução de sua espessura. As lâminas de epóxi são polidas e sofrem um ataque químico com solução de ácido nítrico. O banho revela os traços de fissão da apatita, que, a partir desse momento, está quase pronta para ser estudada. A última etapa consiste na irradiação da apatita por um feixe de nêutrons no reator nuclear do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) em São Paulo. “A apatita original contém os traços herdados da sua história geológica. Quando o mineral é irradiado, o urânio presente na apatita sensibiliza uma placa de mica (malacaxeta) que foi fixada a ela. Essa placa passa a ter uma certa quantidade de traços induzidos. A razão entre os traços fósseis, presentes originalmente no cristal de apatita, e os induzidos pelo processo de reação nuclear será usada no cálculo da idade por traço de fissão”, explica Hadler Neto. As descobertas feitas pelos pesquisadores brasileiros conferiram prestígio internacional ao grupo. Atualmente a equipe, de perfil multidisciplinar, é formada por cerca de 45 profissionais de diferentes instituições do Brasil e do exterior. Além das universidades brasileiras, existem parcerias com as universidades de Pisa, na Itália, Kansas, nos Estados Unidos, Heildelberg e Freiberg, na Alemanha, e do Porto, em Portugal.
O Projeto
História de exumação da plataforma sul-americana a exemplo da Região Sudeste brasileira: termocronologia por traços de fissão e sistemáticas ar/ar e sm/nd (nº 00/03960-5); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Peter Christian Hackspacher — Unesp — Rio Claro; Investimento R$ 1.305.047,28 (FAPESP)