REPRODUÇÃO / MARC FERREZ, CESTEIRO, C. 1899
Se, referindo-se à escravidão, Castro Alves pergunta a Deus, em O navio negreiro, “se é verdade tanto horror perante os céus”, não é de se estranhar que o sociólogo Muniz Sodré, no artigo Uma genealogia das imagens do racismo, use um personagem de terror para ilustrar sua visão da visão do negro na nossa sociedade: “Drácula não se reflete no espelho, logo, é sem imagem. Ele é o inverso da identidade normalizada pela cultura pequeno-burguesa. Na sociedade da imagem (anagrama de magia), dos dispositivos de visão, o sujeito só existe se aparece no “espelho”, isto é, se tem condições socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível”. Vale lembrar que o conde, assim como a fotografia, são “filhos” do século XIX.
“A percepção daquele tempo sobre a fotografia é de que ela não é apenas uma forma de ‘representar’ o mundo, mas de ‘tornar o mundo visível'”, analisa Maurício Lissovsky, historiador da fotografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em meados da década de 1860, no Brasil, o retrato fotográfico se tornara um objeto de desejo para brancos e negros. “No caso destes últimos, se nascidos livres ou libertos, ao se fazerem retratar como os brancos, à moda européia e com códigos e comportamentos emprestados do outro, era uma tentativa de trilhar um caminho dentro de uma sociedade racista e exigente”, observa Sandra Koutsoukos, autora da tese de doutorado “No estúdio do fotógrafo: representação e auto-representação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX”, defendida em outubro, na Unicamp, orientada por Iara Lis Schiavinatto.
A pesquisa “desvela o invisível” presente em imagens de negros com cartolas e suas mulheres com sombrinha, amas e seus “filhos” brancos, assim como os polêmicos “tipos de pretos”, como as imagens do fotógrafo Christiano Júnior, que se anunciava no Almanaque Lammert como dono de “uma variada coleção de costumes e tipos de pretos, cousa muito própria para quem se retira para a Europa”. Exibindo negros e negras seminus (adorados pelos etnólogos racistas), catalogados por sua origem africana, ou em encenações feitas no estúdio de seu trabalho nas ruas e nas fazendas, as imagens chamaram a atenção de Sandra que viu ser “necessário olhar o que estava enquadrado nas fotos, assim como descobrir o que ficara de fora”. Mas Drácula não aparece no espelho. Então, ver o quê?
Afinal, como observa a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em Olhar escravo, ser olhado, “num retrato, pode-se ser visto e pode-se dar a ver, alternativas ligadas à relação entre retratado e retratante: se o retrato do senhor é uma forma de cartão de visita, o do escravo é um cartão-postal, onde o escravo é visto, não dá a ver”. Num, se tem a preservação da imagem de uma pessoa digna e singular, alguém que, ao encomendar uma fotografia, dá-se a conhecer, esparrama-se pelo papel como gostaria de ser visto, como se vê a si mesmo no espelho; no outro, um personagem pitoresco e genérico, continua a professora. “Em meu estudo, descobri que, apesar de ser levado ao estúdio do fotógrafo e posar, seja trabalhando, seja como pano de fundo de seu senhor, o escravo e o liberto “se davam a ver”, se “mostravam” e que foram, talvez tanto quanto os brancos que posaram para suas fotos em estúdios particulares, os sujeitos daqueles retratos”, analisa Sandra. Para a pesquisadora, em quase todas as imagens há o olhar fixo na objetiva, direto para o fotógrafo, dando voz à imagem. “Muitos não se intimidavam diante da máquina esquisita e davam sua contribuição pessoal por meio da expressão, do olhar sofrido que nos encara e parece contar suas histórias. O luxo ou a encenação não mascaravam a condição do escravo ou do liberto. Se o corpo do escravo era uma propriedade, sua personalidade não era.”
“A fotografia é uma arte maravilhosa, uma arte que excita as mentes mais astutas. E uma arte que pode ser praticada por qualquer imbecil”, reclamou o grande retratista francês Nadar. Sorte da posteridade. Se demorou a ser descoberta (apenas em 1839), chegou rápido ao Brasil, no ano seguinte, trazida pelo abade Compte, aluno de Louis Daguerre, o inventor da fotografia. Antes do Rio, o francês teria passado pela Bahia, cujo pioneirismo está bem apresentado no recém-lançado A fotografia na Bahia, organizado por Aristides Alves, e que traz 215 imagens feitas, de meados do século XIX até 2006, por 107 profissionais baianos e estrangeiros. (Outra fonte excelente é O negro na fotografia brasileira do século XIX, da G. Ermakoff Casa Editorial, 306 págs., R$ 130.) Aliás, até a chegada da fotografia, o olhar oitocentista era um olhar estrangeiro, ligado à tradição de Franz Post, e, mais tarde, de franceses, alemães e suíços que pintaram o cotidiano da corte tropical, preferindo sempre o coté exótico de índios ou de negros em eterna alegria e andanças pelas ruas cariocas, como vemos em Debret e Rugendas. O daguerreótipo era caro e exiga poses demoradas de até 60 minutos.
Analfabetos
Em 1854, o francês André Disdéri criou um processo de retratos de tamanho pequeno (9,5 cm por 6 cm), elaborados sobre papel albuminado, que, baratos e de pose rápida, foram uma revolução num país de analfabetos de poucas posses que gostariam se ver imortalizados como os nobres donos das pinturas. O custo de uma dúzia desses cartes de visite, como eram chamados, era o mesmo de um único daguerreótipo e se podia oferecer como mimo para amigos e parentes, fazer álbuns familiares. “Era a democratização da auto-imagem para grupos sociais menos favorecidos. Com o carte de visite, a fotografia se tornaria uma técnica a serviço de todos, um objeto de desejo e status, uma mercadoria de troca”, lembra Sandra. Os jornais estavam repletos de anúncios de estúdios que disputavam sua clientela nos preços e na capacidade de “dar nobreza” ao retratado, seja pela sua técnica, seja pelos apetrechos que possuíam no salão e que enfeitavam o entorno do fotografado. “A fotografia dá ao negro pobre a oportunidade de se distanciar da realidade, de se projetar segundo uma imagem idealizada, fazer a sua representação. A necessidade de registrar uma ascensão social requer a assimilação dos códigos vigentes. Daí a repetição e a uniformização nas poses e acessórios nos retratos.”
REPRODUÇÃO / PIERRE VERGER, RETRATO, ANOS 1950O estúdio funcionaria, diz a professora, como um camarim e palco, onde o fotógrafo era o diretor e o cliente, mesmo participando da construção de sua cena, o personagem. Uma foto, mesmo à custa da privação de itens importantes à sobrevivência, era a prova visual para eles, para amigos e parentes de que a sua luta estava valendo a pena. “O momento exigia que, além de ser livre, a pessoa nascida livre ou alforriada parecesse livre para os outros, usando, para tanto, símbolos que indicassem essa sua condição.” Detalhes como estar de sapatos eram indicativos do novo status de liberdade. Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, conta como os negros, “vestidos à européia”, eram atacados e ridicularizados nas ruas pela “ousadia”. Da mesma forma, muitos escravos eram levados para o estúdio para fazer figuração no retrato de senhores e, com sua humilhação (“mas não com sua atitude”, ressalta a pesquisadora), garantir o registro do poder do senhor. As fotos encenadas, com negros reproduzindo seu labor no estúdio, eram suvenires (cuja organização cênica asséptica, lembra Sandra, servia para tentar passar uma idéia de “escravidão civilizada”) e objetos etnográficos, feitos sob encomenda para sustentar teorias racistas.
Nessas, se procuravam “evidências” da inferioridade dos negros e igualmente serviam como base para referendar o ideal da “escravidão civilizada”, nota a pesquisadora. “Apesar da assepsia e da ordem retratadas, a condição de escravo não era mascarada; antes, sua essência era exposta.” Havia também um mercado para fotos de amas, trazendo ao colo a criança branca que amamentara. “Nesse tipo de foto, tentava-se passar uma idéia de harmonia e afeto, num período em que o uso de amas estava sendo condenado pela medicina”, observa Sandra.
Humores
Num anúncio do Jornal do Commercio, de 1875, fazia-se a apologia da Farinha Láctea Nestlé, “a verdadeira ama-de-leite”, que, afirmava o reclame, livrava o filho do contágio de enfermidades enoculadas pelo leite estranho, corrompido pelos maus humores de qualquer ama-de-leite”. A modernidade exigia mudanças, mas as mães relutavam em abrir mão do privilégio de “usar” a negra para alimentar o filho. As fotos foram uma tentativa de “segurar” o relógio dos novos tempos. Nessas fotos, avalia a pesquisadora, é ainda mais gritante a força de expressão no olhar da retratada, obrigada a se vestir com luxo forçado.
“Elas são lembranças de que, para haver uma ama negra, houve um bebê negro que, muitas vezes, era separado da mãe para que ela pudesse criar o filho senhorial.” O invisível se torna visível. “O uso social da servidão dos povos africanos criou no Brasil uma estética da exterioridade útil do corpo do negro. O senhor de escravos, como os profissionais do ramo, conheciam melhor os detalhes dos dentes de seus servos do que os de suas filhas, como acontece com os criadores de cavalo de raça atuais. De certos desvios de olhar não ficamos livres até hoje”, analisa o antropólogo da Unicamp Carlos Rodrigues Brandão, em seu artigo O negro olhar.
“Nos jornais e revistas, negros são mais o corpo do que o rosto, mais o tipo e mais ainda a função do que a pessoa. Num país onde negros “puros” são milhões, é o rosto branco, qualquer que seja, que se dá a ver. Os negros e mestiços são quase todos os criminosos do país, pois eis que quase todas as fotografias de criminosos são de mestiços e negros.” É forte, no Brasil, a imagem do negro como máquina corpórea, algo complexo num país que aprendeu a desprezar o trabalho braçal. Negros são os que trabalham, os que são sensuais (mesmo quando revelados como esportistas), os que adoram festas, observa Paulo Bernardo Vaz, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de um estudo sobre a imagem do negro.
“O fluxo imagético que mostra o negro sofrendo, apanhando, roubando ou exibindo seu corpo sensual reatualiza significados construídos sócio-historicamente e que sugerem cristalizações que tipificam o negro em uma forma que não favorece uma auto-estima positiva. É o olhar externo que in-forma o negro numa representação pejorativa que pode afetar a sua construção identitária. Afinal, quem quer se identificar com um sujeito que vive sofrendo?” Para Vaz, os meios de comunicação oferecem ao negro a oportunidade contraditória de ser outro e não ele mesmo. “O ‘outro’ representa a ameaça fantasmática de dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos, é o medo de perder o espaço próprio. Medo primitivo, análogo ao terror noturno das crianças. O ‘outro’ acaba virando Drácula, sem imagem legítima”, analisa Muniz Sodré. A Transilvânia, como o Haiti, também pode ser aqui.
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