Em seu trabalho como etnógrafo entre os índios Umutina entre 1943 e 1945, em Mato Grosso do Sul, o gaúcho Harald Schultz foi ferido por um tiro no braço por um indígena irritado com sua presença prolongada na tribo. Schultz foi socorrido pelos outros membros da aldeia e recuperou-se. O fato, relatado no livro Vinte e três índios resistem à civilização (Melhoramentos, 1953), foi encarado apenas como um acidente de percurso e nada mudou seu interesse por outras culturas. O etnógrafo fotografava, filmava e coletava peças originais de índios de todo o país e de países limítrofes como o Peru e a Bolívia. “Ele foi um dos pioneiros da antropologia visual no Brasil e fazia registros fotográficos com uma enorme qualidade técnica e artística”, diz Sandra de La Torre Campos, antropóloga do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).
Uma parte das fotos de Schultz pode ser conhecida em duas exposições itinerantes que percorrem os museus do estado de São Paulo. A primeira, Harald Schultz, olhar antropológico, cujo tema são crianças indígenas, foi aberta em 2011. A segunda, Harald Schultz, fotógrafo e etnógrafo, 2012, retrata a estética do corpo como adornos, cortes de cabelo e pinturas. “As fotos de Schultz têm importância antropológica, porque a partir delas é possível fazer estudos etnográficos, e histórica, pelo momento em que foram obtidas”, diz Marília Xavier Cury, pesquisadora e docente do MAE e curadora das duas exposições. “As culturas mudam e o que as fotos revelam são as culturas no momento
e local em que foram tiradas.” O acervo fotográfico que deixou é precioso porque muitas pesquisas e estudos comparativos podem ser feitos sobre como eram as culturas indígenas e as transformações que ocorreram nelas.
Harald Schultz (1909-1966) nasceu em Porto Alegre, filho de alemão com brasileira. Dos 6 aos 15 anos estudou na Alemanha e, na volta, apaixonou-se pela fotografia. “Ele foi convidado a trabalhar no Rio de Janeiro pelo presidente Getúlio Vargas, quando o fotografou e o conheceu na cidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul, nos anos 1930”, conta a viúva de Schultz, a antropóloga Vilma Chiara, de 86 anos. Foi na antiga capital federal que ele entrou para o Serviço de Proteção ao Índio (SPI, atual Funai) e começou a trabalhar sob a orientação do marechal Cândido Rondon, em 1939. Também frequentou cursos avulsos de Curt Nimuendaju, etnólogo alemão que passou 40 anos estudando os indígenas brasileiros.
Em 1947, Schultz deixou o SPI e foi trabalhar no Museu Paulista a convite de Herbert Baldus, professor alemão do curso de etnologia brasileira da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, com quem também teve aulas. “Ele era um fotógrafo de talento e coletor de peças muito bom, mas não tinha formação acadêmica”, diz Marília. “De fato, o Harald achava mais interessante o contato com os índios e gostava mesmo era de fotografar e filmar”, conta Vilma, que o acompanhou a campo muitas vezes como antropóloga. Seus períodos nas aldeias duravam vários meses. Vilma lembra que ele ia à rua 25 de Março, lugar tradicional de comércio popular de São Paulo, e pedia doações de toda espécie aos lojistas. Depois trocava por peças (adornos, cestaria, cerâmica, esteiras, redes) feitas por indígenas que acabavam na coleção do Museu Paulista.
O etnógrafo gaúcho escrevia monografias e também recolhia material arqueológico para estudo. Seus artigos foram publicados em revistas no exterior e as fotos frequentaram as páginas da National Geographic. Formava uma boa parceria com Baldus. “Era comum Baldus ir a campo e Schultz seguir depois para encontrá-lo e começar o trabalho de iconografia e/ou de coleta de artefatos”, diz Marília. Até 1965, ele fez 57 filmes curtos com danças, rituais e trabalhos manuais realizados pelos Javahé, Karajá, Krahô, Uruku, Waurá, entre outros. Hoje esses filmes estão no MAE/USP, junto com uma coleção de 1.227 slides. Mas há mais, muito mais, com Walter, filho de Schultz e Vilma. “Ele guarda em Paris, onde vive, 24 mil fotos feitas pelo pai desde 1950, o ano em que casamos”, revela Vilma.
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