Não faltam razões para que, de seu nascimento nos anos 1950 até agora, a arte cinética tenha sido pouco mostrada no mundo. A arte cada vez menos material, que explora efeitos visuais por meio de movimentos físicos, foi defendida por artistas de vanguarda que desprezavam o mercado. Este ano, entretanto, grandes exposições se dedicam a dois de seus pioneiros – o argentino Julio Le Parc e o brasileiro Abraham Palatnik – e agora parece claro que, apesar de terem sido ofuscados pelo concretismo e a art pop, tratava-se de uma arte à frente de seu tempo.
O portenho Le Parc, conhecido por posições políticas contundentes, declinou de convites importantes como uma individual no Museu de Arte Moderna de Paris. Ao ganhar o prêmio de pintura na Bienal de Veneza em 1966 (desbancando o azarão Roy Lichtenstein), discursou contra a art pop norte-americana. Aos 85 anos de idade veio pessoalmente inaugurar duas exibições concomitantes no Brasil, logo depois do sucesso internacional da homenagem realizada pelo Palais de Tokyo em Paris e visitada por mais de 180 mil pessoas. “Acho que os diretores de museus se curvam diante dos anseios do mercado”, disse ele em São Paulo, na abertura da mostra na galeria Nara Roesler, transformada pelas instalações que se alteram com o movimento do corpo e do olhar – não do artista, mas do espectador. As obras chegam com um tom de missão cumprida. A meta de Le Parc era transcender a geometria (que dominava o movimento concretista da América Latina) e propor uma interação, através da instabilidade do olhar.
Assim como Le Parc, há quem diga que o potiguar Abraham Palatnik tenha antecipado o 3D. A estratégia de usar a retina para recriar a sensação espacial faz parte tanto da obra de um como de outro. Palatnik é um dos destaques da exposição 30 X bienal, retrospectiva das três décadas da bienal em São Paulo, em cartaz no pavilhão da instituição, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Ambos foram, porém, muito além do ilusionismo que alimenta os laboratórios de tecnologias virtuais. Le Parc se lançou num projeto político quando conseguiu obter um produto artístico cujo resultado depende sempre do público final. Era o que ele queria quando expunha nas ruas, na juventude em Paris dos anos 1960, período em que criou o GRAV, grupo influenciado por cabeças de chave do modernismo, como Victor Vassarely e Piet Mondrian. Era mais do que vencer a matemática da arte concreta. Le Parc queria atingir a imaterialidade da arte. E a luz passou a ter um domínio e uma participação cada vez maior no seu trabalho.
Algo parecido ocorreu com Palatnik. Menos aguerrido politicamente que o colega argentino, mas igualmente conectado com a pintura sobre tela, o filho de judeus russos largou os pincéis e passou a se dedicar a fabricar, na entrada dos anos 1950, máquinas lúdicas, equipamentos que batizou de aparelhos cinecromáticos depois de conhecer os trabalhos dos internos do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio. Levado ao manicômio pelo crítico Mário Pedrosa, Palatnik experimentou uma espécie de colapso criativo. Parou de pintar, se trancou em casa. Meses depois se desfez do material de pintura e começou a trabalhar nos objetos que viajaram o país recentemente numa grande retrospectiva realizada pela ArtUnlimited e exibida pelo Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e de Belo Horizonte. A peça que agora o representa na mostra histórica da Bienal chegou a ser recusada pela comissão julgadora do evento então recém-criado, em 1951. “Eles disseram que não havia como classificar o trabalho”, comentou em depoimento publicado no texto do catálogo que acompanha a mostra. O aparelho cinecromático, engrenagem equipada com lâmpadas elétricas coloridas, acabou na primeira edição da Bienal de São Paulo graças a uma desistência da delegação japonesa.
A dimensão política de Le Parc e a busca poética de Palatnik atravessaram mais de meio século para chegar em grandes centros de exposição com um frescor próprio dos contemporâneos. Caminhando contra a situação, eles se aproximaram como poucos de tendências que norteiam a vida de seus netos: a desmaterialização, a interação e o compartilhamento. E começaram isso num tempo em que o ambiente virtual não existia nem como ideia.
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