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Entrevista

Rodolfo Hoffmann: Calculando nossas desigualdades

Economista se notabilizou pelas análises sobre distribuição de renda no país

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPProfessor sênior do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), Rodolfo Hoffmann se formou em agronomia, na década de 1960, naquela instituição. Porém nunca atuou como profissional da área. Logo foi para o mundo acadêmico e tornou-se conhecido como um dos especialistas em distribuição de renda no Brasil. Durante a ditadura militar (1964-1985), ele participou do episódio conhecido como “Controvérsia de 70”, debate que mobilizou economistas e suscitou divergências sobre as razões do aumento da desigualdade no país entre as décadas de 1960 e 1970.

Hoffmann é professor da Esalq há 58 anos. Ao se aposentar na década de 1990, também foi docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre 1996 e 2012, onde ensinou sobretudo estatística. Além da desigualdade de renda, estuda a questão agrária e a insegurança alimentar, dentre outros temas. Já orientou 62 dissertações de mestrado e 30 teses de doutorado, e publicou cerca de 250 artigos, sozinho ou em parceria. Escreveu livros como Estatística para economistas (Editora Pioneira, 1980) e Distribuição de renda: Medidas de desigualdade e pobreza (Edusp, 1998), cuja versão atualizada saiu em 2019, pela mesma editora, em coautoria com dois ex-orientandos, os economistas Diego Camargo Botassio e Josimar Gonçalves de Jesus.

Idade 81 anos
Especialidade
Distribuição de renda no Brasil
Instituição
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP)
Formação
Graduação em engenharia agronômica (1965), mestrado em ciências sociais rurais (1967) e doutorado em economia agrária (1969) pela Esalq-USP

Casado pela segunda vez com Marina Vieira da Silva, professora aposentada da Esalq, Hoffmann tem dois filhos e quatro netos. Ele recebeu Pesquisa FAPESP em sua sala na Esalq, em Piracicaba (SP), para esta entrevista.

O senhor nasceu em São Paulo, mas viveu os primeiros anos em um sítio no interior do estado. Por quê?
Na época em que eu nasci, meus pais, Hellmut e Annemarie, e meus dois irmãos mais velhos, Helga e Ulrich, viviam em um sítio em Nova Europa, cidade próxima de Araraquara. Meus pais eram alemães e se conheceram em Santos, no litoral paulista, em 1937. Logo se casaram e compraram um imóvel naquela cidade. Em agosto de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, o governo de Getúlio Vargas [1882-1954] alinhou-se contra os países do Eixo [Alemanha, Itália e Japão] e declarou estado de guerra em todo o território nacional. Com isso, os cidadãos do Eixo foram obrigados a se retirar das zonas costeiras. Meu pai acabou sendo demitido do banco em que trabalhava como escriturário e teve menos de 24 horas para sair de Santos com a mulher e os filhos. Foram para o sítio da família dele em Nova Europa, que era administrado pela minha tia, Luise, e meu pai passou a trabalhar na terra. Pouco antes do meu nascimento, em dezembro daquele ano, minha mãe achou melhor dar à luz em São Paulo, onde havia mais infraestrutura e moravam seus pais.

O senhor cresceu nesse sítio?
Fiquei lá até os 3 anos. Em 1945, quando a guerra terminou, meu pai conseguiu emprego como escriturário na diretoria de uma fábrica de brinquedos e se mudou para São Paulo. Minha mãe voltou com os filhos para nossa casa em Santos e meu pai nos visitava aos finais de semana. Aos 10 anos, eu, meus quatro irmãos e minha mãe fomos morar com meu pai em São Paulo. Estudei a vida toda em escola pública: fiz ginásio e ensino médio na Escola Estadual São Paulo, no centro da cidade. Morávamos em uma casa simples no bairro Vila Mariana porque meu pai queria economizar para comprar um sítio no interior. Ao migrar da Alemanha para o Brasil no início do século XX, meu avô se tornou agricultor e meu pai tinha uma ligação afetiva com o campo. Durante os finais de semana, ele ia de trem visitar os lugares para tentar encontrar uma gleba à venda e eu era um de seus acompanhantes. Até que achou um pedaço de terra entre Itapevi e São Roque. Na infância e adolescência, era usual passar o período de férias escolares no começo do ano no sítio da tia Luise.

Isso influenciou sua escolha pela graduação em engenharia agronômica?
Acho que sim. Até os 18 anos, eu tinha umas ilusões bucólicas, romantizava a vida no campo, que, como se sabe, pode ser boa, mas também bem dura. Comecei o curso em 1961. Eu não gostei do trote, claro, mas o sujeito que o recusasse totalmente virava “bicho gelado” e não podia entrar no centro acadêmico. E eu queria muito participar do centro acadêmico, que ficava fora do campus da Esalq, tinha vida independente.

Seu envolvimento com a política começou em Piracicaba?
Na adolescência, quando estava no colégio em São Paulo, lembro de ter participado de campanhas pela educação. Também lia Marx [1818-1883]. Minha irmã, Helga, quatro anos mais velha do que eu, sempre foi uma referência para mim. Ela estava envolvida no movimento estudantil e em 1956 foi a primeira mulher eleita presidente da União Nacional de Estudantes Secundaristas [Unes].

O senhor conseguiu entrar para o centro acadêmico da Esalq?
Sim. Dentro do movimento estudantil, eu estava mais próximo do PCB [Partido Comunista Brasileiro], mas a União Estadual de Estudantes [UEE] era praticamente dominada pela AP [organização de esquerda Ação Popular]. Eu pegava o material da AP em São Paulo e divulgava em Piracicaba. Em 1963 fui designado pela UNE [União Nacional dos Estudantes] para ir a um encontro nacional de estudantes de agronomia no Rio de Janeiro e lá conheci dois cubanos. Eles vieram comigo para Piracicaba e fizeram uma palestra no centro acadêmico sobre a revolução socialista na ilha. A Esalq tinha um ambiente muito conservador e fui ficando com fama de subversivo.

Por isso foi preso?
Em abril de 1964, dias depois do golpe, fui chamado durante a aula ao gabinete do então diretor da Esalq, Hugo de Almeida Leme [1917-1992], que estava com o delegado de polícia e um auxiliar. Eu tinha 22 anos e me levaram com a roupa do corpo para a cadeia de Piracicaba. Lembro que a minha preocupação era destruir uma caderneta de endereços que levava no bolso e assim não entregar os colegas de militância. Piquei com os dedos, mastiguei um pouco da caderneta e joguei o resto no buraco da cela, utilizado como banheiro. Na sequência, o professor Hugo se tornou ministro da Agricultura [1964-1965] do governo militar. Na década de 1980, ele foi indicado como professor emérito da Esalq. Eu estava na reunião da congregação e pedi a palavra. Disse que não achava digna a sua atitude no passado de ter entregado à polícia um estudante sem mandado de prisão. A título de comparação, o reitor Zeferino Vaz [1908-1981] impediu que isso acontecesse na Unicamp durante o regime militar. O assunto foi tirado de pauta e, em outra reunião, sem minha presença, o título de professor emérito foi atribuído ao professor Hugo.

A Esalq tinha um ambiente conservador nos anos 1960 e fiquei com fama de subversivo por causa das minhas crenças políticas

Quanto tempo ficou na cadeia?
Cerca de 50 dias. Era uma cela comum, com três beliches, que dividi com outros cinco presos, incluindo o Capixaba, ladrão que roubou um banco e foi preso ao tentar pegar um ônibus na rodoviária de Piracicaba. Fui interrogado, mas não torturado. Acho que na época da ditadura fui um dos primeiros a ser preso por motivos políticos na cidade. E acredito ter sido o único estudante. Depois, quando ainda estava na cadeia, “caíram” várias lideranças sindicais locais.

Como o senhor começou a estudar economia?
Eu havia perdido quase dois meses de aula e precisei fazer um exame de recuperação no final de 1964. Estava no quarto e penúltimo ano da faculdade de agronomia. O próximo ano era de especialização: fitopatologia, agricultura ou economia. Eu tenho que agradecer ao destino. Uma das disciplinas da recuperação era economia rural, ministrada pelo professor catedrático Érico da Rocha Nobre. Ao discorrer sobre um livro de Paul Sweezy [1910-2004], um economista norte-americano marxista, ele se atrapalhou em uma parte e eu pude ajudá-lo. Ele foi um gentleman e aceitou minha interferência. Percebeu também que eu tinha potencial para economia. Meu interesse por economia era antigo, vinha dos estudos com motivação política ou, simplesmente, da vontade de entender a história. Como autodidata, aprendi muita economia marxista antes de estudar economia neoclássica no último ano do curso de agronomia.

Quando se tornou professor?
Eu me formei em agronomia na turma de 1965, porém nunca trabalhei nessa área do ponto de vista técnico, prestando assessoria ao produtor rural, por exemplo. Minha carreira acadêmica começou cedo. No ano seguinte, o professor Érico me convidou para ser seu assistente na sua cátedra na Esalq. Eu não era inexperiente como professor. Minha avó materna dava aulas particulares e costumava encaminhar alguns alunos para minha mãe, que era também professora particular, sobretudo de inglês. Quando alguém estava com dificuldade em exatas, ela me chamava para ensinar. Eu era adolescente. Logo depois de me mudar para Piracicaba, fui professor no curso pré-vestibular do centro acadêmico da Esalq. Em 1964, um colega de república abriu um cursinho na cidade e me chamou para ser professor de física. Esse meu colega me substituiu enquanto estive preso. Quando saí da cadeia, tinha um abaixo-assinado dos alunos pedindo para eu não dar mais aula. Nunca consegui saber se a motivação principal dos que assinaram o pedido foi não querer um professor “subversivo” ou por considerar que o substituto era melhor professor de física do que eu. Assim, em 1964, não só fui preso, como perdi meu emprego. Mas continuei dando aulas particulares e, no ano seguinte, fui ser professor de física no colegial de uma escola pública.

No mesmo ano em que se tornou professor assistente, o senhor começou o mestrado em ciências sociais rurais?
Fui da primeira turma de mestrado em economia da Esalq. Minha dissertação sobre a distribuição da propriedade da terra foi o desdobramento de um artigo que apresentei em um congresso de estudantes de agronomia, em Fortaleza, no Ceará, por volta de 1962. O trabalho mostrou que a posse da terra é concentrada no país, o que não chegava a ser novidade, mas inovou na forma como o cálculo foi realizado. Peguei os dados de 1960 do Censo Agropecuário do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], mas como não tinha computador para fazer a análise, desenhei a Curva de Lorenz [representação gráfica do grau de desigualdade] em papel milimetrado com os dados da proporção acumulada dos estabelecimentos agropecuários no país. E usei um aparelho de topografia para medir a área dentro da curva e calcular o Índice de Gini [uma das medidas de desigualdade]. O professor Frederico Pimentel Gomes, catedrático da matemática, aceitou ser meu orientador e defendi a dissertação em 1967.

O que pesquisou no doutorado?
É uma pesquisa que tem relação com a agronomia e a economia: estudei a variação sazonal dos preços dos produtos agrícolas. Produtos com variação estacional parecida são da mesma família botânica, tem as mesmas suscetibilidades às doenças e às variações de temperatura, por exemplo. No trabalho, chamei a atenção para isso. No doutorado, eu já tinha acesso a um computador do Departamento de Estatística da Esalq, que podia usar de madrugada. Na época, praticamente não havia software no país. Era preciso fazer a programação, coisa que aprendi em um curso livre na Esalq.

Após a cadeia, precisei fazer recuperação porque perdi quase dois meses de aula e foi assim que me voltei para a economia na faculdade

O senhor começou a fazer a pesquisa de doutorado na Universidade de Ohio. Como foi essa experiência nos Estados Unidos?
Não deu muito certo. A Esalq na época tinha feito um convênio com a Universidade de Ohio e alguns professores vieram trabalhar na pós-graduação do curso de agronomia. Me ofereceram uma bolsa para fazer o doutorado naquela universidade logo após ter finalizado o mestrado. Entretanto, eu era casado e tinha uma filha pequena. Minha então mulher Sônia Vieira era professora de estatística na Faculdade de Medicina da Unesp [Universidade Estadual Paulista], em Botucatu. Para ir comigo, ela precisaria largar o emprego e ser dona de casa nos Estados Unidos. Obviamente, ela não aceitou e dei toda razão. Sônia ficou no Brasil com nossa filha, tentando conseguir uma bolsa de estudos. Na época, não havia por parte das instituições essa preocupação que vejo hoje de conseguir bolsas para o casal. Fui sozinho, mas acabei voltando cerca de cinco meses depois, em 1968. Além da saudade da família, não me entusiasmei muito com as aulas. Achei que não valia o sacrifício de ficar longe do Brasil e retomei a pesquisa em Piracicaba. O professor Érico havia ameaçado me demitir se eu não terminasse o doutorado em Ohio, mas acabou se conformando, com a condição de que eu fizesse o doutorado imediatamente na Esalq.

Sua tese de livre-docência, “Contribuição à análise da distribuição da renda e da posse da terra no Brasil” (1971), deu prosseguimento à pesquisa de mestrado?
Sim. Durante a pesquisa usei os dados por estrato de renda do censo demográfico de 1960 e apliquei o Índice de Gini, encontrando níveis muito altos de desigualdade de renda no país. Eu só tinha os dados tabelados do IBGE. No trabalho, desenvolvi um procedimento matemático para fazer a Curva de Lorenz com aqueles pontos e estimar a área correta, levando em consideração a curvatura. Na mesma época, meu orientando de mestrado, João Carlos Duarte [agrônomo e cientista social morto em 1989], aplicou o mesmo procedimento aos dados do Censo de 1970, que tinham acabado de ser divulgados. Ele encontrou níveis ainda mais altos de desigualdade de renda.

O que fizeram?
Publicamos juntos um artigo na Revista de Administração de Empresas, da Fundação Getulio Vargas [FGV], em 1972, em que analisamos a distribuição de renda entre pessoas ocupadas em 1960 e 1970. Hoje se tem fácil acesso a dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios [Pnad] e da Pesquisa de Orçamentos Familiares [POF], por exemplo. Dá para baixar no computador de casa. Mas naquela época não tinha isso. Já havia microdados, mas eles só podiam ser analisados em computadores de grande porte, não tinha microcomputadores no país. Eu e João Carlos precisamos fazer uma ginástica estatística bastante trabalhosa com os dados publicados por estrato de renda para conseguir boas estimativas do Índice de Gini.

O economista norte-americano Albert Fishlow, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, chegou à mesma conclusão. Ele havia passado pelo Brasil na década de 1960 e publicou também em 1972 um artigo na revista American Economic Review. O trabalho teve repercussão internacional e foi mencionado por Robert McNamara [1916-2009], então presidente do Banco Mundial. O livro Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil [Expressão e Cultura, 1973], do economista Carlos Langoni [1944-2021], foi uma resposta do governo militar a essa questão?
Delfim Netto [economista e ministro da Fazenda entre 1968 e 1974] encomendou ao Langoni, então professor da USP, um estudo para questionar esses dados sobre o aumento da desigualdade no regime militar. Na época, o país vivia o auge do dito “milagre econômico”. Eu reconheço certa seriedade acadêmica do Langoni, que era doutor pela Universidade de Chicago. No primeiro capítulo, ele menciona nosso artigo, minha tese de livre-docência, a dissertação do João Carlos e o artigo do Fishlow. O livro traz uma análise sofisticada em termos econométricos. Langoni analisou os dados do IBGE e reconheceu que, em relação ao aumento da desigualdade, os resultados que estava obtendo não desmentiam as nossas conclusões. Na minha opinião, o grande pecado do livro dele é não ter levado em conta o contexto político da época, as escolhas econômicas do regime militar, que geraram desigualdade de renda.

Todos os envolvidos nesse debate conhecido como “Controvérsia de 70” concordavam que a desigualdade aumentara entre os anos 1960 e 1970. A discordância era sobre os fatores que contribuíram para que isso ocorresse?
Sim. Eu achava que um fator fundamental nessa análise era o golpe de 1964 e a política econômica adotada pelo regime. A ditadura reprimiu sindicatos para que não reivindicassem aumento de salário. Nunca esqueci o fato de que, mesmo na pouco politizada Piracicaba, em abril de 1964 foram presos os presidentes e vários membros das diretorias dos sindicatos locais. Isso certamente ocorreu em milhares de municípios do país. Do meu ponto de vista, a repressão aos sindicatos na época da ditadura era parte da explicação para aquele aumento da desigualdade no Brasil.

E como era a visão de Langoni?
Para ele, a economia brasileira havia se sofisticado com o crescimento entre as décadas de 1960 e 1970 e aumentado a demanda por mão de obra qualificada. Porém a oferta desse tipo de mão de obra não cresceu no mesmo ritmo porque o país tinha grande defasagem educacional. Assim, os salários dessa mão de obra aumentaram muito em relação aos salários da mão de obra não qualificada, ampliando a desigualdade de renda no país. Em suma, seria uma consequência do desenvolvimento econômico, do funcionamento do mercado e da falta histórica de investimento em educação. Ele não fala nada sobre o golpe de 1964 e sobre a política econômica do regime, como se os fenômenos políticos não tivessem impacto na realidade. Acho escandalosa essa interpretação de resultados.

A repressão aos sindicatos na ditadura ajudava a explicar o grande aumento da desigualdade no país entre os anos 1960 e 1970

Ele trabalhou com os microdados aos quais o senhor não teve acesso?
Sim, um privilégio naquele momento. Os dados publicados pelo IBGE eram genéricos: por exemplo, tem tantas pessoas na faixa de renda de tanto a tanto. Langoni trabalhou com os dados individualizados, disponibilizados pelo governo. E teve apoio logístico do governo para realizar as análises estatísticas em computador. Tanto que no livro ele agradece o auxílio de dois analistas de sistemas do Serpro [Serviço Federal de Processamento de Dados], órgão vinculado ao Ministério da Fazenda.

O senhor acha que a explicação dele é incompatível com a que o senhor defende? Não há contribuição do baixo nível educacional da mão de obra para a evolução da desigualdade observada naquela época?
Tem, claro. A escolaridade é um elemento importante para explicar o nível de renda das pessoas. Como disse, o problema do estudo do Langoni, no meu entender, é não mencionar o efeito do contexto político, da ditadura.

No livro Uma história da desigualdade: A concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), de 2018, o sociólogo Pedro Ferreira de Souza diz que a “Controvérsia de 70” produziu muito calor e pouca luz. Ou seja, não se chegou a uma conclusão sobre os fatores que explicam o aumento da desigualdade brasileira no período.
Acho que a polêmica ajudou a trazer luz. Estamos falando de uma discussão acadêmica que ganhou importância política em um momento em que até mesmo um jornal conservador como O Estado de S. Paulo era censurado. Lembro de ter sido convidado em 1973 para participar de um seminário na FGV, em São Paulo, para debater essa questão. Na mesa estava, por exemplo, [o hoje deputado estadual paulista] Eduardo Suplicy. Concedi uma entrevista para um grande jornal da época, junto com Paul Singer [Hoffmann, Singer e outros economistas escreveram artigos com críticas aos argumentos de Langoni publicados no livro A controvérsia sobre a distribuição de renda e desenvolvimento, de 1975]. Para mim, foram eventos impressionantes, porque eu era um professor universitário em início de carreira. O assunto gerou repercussão e foi assim que fiquei conhecido como economista.

O senhor debateu o assunto pessoalmente com Langoni?
Nunca nos encontramos frente a frente. Mas conheci o Fishlow em um seminário no Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento]. Manifestei interesse em uma nova temporada no exterior, após a experiência frustrada no doutorado, e o Fishlow me apadrinhou. Como chefe do Departamento de Economia, me convidou para um período como pesquisador visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley, no primeiro semestre de 1974. Voltei lá no primeiro semestre de 1977. Além disso, fui pesquisador visitante na Universidade Yale em 1983 e 1989. Para isso também foi relevante a recomendação do Fishlow.

Por que a desigualdade de renda continuou tão alta após a redemocratização do país?
Acabou caindo, só que esses fenômenos não são imediatos. A redemocratização em meados da década de 1980 desaguou, mais tarde, no governo Fernando Henrique Cardoso [1995-2002]. Houve a estabilização da economia e a criação do Bolsa Escola, depois expandido com o Bolsa Família no governo seguinte, de Luiz Inácio Lula da Silva. Meus estudos mostram que os programas de transferência de renda contribuíram para reduzir a desigualdade e a pobreza no país de 1995 a 2014. Outras políticas, como o aumento do valor real do salário mínimo desde 2001 e o aumento da escolaridade, também foram importantes. O controle da inflação por meio do Plano Real teve efeitos imediatos sobre a desigualdade, pois a inflação elevada prejudicava especialmente os mais pobres. Mas a conquista de uma moeda nacional razoavelmente estável tem importância muito maior, por ser condição fundamental para a racionalização das contas públicas e até do bom funcionamento da economia em geral.

A melhoria da educação por si só não produz automaticamente desenvolvimento econômico e redução da desigualdade

No livro Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade, de 2023, o sociólogo Marcelo Medeiros afirma que uma reforma tributária que taxasse progressivamente os mais ricos contribuiria mais para a redução da desigualdade no Brasil do que o investimento em educação. Segundo ele, se o país apostar em educação para corrigir o problema, irá gastar uma fortuna em um processo que vai consumir décadas e obter poucos resultados. O que pensa disso?
Acho o investimento em educação essencial e seria um passo muito importante para nossa sociedade se o Brasil conseguisse melhorar a qualidade de seu ensino básico. Porém concordo com Marcelo que a melhoria da educação por si só não produz automaticamente desenvolvimento econômico e redução da desigualdade. No caso dos tigres asiáticos, por exemplo, houve investimento em educação, mas também a estrutura econômica melhorou. Em relação à taxação dos ricos, o economista francês Thomas Piketty discute isso, porém reconhece ser uma questão complicada, porque com a mobilidade que o capital tem hoje, se aumentar muito a taxação dos ricos no país, o capital foge para outros lugares. Na minha opinião, precisaria ter um sistema de imposto de renda mundial, mas não sei se isso é uma ideia muito utópica.

Qual seria a solução para reduzir a desigualdade de renda no país?
Não há uma solução mágica. O economista Ricardo Paes de Barros já afirmou inclusive que as principais políticas para reduzir a desigualdade devem ser alteradas ao longo do tempo. O programa Bolsa Família desempenhou papel importante e precisa ser aperfeiçoado. Devem ser considerados os aspectos distributivos de todas as decisões e políticas econômicas, como a reforma tributária. Considero relevante diminuir a aposentadoria de funcionários públicos de alto escalão, algo defendido pelo economista e jornalista inglês Brian Nicholson no livro A Previdência injusta: Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil, de 2008. A questão é encontrar quem esteja disposto a mexer nesse vespeiro. Pelas minhas análises quantitativas, é muito mais fácil, a curto prazo, você diminuir a desigualdade da distribuição de renda no Brasil mudando a Previdência do que fazendo, por exemplo, a reforma agrária. Mas é claro que a história do Brasil seria outra se, após a Abolição, os antigos escravizados tivessem recebido um pedaço de terra. Novos assentamentos e a reformulação do Imposto Territorial Rural também devem fazer parte do contínuo esforço para reduzir a elevadíssima desigualdade da distribuição da renda no Brasil.

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