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Obituário

Rubens Torres Filho trouxe rigor científico para o estudo da filosofia alemã

Profundo conhecedor de idiomas, o filósofo elaborou traduções de autores clássicos e também escreveu poesia

Rogério Assis / Folhapress O filósofo em 1997: rigor acadêmico era temperado com vocação poéticaRogério Assis / Folhapress

A compreensão de como as ideias se formam e das condições conceituais que originam interpretações filosóficas do mundo esteve no cerne das reflexões do filósofo Rubens Rodrigues Torres Filho, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) durante cerca de 30 anos. Como tradutor de filósofos alemães, foi um dos responsáveis por trazer rigor científico para o estudo de autores daquele país no universo acadêmico brasileiro. Nascido em Botucatu (SP), Torres Filho morreu aos 81 anos, no dia 13 de dezembro, em São Paulo, e deixou duas filhas e um filho.

A ponte com a filosofia alemã constitui um dos principais legados intelectuais de Torres Filho, afirma o filósofo Pedro Paulo Pimenta, também da FFLCH-USP. “Outro aspecto central de sua trajetória foi buscar compreender como filósofos chegam à abstração das ideias a partir de um trabalho de reflexão sobre conceitos”, acrescenta. De acordo com Pimenta, o trabalho de Torres Filho era importante porque usava a história da filosofia para chegar ao exercício de filosofar. “Isso era feito em um caminho que ia da reflexão conceitual pela via que leva até a abstração. Tratava-se de um processo realizado a partir do texto e no texto”, diz.

Formado em filosofia pela USP em 1962, Torres Filho tornou-se professor da instituição três anos mais tarde, passando a ministrar um curso sobre história da filosofia moderna e filosofia clássica alemã. Defendeu o doutorado na mesma universidade em 1972 sobre Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), considerado um dos principais expoentes do idealismo alemão. Uma das ideias centrais dessa corrente filosófica é sustentar que o objeto do conhecimento é construído por meio da atividade cognitiva. A tese, intitulada O espírito e a letra. A crítica da imaginação pura, em Fichte, foi publicada em 1975 pela editora Ática e é considerada um marco na intepretação do pensador alemão no Brasil.

“No doutorado, Torres Filho evidenciou como Fichte faz filosofia dialogando com a história dessa área do conhecimento. O modo como ele interpretou o pensamento do autor é muito original, propondo uma dialética entre letra e espírito que só foi revisitada no Brasil anos mais tarde, no último livro do filósofo José Arthur Giannotti [1930-2021]”, comenta Vinicius Berlendis de Figueiredo, professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em relação ao significado da expressão “dialética entre letra e espírito”, Figueiredo esclarece que as reflexões filosóficas do pesquisador paulista eram “atentas às inflexões conceituais”, sempre em sintonia com questões filológicas e etimológicas. “Rubens gostava muito da metáfora do olhar, mas também ensinou que, para a filosofia, é preciso ter ouvido.”

“Por meio de seus escritos e suas aulas, Rubens ensinou à minha geração, e procuramos ensinar às seguintes, o quanto o rigor conceitual é aprimorado por ironia fina e cuidado virtuoso com as palavras”, observa o filósofo Luiz Henrique Lopes dos Santos, da USP.

No livro Ensaios de filosofia ilustrada (Iluminuras, 2004), Torres Filho reúne parte de sua produção ensaística, entre eles o texto “Dogmatismo e antidogmatismo ‒ Kant na sala de aula”. Com profundo conhecimento filológico do português, alemão e francês, traduziu, por exemplo, textos clássicos de filosofia para a coleção Os Pensadores (Abril/Nova Cultural), editada de 1968 a 1982. “Ele dominava o ofício das palavras, tanto da língua estrangeira como do português. Seu rigor acadêmico era temperado com uma vocação poética que dava aos textos filosóficos um frescor característico da literatura brasileira”, analisa Figueiredo. Prova disso, segundo ele, pode ser encontrada na tradução de Primeira introdução à crítica do juízo?, de Immanuel Kant (1724-1804), lançada pela editora Abril, em 1974, e reeditada pela Iluminuras em 1995. “Nesse trabalho, Torres Filho adapta o pensamento do filósofo alemão a uma paisagem tropical, ou seja, traduz ideias e reflexões de forma que elas façam sentido para o leitor brasileiro, mas sem perder o rigor na explicação conceitual”, detalha.

“No Brasil há um Kant pré-Rubens e um Kant pós-Rubens. Um Friedrich Nietzsche [1844-1900] idem. Ou um Fichte, que ele ‘inventou’ em português, assim como Friedrich Schelling [1775-1854] ou um Novalis [1772-1801]”, afirma o filósofo Marcio Sattin, professor de estética da Escola da Cidade, faculdade de arquitetura e urbanismo situada em São Paulo. “Mesmo autores de quem traduziu uma ou outra obra passaram a funcionar melhor em português graças aos seus esforços.”

Nos anos 1980, por exemplo, Torres Filho foi responsável pela tradução de Rua de mão única, obra do filósofo e crítico literário alemão Walter Benjamin (1892-1940), reeditada pela editora 34 em 2023. “Textos filosóficos de diferentes épocas têm o curioso costume de influenciar-se entre si, desafiando continuidades temporais e estabelecendo suas próprias teias conceituais de diálogos improváveis”, diz Sattin. “Quem se ocupou de filosofia no Brasil nos últimos 50 anos tem em seu vocabulário elementos que devem direta ou indiretamente às traduções feitas por Rubens, seja em uma próxima escolha de palavra, construção sintática, decisão semântica ou mesmo um chiste. Há algo de Rubens em todas elas”, completa.

Para o filósofo Daniel Tourinho Peres, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), uma das principais contribuições de Torres Filho foi realizar a conjunção entre o pensamento e sua apresentação no discurso e na narrativa, além de analisar o papel da imaginação no pensamento filosófico. “Ele extraía de pequenas passagens dimensões e amplitudes filosóficas reveladoras, evidenciando que a interpretação do texto requer um trabalho ativo do leitor”, propõe. Nesse sentido, Sattin reforça que dissertações e teses em todo o Brasil foram desenvolvidas a partir de sugestões advindas de linhas, trechos e páginas de ensaios elaboradas por Torres Filho.

“As aulas dele eram árduas, saíamos extenuados, mas sempre com a impressão de termos acompanhado uma descoberta”, relata Pimenta, aluno de três cursos de pós-graduação ministrados pelo filósofo na USP. Mais tarde, eles trabalharam juntos na tradução de diferentes livros. “Eu o entrevistei algumas vezes, conversávamos muito. Ele era uma pessoa de convivência agradável, um homem culto e urbano, intelectualmente muito aberto”, recorda.  Segundo Pimenta, Torres Filho tinha temperamento irrequieto e não queria ser somente pesquisador acadêmico – era próximo do cantor e compositor Caetano Veloso, do crítico literário José Paulo Paes (1926-1998), entre outros artistas e intelectuais.

Aposentado em 1994 aos 52 anos, ele também escreveu livros de poesia, expressão artística que considerava tão importante quanto a filosofia. A estreia aconteceu com Investigação do olhar, título publicado em 1963 pela Massao Ohno. Já O vôo circunflexo (Massao Ohno e Roswitha Kempf Editores), de 1981, ganhou o Prêmio Jabuti. Sua obra poética também abarca livros como A letra descalça (Brasiliense, 1985), Figura (Editora do Artista, 1987) e Retrovar (Iluminuras, 1993). Toda a produção do autor está reunida na compilação Novolume (Iluminuras, 1997).

O filósofo deixou de realizar trabalhos de tradução, além de escrever poesia, ensaios e textos acadêmicos no final dos anos 1990, após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). Na avaliação de Sattin, é preciso recuperar a produção de Torres Filho voltada à filosofia que se encontra dispersa. “Um desses trabalhos é o ensaio ‘A terceira margem da filosofia de Kant’, nunca recolhido em livro do próprio Rubens, que foi publicado no jornal Folha de S. Paulo em 1993 e trata do papel crucial que o próprio ato de julgar tem no interior do edifício da crítica kantiana”, conclui.

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