Assim que for superada a situação de emergência em torno do vazamento radioativo em Fukushima, no Japão, uma revisão completa das normas de segurança de usinas nucleares será promovida pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A revisão é necessária porque algo inconcebível para as normas atuais aconteceu no dia 11 de março: um terremoto de grande magnitude e um subsequente tsunami causaram pane num conjunto de rea-tores e provocaram o maior vazamento nuclear desde Chernobyl, na ex-União Soviética, em 1986. “Nosso papel em matéria de segurança nuclear e nossas normas precisarão ser reexaminados”, disse o diretor-geral da agência, Yukiya Amano. “Nessa revisão a participação crítica de pesquisadores terá um papel fundamental”, afirmou.
A reação dos 30 países que reúnem as 448 usinas do planeta oscilou entre o medo e a prudência. A Alemanha anunciou a aposentadoria antecipada de todas as usinas construídas antes de 1980. O governo da França, país cuja matriz energética é predominantemente nuclear, prometeu rediscutir com rigor as normas de segurança dos reatores. O Brasil anunciou que seguirá erguendo sua terceira usina nuclear, a de Angra 3, atualmente com 2,3 mil operários em seu canteiro de obras, e mantém planos para construir pelo menos outras quatro usinas até 2030. Mas o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, avisou que não há pressa. “Os novos protocolos de segurança seguramente vão exigir procedimentos mais rigorosos. É preciso aprender com os erros”, afirmou.
É certo que os acidentes nas usinas de Three Mile Island, nos Estados Unidos, em 1979, e Chernobyl, 1986, transformaram as normas de segurança. “Depois de Three Mile Island se implantou o conceito de defesa em profundidade, que consiste em criar várias barreiras entre o material radioativo e o ambiente para evitar danos. E depois de Chernobyl se implantou o conceito de cultura de segurança. Esses conceitos já estão incorporados em Angra 1 e Angra 2”, diz o físico Laércio Vinhas, diretor de radioproteção e segurança nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Um desafio que se coloca ao futuro da energia atômica é de natureza econômica. A rigidez das normas após os dois acidentes históricos fez triplicar o custo de construção de uma usina nos últimos anos. A depender das conclusões sobre o acidente japonês, os novos projetos poderão inflar seus orçamentos, levantando obstáculos à viabilidade econômica. “Quem tiver outras opções certamente recorrerá a elas”, diz o físico José Goldemberg. “É possível fazer um projeto imune a terremotos de grandes proporções, mas o custo de construção vai subir, o que pode tornar as usinas inviáveis”, diz o físico Ricardo Galvão, professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). O lançamento de novas usinas deverá ser retardado, mas ninguém espera uma moratória dessa matriz energética. “A importância da energia, em particular nos países mais desenvolvidos, pode ser avaliada pelo número de reatores nucleares em operação”, afirma Lauro Tomio, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Quanto à questão se vale o risco, ela deverá ser respondida diretamente pela população, beneficiada e/ou prejudicada, desses países onde já ocorreram desastres relacionados à produção de energia através de reatores nucleares.”
Mario KannoSe o Japão, que é um símbolo de tecnologia avançada, foi pego de surpresa, quem está seguro? A pergunta que correu o mundo após o vazamento nuclear mobilizou governos e especialistas. No caso do Brasil, logo se soube que a tecnologia dos reatores de Angra dos Reis é diferente da de Fukushima. O projeto japonês utiliza água fervente. O vapor produzido pelo aquecimento das reações de fissão toca a turbina, que gera energia. Conhecida como BWR, sigla para Boiling Water Reactor (reator de água fervente), a tecnologia começou a ser desenvolvida nos anos 1950 pela General Electric. Já os reatores instalados no Brasil, com tecnologia PWR (reator de água pressurizada), utilizam um sistema mais complexo, em que a água quente é submetida a uma pressão três vezes maior do que a do BWR e, por isso, não ferve. A água circula num sistema primário e troca calor com um sistema secundário, que, este sim, aciona a turbina.
As barras de comando que interrompem as reações nucleares são acionadas de modo diferente nas duas tecnologias. No BWR de Fukushima são introduzidas por baixo do reator. Já no PWR, de cima para baixo. Avalia-se que, se o reator de Fukushima tivesse a tecnologia PWR, as chances de um vazamento seriam menores, uma vez que seu sistema de contenção é reforçado para suportar a pressão mais alta. A explosão em um reator na usina de Three Mile Island, que utiliza a mesma tecnologia PWR de Angra dos Reis, resultou em danos reduzidos ao ambiente. Um informe da Cnen sustentou, ainda, que os técnicos de Angra teriam mais tempo para evitar o superaquecimento. No caso de um maremoto, as usinas do Brasil foram concebidas para suportar inundações superiores ao maior nível avaliado como possível.
Os problemas da usina de Angra seriam de outra natureza. “Na minha avaliação, a localização não é boa. Se ocorrer um acidente, pode haver problemas de dispersão da radiação, que em vez de ir para o oceano pode subir a serra do Mar e atingir as cidades do Vale do Paraíba, ao contrário do que ocorre no Japão, onde o vento leste tende a levar as partículas para o Pacífico”, afirma Ricardo Galvão. A proximidade da área urbana de Angra dos Reis é outro problema. “Se for preciso ampliar de 5 para 20 quilômetros a área de proteção, já atingiria áreas bastante populosas”, afirma. Angra 1 teve sua construção iniciada em 1972, com tecnologia norte-americana da empresa Westinghouse, mas só entrou em operação em 1984. Já Angra 2, com reator alemão da Siemens, começou a ser construída em 1981 e a operar em 2000. Angra 3, também com tecnologia alemã, teve a construção paralisada nos anos 1980 e retomada recentemente. Laércio Vinhas, da Cnen, garante que a situação de segurança de Angra 1 e 2 é boa. “Não existe risco zero, mas o projeto dos equipamentos e os procedimentos de segurança foram feitos.
Mario KannoO físico Ricardo Galvão ressalta que, apesar da diferença nos conceitos BWR e PWR, não se pode afirmar que os rea-tores de Fukushima fossem inseguros ou que o desastre se deva a um problema de projeto. “O que aconteceu lá foi um terremoto de imensa magnitude, seguido de um tsunami. E todo o sistema de segurança do reator funcionou adequadamente”, explica. Como o reator, mesmo desligado, continua a produzir 7% de potência residual, necessita ser resfriado com água. As reações foram interrompidas no momento do sismo e o sistema de resfriamento acionado. “Por incrível que pareça, o que faltou foi óleo diesel no gerador que aciona o sistema emergencial de resfriamento. Não se sabe se o combustível foi levado pelo maremoto ou se o terremoto danificou os geradores”, afirma. A temperatura começou a subir e foi necessário aliviar a pressão, fazendo a usina liberar vapor. Foi quando ocorreu a explosão. “Acima de 2.200 graus Celsius (ºC), o oxigênio e o hidrogênio da água se separam. Foi o hidrogênio que provocou a explosão, ampliando o vazamento de radiação.” A sequência de problemas na usina que seguiu o terremoto havia sido prevista em estudos de segurança. “Mas se julgou que um evento dessa natureza seria altamente improvável. Ocorre que o altamente improvável pode acontecer: há sempre alguém que ganha sozinho na mega-sena”, diz Galvão. Na avaliação de Nilson Dias Vieira Júnior, superintendente do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), a extensão controlada dos dados em Fukushima, em face do cataclismo que ocorreu, é uma mostra da segurança das usinas nucleares. “Se ocorresse um terremoto dessa magnitude no Brasil, a hidrelétrica de Itaipu provavelmente romperia”, afirma. Leonam dos Santos Guimarães, assistente da presidência da Eletronuclear, considera que a resistência das quatro outras usinas japonesas também atingidas pelo terremoto e o tsunami atesta a capacidade dessas construções de suportar catástrofes. “Mas usinas localizadas em áreas de risco sísmico deverão ser reavaliadas e, eventualmente, reforçadas”, afirma.
A pesquisa nas usinas de quarta geração, também chamadas de “intrinsecamente seguras”, promete ganhar impulso após Fukushima. Trata-se de um conjunto de projetos de reatores nucleares em fase de desenvolvimento, que não devem ter aplicação comercial antes de 2030. Um exemplo é o Peeble Bed Reactor (PBR), um reator nuclear arrefecido a gás que utiliza urânio em grãozinhos dentro de esferas de grafite pirolítica. A grafite conduz calor facilmente. Se o reator parar, o calor residual é conduzido sozinho para fora e pode ser absorvido pela corrente de ar. Sem a necessidade de um sistema de resfriamento, a temperatura dentro do reator não ultrapassa 1.600oC, evitando o perigo de liberação de radioatividade. Outra frente de pesquisas são os sistemas avançados de geração de calor que utilizam feixes de altíssima energia para queimar, além do urânio, também o plutônio, reduzindo os rejeitos radioativos. Esse sistema é conhecido como ADS (Accelerator Driven Systems). No longo prazo, a aposta continua sendo a fusão nuclear, que utiliza temperaturas altíssimas, superiores a 600 milhões de graus Celsius, para fundir dois átomos considerados leves – deutério e trítio, ambos isótopos do hidrogênio – e gerar energia sem rejeitos radioativos.
A pesquisa brasileira vem se dedicando a novas tecnologias nucleares, mas de forma ainda desarticulada. O Brasil, por meio do Ipen, participava de redes internacionais de pesquisa sobre as tecnologias de quarta geração e do sistema ADS, mas, alguns anos atrás, interrompeu o trabalho para investir em outras frentes. “O problema da descontinuidade é lamentável. Em certas áreas, a articulação continua por iniciativa pessoal de pesquisadores e incentivamos muito isso”, diz Nilson Dias Vieira Júnior, do Ipen. Em contrapartida, teve avanços a aposta do governo em fusão nuclear, com a criação da Rede Nacional de Fusão (RNF), formada por 15 instituições de pesquisa e 70 cientistas, com recursos da ordem de R$ 1 milhão. Um laboratório nacional de fusão será construído em Cachoeira Paulista e um acordo permitirá que brasileiros participem do maior experimento de fusão do mundo, ainda que o país não faça parte oficialmente do programa. O consórcio Iter, sigla para International Thermonuclear Experimental Reactor, é o responsável pela idealização e construção do primeiro reator de fusão em escala industrial, avaliado em US$ 13 bilhões, e já em obras em Cadarache (França). Um grupo de pesquisadores da USP vem trabalhando na caracterização de materiais ultrarresistentes que serão utilizados na construção do reator. Hugo Sandim, da Escola de Engenharia de Lorena, e Ângelo Padilha, da Escola Politécnica, vêm participando dos testes com dois aços da família Eurofer, para avaliar a estabilidade de suas microestruturas após ensaios de envelhecimento acelerado. O objetivo é simular condições próximas às previstas para a utilização desses materiais no futuro reator. “O trabalho iniciado em 2007 já resultou na publicação de pelo menos quatro artigos internacionais, uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado”, diz Sandim. “Além de possibilitar a formação de recursos humanos numa área emergente, trata-se de uma chance única de participarmos de um campo de pesquisa novo. Dentro de seis meses devem sair as primeiras chamadas para que grupos industriais forneçam os materiais escolhidos para a construção do reator, que deve gerar o primeiro plasma em 2019”, afirma.
Ainda no campo da pesquisa em segurança nuclear, o CBPF está desenvolvendo o protótipo de um detector de antineutrinos que será instalado nas usinas de Angra dos Reis. O detector será capaz de monitorar on-line fatores relacionados à atividade de rea-tores nucleares, como a composição do combustível e a potência térmica instantânea liberada pelo reator. “Tais parâmetros são cruciais para verificação de itens das salvaguardas ditadas pela AIEA para não proliferação de armas nucleares, além de contribuir com informações que podem otimizar o processo de geração de energia elétrica”, diz o físico João dos Anjos, pesquisador do CBPF. “Para o Brasil, que não tem interesse em produzir armas nucleares, é uma forma de mostrar transparência.” A tecnologia só está disponível nos Estados Unidos e na França. O protótipo brasileiro deve estar operando em 2012.
Mas a novidade em investimento em pesquisa nuclear vai acontecer em São Paulo, com a construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), do Ipen. Ele será construído em Iperó, a 130 quilômetros de São Paulo, num terreno vizinho ao do Centro Experimental de Aramar, onde a Marinha brasileira desenvolve há duas décadas o sistema de propulsão do primeiro submarino nuclear brasileiro. Ele terá entre 20 e 30 megawatts de potência e capacidade de triplicar a produção do Ipen de radiofármacos, compostos radioativos usados em exames de diagnóstico ou como medicamentos. Desde 1958, o Ipen fornece vários tipos de radiofármacos para médicos e hospitais e também participa do desenvolvimento de novos compostos, em parceria com instituições de pesquisa. “Atendemos 1,5 milhão de pacientes que dependem de radiofármacos, mas a demanda é crescente e podemos triplicar nossa produção atual”, diz Nilson Dias Vieira Júnior, do Ipen. O reator é denominado multipropósito porque será usado no desenvolvimento de materiais para o projeto do submarino nuclear, desenvolvido pela Marinha, e também será uma plataforma para estudos de novos materiais utilizando feixes de nêutrons, em conjunto com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. O custo é de R$ 850 milhões, em recursos dos governos federal e de São Paulo.
O debate no Brasil sobre o que ocorreu em Fukushima teve ainda o condão de reavivar antigas críticas à política nuclear do país. O Brasil não separa, no âmbito da Cnen, as atividades de execução na área nuclear do trabalho de licenciamento e fiscalização, como recomenda a AIEA e a comunidade científica. Após o acidente com uma cápsula de césio em 1987, começou a tramitar no Congresso um projeto de lei para separar quem fiscaliza e quem opera, mas ele acabou engavetado. “As promessas das autoridades de rever todo o sistema de segurança do sistema nuclear, em face do ocorrido no Japão, deveriam ser efetivadas com urgência”, diz o ex-ministro da Ciência e Tecnologia José Israel Vargas (ver entrevista na página 10).
Um desafio do Brasil está relacionado à formação de recursos humanos. Na década de 1970 houve um esforço para desenvolver tecnologia nuclear no país. Num programa denominado Pronuclear, mais de 600 pesquisadores receberam formação no exterior, principalmente na Alemanha. Com a crise econômica dos anos 1980, o investimento perdeu fôlego. Havia também um programa paralelo, voltado para o domínio do enriquecimento de urânio, e criticado, no governo militar, por ter inspirações bélicas. Resistiu à falta de investimento um subproduto do programa paralelo, que é o projeto do submarino nuclear desenvolvido pela Marinha. “A falta de investimento em pesquisa de energia nuclear atrapalha a renovação dos recursos humanos. Quando converso com um potencial aluno de doutorado, a primeira coisa que ele pergunta é qual é a política do país para o setor, para saber se terá emprego. E essa política ainda é desarticulada”, diz Ricardo Galvão, do CBPF. Para Nilson Dias Vieira, o interesse está ressurgindo. “Vamos ampliar as vagas nos cursos de pós-graduação do Ipen, na USP, e há outras instituições fazendo o mesmo. Há uma sinalização de que haverá mais empregos, com a construção de Angra 3 e outros projetos, e o interesse ressurge”, afirma.
Republicar