A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) se prepara para iniciar o plantio de um mamão geneticamente modificado resistente ao vírus da mancha anelar (Papaya ringspot virus, PRS), doença que reduz a qualidade e a quantidade das frutas do mamoeiro. É o primeiro organismo geneticamente modificado (OGM) desenvolvido pela Embrapa com autorização para ser testado em campo: a Licença de Operação para Área de Pesquisa (Loape), documento emitido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que autoriza o plantio controlado, foi obtida em outubro. Será também um dos primeiros produtos a ser analisado e testado pela Rede de Biossegurança de OGM, criada pela Embrapa em meados do ano passado, com o objetivo de capacitar recursos humanos, e a própria instituição, nas pesquisas com transgênicos.
No caso do mamão, diversas estratégias de controle dessa virose já foram utilizadas sem nenhum sucesso. Ainda assim, o Brasil é líder no mercado mundial com uma produção de algo em torno de 1,70 milhão de toneladas de mamão, em 2000, o que corresponde a pouco mais de um terço das plantas cultivadas nos demais países. Com o mamoeiro imune ao vírus, a produtividade da planta e a renda dos produtores poderão ser ainda maiores.
A Embrapa desenvolveu em ambiente de laboratório e casa de vegetação pequenas mudas de mamoeiro nas quais foram introduzidos genes resistentes ao vírus. Os testes preliminares revelaram que as plantas têm imunidade à mancha anelar. Agora, com a autorização do Ibama, o mamão transgênico terá seu desempenho avaliado em campo, mais precisamente em Cruz das Almas, na Bahia, numa área vigiada 24 horas por dia, protegida por cerca eletrificada, e acompanhado de rígido protocolo de biossegurança. “Se houver algum problema, teremos como controlar”, diz Deise Maria Fontana Capalbo, pesquisadora da Embrapa Meio Ambiente.
Cultivo em campo
Em Cruz das Almas, os pesquisadores vão avaliar a influência do mamão transgênico sobre o conjunto de organismos do solo, assim como a qualidade e as propriedades da folha e da fruta. “No primeiro ano, testaremos a resistência da planta às condições do solo e, no segundo, as condições de campo propriamente ditas”, explica Deise Capalbo. Os riscos de que o OGM contamine cultivos do mamão convencional em áreas próximas são baixos, já que o mamão não tem pólen e, por isso, não há possibilidade de escape gênico para outros cultivares, ela argumenta. “É como se a planta tivesse sido vacinada, e a capa do vírus não se expressa na parte reprodutiva”, detalha.
No entanto, é fundamental avaliar seu impacto em outros organismos e no ecossistema. Quando se utiliza um inseticida para matar o pulgão, transmissor do vírus da mancha anelar, por exemplo, há o risco de o produto matar também alguns insetos que rondam o mamoeiro, denominados pelos especialistas como organismos não-alvo. “Vamos avaliar, no caso do mamão, se o inseto que ronda o mamoeiro será ou não afetado. É preciso levar em conta a relação custo/benefício e verificar se o risco de afetar o inseto compensa”, pondera Deise Capalbo. “Se não houver comprometimento da função – e não apenas do número de indivíduos naquele ecossistema -, talvez seja possível conviver com uma situação de algumas perdas dos organismos não-alvo”, justifica.
Os pesquisadores também investigarão a segurança alimentar da fruta geneticamente modificada. Será realizada uma série de testes e ensaios – como o de equivalência substancial (ES), características moleculares e agronômicas do produto, entre outros – para avaliar as qualidades nutricionais da planta e compará-las com as do mamão convencional. “Se as duas plantas não tiverem propriedades e características idênticas, é preciso reavaliar o projeto”, afirma Deise Capalbo.
A avaliação do impacto sobre o meio ambiente e a segurança alimentar do OGM seguirão regras da Lei de Biossegurança, orientações do Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), padrões internacionais e protocolos desenvolvidos pela própria Embrapa. Todo esse trabalho será acompanhado e analisado pela Rede de Biossegurança da Embrapa. O trabalho em rede tem a vantagem de padronizar a comunicação entre os pesquisadores, permitir a revisão rápida de procedimentos e análises, incorporar novos dados à investigação, além de ampliar significativamente o contato com iniciativas científicas internacionais semelhantes.
“A nossa preocupação é dar respostas a questões de fundo sobre OGMs”, diz.Integram a rede 120 pesquisadores vinculados a 12 dos 40 centros de pesquisa da empresa, além de cinco universidades: as federais de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Fluminense, Viçosa e a da Bahia, além das universidades de Brasília, de Feira de Santana, Estadual de Campinas (Unicamp) e Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp), em Jaboticabal. Para financiar a Rede de Biossegurança, a Embrapa buscou recursos junto à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O projeto está orçado em R$ 9 milhões, que serão investidos ao longo de quatro anos, afirma Deise Capalbo, uma das coordenadoras do projeto.O projeto da rede foi concebido há quatro anos, na mesma época em que a CTNBio autorizou a comercialização da soja Roundup Ready, da Monsanto.
A Embrapa, na época, acelerava o desenvolvimento de pesquisa em laboratórios com plantas resistentes a insetos e herbicidas químicos, e a decisão da CTNBio abria perspectivas para futura comercialização.A rede foi aprovada e começou a funcionar em meados do ano passado. O primeiro passo foi selecionar os produtos que seriam avaliados, começando por aqueles que estivessem mais próximos da comercialização. Foram escolhidos, além do mamão, também o feijão resistente ao vírus do mosaico dourado, a batata resistente ao vírus Y e o algodão Bt resistente a insetos. Numa segunda etapa, foram identificados os laboratórios que deveriam integrar a rede.
Não existe no país nenhuma variedade de feijão com imunidade ao mosaico dourado (BGMV em Phaseolus sp.), o que coloca para os pesquisadores o desafio de buscar alternativas para o produtor. Estudos iniciais em condições controladas indicaram que a modificação genética desenvolvida por pesquisadores da Embrapa tem potencial para resolver o problema.No caso da batata, e por meio da tecnologia do DNA recombinante, os pesquisadores obtiveram um clone da cultivar Achat transformada com o gene CP-PVY (capa protéica do Potato vírus Y), com alta resistência à doença que degenera o tubérculo. Como a Achat já apresenta alta tolerância ao Potato Leaf Roll Virus (PLRV), a combinação com a resistência ao PVY permitirá aos produtores manter alta a produtividade, supõem os pesquisadores.
Eles não esperam impactos ambientais negativos por fluxo gênico (transferência de genes de uma planta para outra), uma vez que a batata geneticamente modificada não floresce. Como o gene inserido codifica uma proteína que já é largamente consumida em tubérculos naturalmente infectados por vírus, é muito provável que também não ocorram problemas derivados de seu consumo por seres humanos ou animais.
As pesquisas com o algodão estão em estágio inicial. A Embrapa ainda não tem pronta a planta modificada com o gene do Bacillus thuringiensis (Bt) que, espera-se, a tornará resistente ao ataque da lagarta ou bicudo. “Já conhecemos o gene, mas temos que introduzi-lo na planta para obter pequenas mudas, antes de confirmar se o algodão é resistente”, diz Deise Capalbo. Mas, no caso do algodão, existe grande preocupação em relação à segurança deste transgênico para os seres humanos e organismos não-alvo, no jargão dos pesquisadores.
“O algodão poliniza e, por isso, há a possibilidade de escape gênico e fluxo gênico via solo ou pólen”, ressalva Deise Capaldo. Este problema pode ser particularmente grave no Brasil, país onde existem plantas de algodão nativas. Por isso, antes de levar o plantio a campo, é preciso definir a área em que se pode plantar sem riscos para as variedades autóctones da planta. “Temos que fazer mapeamento de áreas onde há plantas não transgênicas ou variedades representativas, que têm que ser preservadas”, ela afirma. Mais que isso: é preciso estudar o hábito dos insetos, a distância que eles são capazes de percorrer e até as condições de manejo agrícola. “Já iniciamos estudos com a abelha, inseto polinizador do algodão”, ela adianta.
Banco de dados do feijão
Os 120 pesquisadores da Rede vão acompanhar a evolução e a análise do cultivo do mamão em Cruz das Almas e o desenvolvimento das pesquisas com a batata, o feijão e o algodão geneticamente modificados. No caso da segurança alimentar, a primeira iniciativa é criar um banco de dados com informações detalhadas sobre variedades convencionais das plantas modificadas, de acordo com Edson Watanabe, pesquisador da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
A verificação da equivalência substancial do produto geneticamente modificado em relação ao seu análogo convencional constitui um dos primeiros passos da avaliação de segurança alimentar de um OGM. “A expectativa é de que o OGM seja equivalente e tão seguro quanto seu análogo convencional”, explica Watanabe. Inicialmente, estuda-se a composição centesimal do transgênico – proteínas, lipídios, carbohidratos etc. – e os componentes-chave dos alimentos. No caso da soja, esse componente é, pelo menos até o momento, a isoflavona. “Mas com o mamão é diferente”, ressalva Watanabe, lembrando que não existe um modelo único de análise que deva ser determinado caso a caso. Nas comparações entre os dois produtos, é possível recorrer a bancos de dados internacionais, mas, para a análise de plantas brasileiras, é preciso desenvolver protocolos nacionais. A Embrapa Agroindústria de Alimentos, por exemplo, já começou a criar um banco de dados com informações sobre as diversas variedades defeijão convencional cultivadas em território nacional.
Os testes de segurança incluem, ainda, os exames de toxicidade. No caso da soja e do milho – dois tipos de grãos normalmente utilizados como base para a ração animal -, a metodologia utilizada para a avaliação de segurança alimentar de produtos transgênicos, já aprovada nos Estados Unidos, é gavagem (alimentação via oral) aguda em camundongos, realizada por meio da injeção da proteína expressa pelo novo gene diretamente no estômago de ratos. Noutro tipo de exame, os ratos são alimentados durante 90 dias com rações produzidas a partir de grãos transgênicos e avaliados pela equipe de pesquisadores. “Existem outras propostas que, entretanto, não são validadas”, observa Watanabe.
É preciso ainda verificar a possibilidade de o produto transgênico provocar alergia. A bioinformática permite obter informações sobre a seqüência de aminoácidos da proteína expressa, comparando-a com as de bancos de dados internacionais de proteínas, inclusive as alergênicas. “Mede-se, ainda, a digestão pela pepsina (enzima digestiva produzida pelo estômogo), já que as proteínas alergênicas são mais resistentes à digestão”, diz. Quando se tratar de alimentos processados – como o óleo e a farinha de soja, por exemplo -, é necessário avaliar o desempenho do produto ao longo de todo o processo de industrialização. E, no caso de ração, é avaliado o desempenho do animal alimentado com o produto.
A verificação da equivalência substancial também inclui estudos como a caracterização molecular e a caracterização agronômica do produto, para se observar tamanho e rendimento das plantas. “É preciso conhecer quantas cópias de plasmídeo foram inseridas na planta, onde essas cópias foram inseridas e se a modificação genética é estável, entre outros fatores”, exemplifica Watanabe.
Boas práticas
Além da Rede de Biossegurança, a Embrapa investe no credenciamento de seus laboratórios de pesquisa com transgênicos. Até o final do ano, a Embrapa Agroindústria de Alimentos, no Rio de Janeiro, deverá apresentar ao Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) os documentos necessários para o credenciamento ISO 17025 de qualidade em análises laboratoriais. No próximo ano, “se os transgênicos chegarem à Embrapa Agroindústria de Alimentos, será solicitado também ao Inmetro o credenciamento em Boas Práticas de Laboratórios (BPL)”, de acordo com Rosemar Antoniassi, supervisora do Sistema de Qualidade da Embrapa. A partir de 1998, foram realizadas reformas de infra-estrutura e adquiridos equipamentos para ampliar a capacidade de análise dentro dos padrões de BPL.
“Estamos investindo no armazenamento e descarte. O importante em BPL é adotar procedimentos para documentação e para registros da pesquisa em segurança alimentar e ambiental”, sublinha. “Todos os passos da pesquisa devem ser relatados”, observa Rosemar Antoniassi. Para isso, foram realizados treinamentos envolvendo pesquisadores das várias áreas de pesquisa. O credenciamento é solicitado caso a caso, para cada um dos OGMs a serem avaliados pela Embrapa, e é conferido depois de cuidadosa auditoria do Inmetro.
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