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Estética

Sem querer, querendo

Artistas modernos descobriram na força do acaso uma nova forma de fazer arte instigante e ousada

LIGIA CLARKCaranguejo, de Ligia Clark: público pode mexer na obraLIGIA CLARK

Um exame de DNA da obra-prima O Grande Vidro, uma das mais importantes do século 20, não revelaria apenas os genes do francês Marcel Duchamp (1887-1968), que levou oito anos para conceber seu trabalho. O estudo do genoma da obra, constituída de duas chapas imensas de vidro, decoradas com óleo e fios de chumbo, certamente indicaria também a presença marcante de “cromossomos do acaso”.

O cruzamento entre o gênio das artes e o destino teria ocorrido em 1926, durante o transporte da obra para uma galeria em Nova York. No meio do caminho, o vidro se quebrou e espalhou fissuras pelas figuras criadas meticulosamente por Duchamp. Em vez de decretar a morte acidental da obra, ele preferiu emprestar o procedimento. Chamou o imprevisto de parceiro e decretou o trabalho “definitivamente inacabado”. “Não só aceitou a transformação como admitiu o acaso como elemento do processo criativo”, explica Ronaldo Entler, autor da tese de doutoradoPoéticas do Acaso: Acidentes e Encontros na Criação Artística, defendida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Em seu trabalho, o pesquisador analisa a trilha de Duchamp e seu impacto no caminho de vários outros artistas, como John Cage, Ligia Clark, Nam June Paik, o novato brasileiro Carlos Fadon Vicente e o grupo Novo Realismo – movimento francês que se formou no final dos anos 50. O ponto de encontro desses artistas, segundo Entler, é uma abertura para a experimentação, o que proporciona um diálogo do criador com outras forças produtivas. “Foram analisados trabalhos em que o artista aceita o acaso conscientemente e sabe que ele é um operador de suas obras. É nesse espaço que se situam as poéticas do acaso”, justifica. “Mas, assim como em muitas investidas da arte contemporânea, essa situação não deixa de abalar referências que nos têm servido para definir os limites da arte.”

A ruptura mais significativa proposta por esses artistas é aquela que lança o sujeito – tanto o artista como o espectador – para uma posição menos totalitária em relação à arte. “A experiência estética deixa de ser exclusivamente a manifestação de um saber ou um sentimento, e se assume como um universo pleno de movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se transforma”, observa. Considerar o acaso como parte do processo de criação não significa que o artista seja manipulado pela natureza, como sugerem alguns, alerta o pesquisador. “O acaso é um elemento rico por que o artista flexibiliza seu projeto e aceita confrontar-se com o desconhecido. São interferências de um outro sujeito que não se denomina artista ou de um fenômeno da natureza ou, ainda, que vem de um aparato tecnológico, como contribuição. Isso exige da parte do artista uma certa humildade e a quebra do egocentrismo que o Romantismo construiu”, analisa.

Mas, apesar de todas as revoluções estéticas, a arte ainda é vista com um viés conservador, sem abertura para quedas de telhas. “Até hoje a arte é tida como fruto do domínio absoluto de um criador em estado pleno de inspiração e eficiência. A arte esteve sempre associada a um saber fazer e era considerada como resultado de uma intenção e não de um acidente. A partir das experiências realizadas no contexto das vanguardas artísticas, porém, é inevitável questionar essa visão tradicional da arte”, afirma. A pesquisa faz um recorte em três categorias de trabalho que se defrontam com a arte conservadora por meio do acaso. O primeiro é um desvio da matéria-prima, no qual os criadores refuncionalizam materiais, abandonando a idéia clássica de que o pintor usa tinta e o escultor, o mármore. São artistas que decidem alterar o destino de uma matéria que não foi feita para aquilo. “Eles reciclam ou confrontam ferramentas inusitadas”, diz. Seu objeto de estudo foi o grupo francês Novo Realismo.

A segunda categoria é a de artistas que usam o acaso no processo de criação. Alguns chegam a sortear objetos ou elementos que vão indicar os caminhos da obra. Esse é o caso de John Cage (1912-1992), que usava o I-Ching para decidir a seqüência rítmica ou melódica que usaria em determinada música. Entler recorreu também a um dos temas do momento: a interatividade. Estudou o artista brasileiro Carlos Fadon Vicente, fotógrafo que criou um programa de computador que faz osoftware errar. “Ele age como se fosse um vírus, que dá uma certa autonomia à obra. Ou seja, o acaso está nitidamente dentro de um programa. Quando ele põe o software em andamento, o artista não sabe no que vai dar. A máquina é uma co-autora”, sustenta.

Uma terceira via é a da obra aberta. Ou seja, quando o artista deixa um espaço de liberdade para que o público reconfigure a obra de arte. O melhor exemplo é o trabalho da brasileira Ligia Clark (1920-1988), que foi se aprofundando, por exemplo, no uso de objetos articulados, como os chamados Bichos. “Ligia fazia obras para serem manipuladas pelo público e ela mesma não sabia no que ia dar. Ela deixava até de se denominar artista e passava a se chamar propositora, tamanha a abertura que ela dava a essas obras. A obra virava o próprio processo”, afirma.

Entler chama a atenção, entretanto, que a produção artística de forma geral, independentemente da escola, sempre se realiza num jogo entre contingências e necessidades: as primeiras conduzem o processo à diversidade e as segundas, à eficiência. “Algumas transformações históricas da arte podem ser pensadas pelo viés da tensão entre uma parte e outra”, explica. “É estranho que, apesar disso, a discussão sobre a arte sempre se fechou para o acaso. Tento evitar cair num jogo retórico para dizer que o acaso está essencialmente na própria arte e não apenas em que o transforme num elemento criativo”, continua.

Esse conceito da arte como uma expressão da subjetividade do artista ganhou força no Romantismo. Foi durante esse período que se criou uma imagem de que a arte ia sendo sempre controlada e orientada pelo sentimento do artista, com uma determinação ainda mais profundamente sua. “Seja pela capacidade de operar um conhecimento em busca de uma imitação da natureza, seja pela sensibilidade que lhe permite projetar seus sentimentos na obra, o artista ainda permanece um ser dotado de uma capacidade incomum”, explica Ronaldo Entler. “E a criação parece ocorrer, segundo tais concepções, num movimento linear que é a transferência desse conhecimento ou desse sentimento para a obra, sem espaço para interferências externas”, prossegue.

No Renascimento, movimento anterior ao Romantismo, a arte adquiriu um valor específico e conquistou a aura de belas artes. Mesmo assim, continuou sendo uma atividade desenvolvida com sagacidade e um objetivo definido: “a representação da natureza, dentro de um certo ideal de realismo”, diz o autor. O conceito clássico da arte é definido, portanto, por uma certa habilidade e eficiência do artista de executar sua produção artística. Na Grécia não havia propriamente um conceito de arte, mas de técnica (techné).

Fazer com arte era fazer com precisão técnica. Mas Platão foi, na maior parte de sua obra, avesso à arte. “Ele a considerava uma atividade menor, manual, enganadora na sua proposta de ‘imitar’. Para Platão, a arte era imperfeita por natureza, porque não tocava a essência das coisas”, explica Entler. “Essa perfeição teria uma relação com a habilidade técnica, não com uma noção mais filosófica de perfeição. Era, assim, o poder de exercer sua vontade numa ação criadora, situação oposta às determinações do acaso”, observa.

O controle é o elemento definidor da concepção de arte que permanece presente no imaginário coletivo até hoje, sugere o pesquisador. À obra de arte, está ainda associada a dificuldade de execução, “uma forte referência para julgamentos cotidianos de uma qualidade artística”, compara. No fim do século 19, entretanto, o acaso começou a ganhar espaço nas artes plásticas. É possível identificar rápidas pinceladas dos impressionistas ou no aparente aspecto inacabado das esculturas de Auguste Rodin (1840-1917) ou de Medardo Rosso (1858-1928). O acaso, contudo, ganhou forma e força apenas nas vanguardas européias do início do século 20, em especial no dadaísmo. No interior desse movimento, a presença do acaso não é apenas um paradoxo. “Ela se torna uma estratégia fundamental para a caracterização do que foi chamado de uma anti-arte”, comenta o autor.

O poeta francês Stephan Mallarmé (1842-1898) é considerado um desbravador. No fim do século 19, publicou Um Lance de Dados, poema que permitia várias possibilidades de leitura por sua disposição de forma não linear nas páginas. O poema adquire, assim, um caráter cíclico. No início está escrito, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Esse verso só será recuperado no final. “Todo pensamento emite um lance de dados!” “Eu procuro o poema como um mistério em que o leitor deve procurar a chave”, justificou o poeta.

O pensamento de Mallarmé atravessou quase todas as experiências que, no século 20, fizeram algum tipo de referência ao acaso. São discípulos dele os concretistas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Foi a partir do século 19 que alguns fenômenos, tanto no campo conceitual quanto no instrumental, vieram flexibilizar o papel do controle e da dificuldade da execução na definição do valor estético. “O mais importante não é buscar a possibilidade de uma expressividade do acaso, e fazê-lo caber forçosamente nos valores tradicionais da arte, mas sim perceber que a arte se transformou, e que talvez já não se pretenda ser como queriam os românticos”, conclui o autor.

O Projeto
Poéticas do acaso: acidentes e encontros na criação artística (nº 95/01557-9); Modalidade Bolsa de doutorado; Orientador
Julio Plaza – Escola de Comunicações e Artes da USP; Bolsista Ronaldo Entler – Escola de Comunicações e Artes da USP

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