No momento em que as indústrias químicas brasileiras resolverem tornar mais refinada a hoje modesta produção de enzimas – uma vasta classe de proteínas indispensáveis à produção de alimentos, bebidas e detergentes -, não terão de partir do zero. Nem buscar conhecimento muito longe. Em Ribeirão Preto, um grupo de biólogos produz pelo menos 30 enzimas de interesse industrial ou científico, muitas delas ainda importadas, a partir de cerca de 15 fungos que atuam em temperaturas relativamente altas (acima de 37 C), uma propriedade rara que reduz o risco de contaminação por outros microrganismos. Outra inovação: a matéria-prima empregada são resíduos de indústrias ou plantações – bagaço de cana-de-açúcar ou sabugo de milho, por exemplo. Em comparação com os métodos habituais de produção, que se baseiam em açúcares importados, o resultado é equivalente.
Ainda que em pequena escala, sujeita a ajustes para chegar a uma escala industrial, a produção do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) exibe até mesmo alternativas à produção de enzimas nobres como as fosfatases, ainda inteiramente importadas. São usadas em testes de medicamentos e alimentos (diferenciam carne de porco ou de boi) e em biologia molecular (permitem o encaixe de seqüências genéticas em fragmentos de DNA). As fosfatases estão entre as mais caras: 100 miligramas de um dos tipos, a alcalina, custam US$ 300.
Na USP de Ribeirão Preto, duas equipes,coordenadas por João Atílio Jorge e por Maria de Lourdes Teixeira de Moraes Polizeli, demonstraram que as fosfatases podem ser feitas – de modo bem mais econômico – a partir de fungos do gênero Aspergillus, que tomam a forma de grãos ocre depois de crescerem. Há pelo menos três alternativas: o Neurospora crassa, um bolor alaranjado, o Scytalidium thermophilum e o Humicola grisea variação thermoidea, ambos pretos. Quando os fungos se alimentam de bagaço de cana, na proporção de 1 grama de resíduo para 100 mililitros de meio de cultura, produzem enzimas que, estima-se, custam dezenas de vezes menos que o equivalente importado.
Mas não é apenas por aí que pode modificar-se a produção nacional, ainda pouco variada. Mesmo a produção dos itens corriqueiros poderia ser otimizada. É o caso da amilase, de uso amplo na fabricação de doces, biscoitos, remédios e bebidas, e ali produzida com o Aspergillus, o Rhizopus, um dos causadores do bolor de pão, e o Neurospora crassa e seus mutantes, entre outros.
Bagaço e açúcares
Em um artigo publicado em fevereiro no Journal of Industrial Microbiology e Biotechnology, Maria de Lourdes demonstra como pode ser inovado o modo pelo qual o Aspergillus phoenicis libera xilanases, enzimas que fragmentam um tipo de açúcar, a xilana, o principal componente da hemicelulose, que forma as paredes das células vegetais. Segundo ela, as xilanases podem reduzir o uso de cloro e de ácidos na produção de papel, em apenas uma das possibilidades de seu emprego industrial.
Normalmente, essa enzima é produzida a partir de xilana (US$ 1,50 o grama). Crescendo em resíduos industriais, esse Aspergillus – isolado do solo e de bagaço de cana dos arredores de Ribeirão Preto – produziu xilosidases em níveis comparáveis: 278,3 unidades por miligramas em xilana e 219,9 em bagaço de cana. Outra comparação foi feita com xilose, outro açúcar importado (US$ 40,00 por 100 gramas), com resultados próximos: 146,7 unidades por miligramas em xilose e 112,3 em sabugo de milho. Houve também experiências bem-sucedidas com palha de arroz, farinha de mandioca e farelo de trigo – até mesmo com papel de filtro. Dando-se materiais simples, mas em abundância, os fungos também respondem com fartura.
“Sabemos o que os fungos produzem e qual deles produz mais o que a gente quer”, comenta Jorge, ao resumir o trabalho de pelo menos 20 anos de um grupo de trabalho que uniu a simplicidade nos métodos e nos materiais de trabalho, a autonomia, a visão de conjunto e uma sólida perspectiva de aplicar os conhecimentos que nascem das pesquisas.
Jorge guarda uma coleção com cerca de 100 amostras de fungos, retirados de plantas, solos ou material em decomposição. Maria de Lourdes formou seu próprio acervo, já com 30 amostras. Nem são raros: podem ser obtidos em bancos de microrganismos até mesmo sem custos. Mais difícil, evidentemente, é descobrir o que podem fazer.
As duas equipes trabalham com duas categorias de fungos: os termófilos, que se desenvolvem melhor em temperaturas acima de 37° C, como o Aspergillus phoenicis, e os mesófilos, cujas condições ótimas de crescimento encontram-se entre 20 e 37° C, caso do Neurospora. Com o tempo, comprovaram que as espécies termófilas de fungos geralmente produzem enzimas em maior quantidade que as do outro grupo. Ponto a favor da simplicidade: as enzimas liberadas pelos aficionados pelo calor são também mais estáveis. Ana Carolina Segatto Rizzatti, uma das doutorandas dogrupo, submeteu uma xilanase a um banho de 60° C durante quatro horas – e nada se modificou.
Tão resistentes, as enzimas dos fungos termofílicos podem ser armazenadas a temperatura ambiente e transportadas sem câmaras refrigeradas, ainda indispensáveis nessa área. Outra vantagem: a contaminação é baixa. “É difícil que as bactérias mais comuns sobrevivam na mesma temperatura dos fungos termofílicos”, diz Maria de Lourdes.
O grupo de Ribeirão Preto coleciona também achados sobre a biologia dos fungos, como resultado de dois projetos que contam com o apoio da FAPESP. No ano passado, em um estudo com o Chaetomium thermophilum, Jorge provou que a enzima maltooligosil trealose sintase também é produzida por fungos. Pensava-se que as bactérias seriam os organismos mais simples capazes de sintetizar essa enzima, que quebra a trealose, um tipo de açúcar que existe também em algas, plantas e insetos.
Açúcar do futuro
Já se sabia que a trealose ameniza os efeitos do frio. A novidade é que pode poupar a planta também do calor excessivo, de acordo com os resultados do doutorado de Ana Carla Medeiros Morato de Aquino com o Rhizopus microsporus variedade rhizopodiformis. Jorge lembra que a trealose já é vista como o açúcar do futuro: poderia ser usada como um protetor de macromoléculas – para aumentar o tempo de validade das vacinas, por exemplo.
A equipe da USP conhece tanto o potencial quanto os próprios limites. “Temos competência na bancada do laboratório”, assegura Jorge. Ele sabe: antes de viabilizar inteiramente as aplicações industriais, seria preciso cumprir algumas etapas. Uma delas é ampliar a escala de produção mantendo o rendimento: por vez, o laboratório produz em média um litro de enzimas, enquanto nas indústrias os tanques de produção têm, digamos, cem mil litros. “Temos um supermercado, mas faltam os compradores”, compara.
Supermercado, aliás, que não pára de crescer. No ano passado, o doutorando Luis Henrique Souza Guimarães percorreu a região de Ilha Solteira em busca de fungos produtores de fosfatases. Voltou feliz: um dos achados foi um raro Rhizopus microsporus, que cresce acima de 50°C. E é um respeitável produtor de fosfatases, submetidas a altas temperaturas nos ensaios de biologia molecular.
Professor da USP há 23 anos, Jorge não vê por que interromper seu trabalho de identificação e entendimento dos fungos, mesmo que avancem os contatos com empresas. Não lhe falta visão histórica. Nos anos 70, quando subiu o preço do petróleo, tornou-se prioritário aumentar a produção de álcool – e um dos caminhos cogitados seria com os fungos, lembra ele.
A cotação do petróleo caiu, o interesse passou, mas as pesquisas prosseguiram. O que faria hoje, se o problema ressurgisse? Em resposta, o pesquisador de 51 anos retira de sua coleção os exemplares que conseguem extrair álcool de bagaço de cana ou, mais amplamente, de celulose (madeira ou mesmo papel velho). “Pode chegar um momento em que a única fonte de combustível possa ser essa”, diz. “O importante é não perdermos o domínio desse conhecimento.”
Do pão e vinho à máquina de lavar
Uma faz o pão crescer, outra o deixa crocante. As enzimas são tão específicas quanto indispensáveis à produção de alimentos – uma lista que inclui queijos, biscoitos, geléias, cerveja e vinho -, detergentes e ração animal.
O Brasil ainda mantém uma posição discreta, próxima a 2%, no mercado mundial de enzimas, estimado em US$ 1,5 trilhão, segundo levantamentos do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Business Communications Company.
Até o momento, as empresas brasileiras concentram-se na produção de enzimas mais simples e de mercado amplo, como o coalho, as amilases e celulases. Desde 1990, tem crescido o déficit da balança comercial de enzimas, em decorrência do uso intensivo de reagentes para biologia molecular e de novas aplicações, como na fabricação de biodetergentes.
O estudo da UFRJ sobre essa área acentua: o Brasil é um grande produtor das matérias-primas das enzimas que acaba importando, por não suprir a contento a demanda nacional, a exemplo da bromelina, obtida do abacaxi (Ananas sp), e a papaína, que provém do mamão (Carica heterophylla). Ambas são compradas principamente de empresas dos Estados Unidos e da Suíça para produção de medicamentos.
Uma situação semelhante ocorre com a lisozima, extraída da clara de ovo, matéria-prima relativamente de baixo custo, que integra o grupo de enzimas de alto valor agregado, para uso médico, cujo preço varia ao redor de US$ 62 por kg. Nesse caso, é a Irlanda que atende quase a totalidade da demanda do país.
Os projetos
1. Bioquímica de Fungos: Estudos de Enzimas de Fungos Filamentosos (nº 95/07446-4); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador João Atílio Jorge – USP de Ribeirão Preto; Investimento
R$ 19.018,30 mais US$ 5.000,00
2. Atividades Enzimáticas com Potencial Biotecnológico Produzidas por Fungos Filamentosos de Hábitos Termofílicos (nº 98/07793-4); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenadora Maria de Lourdes Teixeira de Moraes Polizeli – USP de Ribeirão Preto; Investimento R$ 22.099,55 mais U$ 27,026,25