MIGUEL BOYAYANOs biólogos já conseguem descobrir e entender com precisão os impactos das mudanças climáticas sobre os animais e as plantas, a expansão de insetos danosos à agricultura e o real perigo de vírus causadores de doenças. As projeções sobre situações como essas, que põem em risco o futuro da humanidade, emergem de uma série de programas de computador e compõem uma área de pesquisa relativamente nova, a modelagem ambiental (predictive modelling, em inglês), na qual se destaca o trabalho de um discreto biólogo norte-americano: Andrew Townsend Peterson, do Centro de Pesquisa de Biodiversidade e História Natural da Universidade do Kansas, Estados Unidos.
Aos 38 anos, com 13 artigos já publicados este ano, Peterson participou do desenvolvimento do SpeciesAnalist, programa que integra eletronicamente as coleções biológicas (de animais e plantas) de instituições de pesquisas do mundo todo. Nos dois meses em que esteve no Brasil, o biólogo nascido em Ohio trabalhou com a equipe do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria) – a instituição responsável pela manutenção do SinBiota, o sistema de informação do programa de mapeamento da flora e da fauna do Estado, o Biota-FAPESP – no desenvolvimento do programa paulista de modelagem ambiental: o SpeciesLink, concebido para reunir o material de pesquisa guardado em 12 instituições paulistas e, num segundo momento, pôr o Brasil em contato com a nascente rede mundial de informática para a diversidade.
Sua estada – a mais longa desde que começou a trabalhar com pesquisadores brasileiros, em 1999 – deixou claro como a modelagem pode ajudar a resolver problemas específicos do país, revelando, por exemplo, o deslocamento da leishmaniose, que está deixando as áreas pobres e rurais e se aproximando das cidades. Nesta entrevista, concedida a Carlos Fioravanti na sede do Cria, em Campinas, Peterson conta como essa área de estudos amplia e por vezes corrige os rumos da pesquisa no mundo inteiro.
O que é modelagem ambiental?
Basicamente, qualquer abstração do mundo natural com algum poder de prever eventos com base em princípios gerais. Usamos especificamente a expressão modelagem de nicho ecológico, que concentra seu poder de previsão em fenômenos que se referem à distribuição da biodiversidade.
Em um de seus artigos mais recentes, publicado na Nature, o sr. assegura que as previsões a respeito das mudanças climáticas mundiais, que já não são nada boas, estão subestimadas. Poderia explicar por quê?
Na verdade, as previsões do impacto das mudanças climáticas sobre a biodiversidade foram estimadas de forma inapropriada. Existe uma relação biogeográfica geral segundo a qual altitude e latitude são mais ou menos equivalentes. Portanto, algo como 100 metros de altitude é mais ou menos equivalente a um deslocamento de 800 quilômetros em direção ao pólo. Então, a elevação de um grau na temperatura da Terra é essencialmente a mesma coisa que empurrar as zonas climáticas para cima, em direção aos pólos. A partir daí, estimam-se as mudanças climáticas na Terra por meio de grupos de espécies de um ecossistema, indicando para onde vão as zonas climáticas e o tamanho das populações antes e depois de uma aumento de um grau, digamos. O problema com essa abordagem é que o ecossistema da Amazônia, por exemplo, não é homogêneo, mas complexo, composto por milhões de espécies de plantas, animais e microrganismos. Um dos pontos mais importantes do artigo da Nature foi mostrar que as espécies têm reações muito peculiares. Se a temperatura sobe, elas deveriam migrar para os pólos, mas nem sempre isso acontece. Algumas vão literalmente em direção ao equador, outras para o leste ou oeste, de modo que não conseguimos prever o comportamento de todas quando o clima de um ecossistema se altera.
Algum exemplo?
Há 20 mil anos, no final da última idade do gelo, havia uma floresta de faias e abetos nos Estados Unidos, em uma extensão equivalente ao Estado de São Paulo. Quando o clima mudou, essas espécies deslocaram-se para regiões diferentes e atualmente os abetos estão no norte dos Estados Unidos e no sul do Canadá; e as faias, no leste do Estados Unidos. Não há lugar algum no qual as faias e os abetos apareçam juntos.
Já é possível prever o que vai acontecer com cada espécie?
É possível estimar se o impacto decorrente do aquecimento global seria pequeno ou grande analisando o número de espécies que entrariam em um ecossistema ou sairiam dele. No México, a taxa de extinção é de apenas 3%, mas o número de espécies que mudariam de comunidade é assustador. Portanto, em alguns casos os efeitos das mudanças climáticas podem ser até menos graves do que se previa, como aconteceu com a estimativa de extinção, mas outras vezes pode-se esperar efeitos mais graves. Explorei também esse efeito em áreas planas versus áreas de montanhas para descobrir as relações entre os efeitos das mudanças climáticas e a topologia, e descobri que as plantas de áreas montanhosas podem perder espaço com as mudanças climáticas. É o caso dos campos de altitude no topo da Serra da Mantiqueira, que correm perigo de desaparecer por estarem bem no topo da montanha. Se as zonas climáticas subirem, para onde vão os campos? Não há nada mais alto. Em terras planas como em São Paulo ou na Amazônia, parece que o problema é o movimento.
Poderia explicar?
Imagine que estamos olhando para uma árvore da Amazônia. As condições climáticas mais adequadas para essa árvore podem não mudar, mas se deslocar em 400 quilômetros, por exemplo. Nesse caso a árvore, que não consegue se movimentar, pode se encontrar num local fora do seu clima preferido. Portanto, estamos começando a entender os efeitos negativos da alteração climática em certos tipos de topografia. O México, Canadá, o sul da Índia, os Estados Unidos e agora o Brasil são as áreas em que estamos analisando os tipos de efeitos das mudanças climáticas e os impactos que podem ocorrer nos planos de conservação. Temos feito planos de preservação baseados no presente, mas rearranjos feitos pelo clima poderão ser tão severos que os padrões atuais de diversidade poderão mudar inteiramente. Ao levar as mudanças climáticas em consideração, poderá surgir um quadro totalmente diferente de prioridades de conservação. Por exemplo, a distribuição do cerrado em São Paulo é considerada periférica e degradada. Entretanto, as mudanças climáticas podem tornar o clima do Estado mais propício para o desenvolvimento dessa vegetação, tornando os remanescentes de cerrado no Estado muito mais importantes para a conservação do bioma.
Qual é o conceito mais importante para entender as mudanças ambientais?
Na minha opinião, a chave é entender como uma espécie em particular interage com o ambiente. É o que chamamos de nicho ecológico, que é o hábitat específico em que cada espécie vive. Há pesquisadores que priorizam os processos do ecossistema e estão mais interessados em estudar o comportamento de ecossistemas como a Mata Atlântica ou o rio Amazonas. Querem saber como cada ambiente se comporta, como manipula oxigênio e dióxido de carbono e o que excreta. Tratam cada ecossistema como um grande organismo. Um modelo não exclui o outro. Ambos são importantes e complementares.
Como a modelagem preditiva pode ajudar em outra área, a dinâmica de doenças? Em outro artigo recente, o sr. mostra como um grupo de barbeiros, os triatomas, poderia transmitir a doença de Chagas…
Quando um organismo se instala em outro no qual não deveria estar, a doença surge. Se não deveriam estar em nosso organismo, ficamos doentes. É diferente do que acontece com as bactérias Escherichia coli, que têm uma relação de longa data conosco e não causam mais doenças. Os problemas surgem quando encontramos um parasita estranho, como o vírus da raiva. O reservatório natural da raiva é principalmente o morcego vampiro, para quem o vírus não causa danos por já ter com ele uma relação antiga. Quando o vírus da raiva infecta os seres humanos, que não têm essa relação antiga com o vírus, ficamos doentes e podemos até morrer. Reconstruindo os modelos de interação do reservatório e do vetor, podemos descobrir a dinâmica da doença. Depois, fica mais fácil definir as áreas de risco.
O que é necessário para aplicar a modelagem ao estudo das doenças?
É necessário ter os dados ambientais e mapas eletrônicos de clima, topografia e vegetação, o chamado sistema geográfico de informações, e os pontos de incidência da espécie. Aqui no Brasil, aliás, aqui em São Paulo, vemos uma situação interessante com a leishmaniose, uma doença que sempre ataca as áreas pobres e rurais e de repente está se tornando uma doença preocupante também em áreas pobres urbanas. Além disso, está se deslocando para o sul. Estou trabalhando com Jeffrey Shaw, da Universidade de São Paulo, para entender melhor a dinâmica da doença. Trabalho também com o pessoal da Fundação Oswaldo Cruz com a doença de Chagas, mas com outro grupo de triatomas. Esse grupo de insetos é considerado uma única espécie, mas há dúvidas sobre isso, e meus colegas na Fiocruz ficaram interessados em saber se os membros desse grupo pertencem ao mesmo ecossistema. Analisamos as populações, que são um pouco diferentes morfologicamente, e mostramos que cada uma era ecologicamente diferente. Estamos começando a explorar os detalhes da ecologia e da geografia das doenças com o objetivo de determinar as unidades corretas de gerenciamento e definir um programa de controle de triatomas no Nordeste.
Está surgindo uma nova abordagem da ecologia?
Os fundamentos desta abordagem nasceram em 1917 com Joseph Grennel, o fundador do Museu de Berkeley. A abordagem, portanto, não é nova, novos são os dados e as ferramentas. Para a comunidade científica, tem sido um longo processo de aprendizado. Quando decidi começar a explorar esses métodos, em 1995, mandei quatro propostas de trabalho para a Associação Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Todas foram rejeitadas.
O pior já passou?
Sim. Está quase ganha a batalha de acesso público aos dados sobre biodiversidade. Até alguns anos atrás, eram pouquíssimos os pesquisadores que realmente acreditavam que a informação sobre a biodiversidade é um patrimônio que pertence a todos. Naquela época, a idéia predominante era a de restringir o acesso à informação de forma a ressaltar a importância dos museus. Hoje, quem pensa assim é exceção. Mas ainda existe a batalha científica, que é estabelecer essa nova metodologia de modelos de nichos ecológicos. Ou apresentamos bons produtos científicos e as pessoas se convencem ou falhamos. Não me incomoda mais fazer com que as pessoas compartilhem os dados comigo. Sou curador de uma coleção com cerca de 100 mil aves do mundo todo, mas os considero parte de um patrimônio mundial. Essa coleção na realidade pertence não apenas à minha instituição, mas também aos países de onde os espécimes vieram.
E quanto aos limites da modelagem?
Há limites computacionais, de tempo e de velocidade. Eu adoraria fazer os modelos do mundo inteiro com resolução de um metro com mil coberturas ambientais. Não existe nada que nos impeça, a não ser velocidade e tempo. Em termos práticos, existe uma restrição de área para análise de um milhão de pixels. Já fiz com 23 milhões de pixels, mas o programa fica muito lento. Estamos limitados a um milhão de pixels e 20 a 30 camadas ambientais, mas podemos melhorar. Ricardo Scachetti Pereira, do Cria (Centro de Referência em Informação Ambiental), está ajudando a criar o DesktopGarp, uma versão mais amigável do Garp (Genetic Algorithm for Rule-set Prediction, ou Algoritmo Genético para Previsão Baseada em Regras), criado há dez anos por David Stockwell na Agência Ambiental da Austrália e aperfeiçoado no Centro de Supercomputadores de San Diego. O Garp prevê fenômenos diferentes em distribuições limitadas e em lugares diferentes, mas era muito difícil de usar. Freqüentemente falamos de tolerância fisiológica, que é a tolerância de temperatura de uma determinada espécie, mas raramente podemos perguntar como essas tolerâncias mudam de acordo com a distribuição da espécie. Em um trabalho com o vírus ebola, usamos pela primeira vez essas novas ferramentas e percebemos que a faixa de atuação do vírus era determinada em alguns lugares pela precipitação e em outros pela temperatura. O Garp nos permite uma complexidade muito maior para caracterizar a área de incidência de uma espécie. Posso definir os parâmetros de análise, deixar o computador funcionando sozinho por um mês e depois ter 10 mil modelos de nichos ecológicos. Nenhum outro programa tem essa capacidade.
Como é seu trabalho com o Cria?
O propósito da minha visita é desenvolver aplicações de interesse para o Brasil, em colaboração com pesquisadores locais. Nesses dois meses que vou ficar aqui, espero que no mínimo sejamos capazes de dar uma boa olhada no Estado de São Paulo e começar a estudar a Mata Atlântica e o cerrado. O Cria tem sido um verdadeiro líder, ao agrupar um conjunto de dados fantásticos sobre a biodiversidade paulista sem que haja a necessidade de reunir os dados fisicamente em um único lugar. Os dados ficam nas universidades e museus, mas se integram via internet.
Em que pé está o SpeciesLink?
O SpeciesLink é uma rede distribuída de dados, concebida no Cria para conectar 12 instituições de pesquisa do Estado de São Paulo e integrar os dados com os de outras instituições ao redor do mundo. Quando ficar pronto, em alguns anos, permitirá o compartilhamento de dados sobre a ocorrência das espécies, que é um recurso crítico de que precisamos para levar adiante esses modelos. O grupo do Cria adaptou a tecnologia do SpeciesAnalyst, para arcar com necessidades específicas de São Paulo, mas o SpeciesLink funciona também de forma independente, com a idéia de que todas as redes irão conversar entre si.
Há quantas redes desse tipo funcionando no mundo?
Cinco. Uma na Austrália, outra no México, uma terceira na Europa, o Species Link no Brasil e o SpeciesAnalyst, desenvolvido na Universidade de Kansas. São redes muito diferentes, mas estamos em uma fase de integração em que as soluções convergem para uma solução única. Acho animador ver pessoas de cinco países, incluindo alguns chamados de países em desenvolvimento, conversando em condições de igualdade. Os representantes de cada um estão colaborando num projeto chamado DiGIR (Distributed Generic Information Retrieval, ou Sistema Genérico e Distribuído de Recuperação de Informação), uma tecnologia em comum para o futuro das redes distribuídas de biodiversidade. Nos próximos meses, o pessoal do México, de Kansas, Berkeley, do Cria e da Austrália estarão completando o DiGIR, as redes poderão se integrar e o SpeciesLink poderá não só ver as 12 instituições do Estado de São Paulo mas também as 80 do SpeciesAnalyst e as 30 da rede mexicana. A riqueza de dados crescerá de maneira marcante.
Quais seriam, a seu ver, as questões prioritárias para o Brasil nessa área?
Existem questões bastante interessantes. Uma delas, que é uma prioridade mundial, é a previsão de análise de espécies básicas, que está muito associada ao deslocamento de populações. Os seres humanos estão se deslocando muito mais que há 50 anos. Esse movimento faz com que as espécies também se movam, criando novos problemas. Há, por exemplo, um inseto, o Homalodisca coagulata, que transmite a doença de Pierce, causada por uma das variedades de Xylella fastidiosa. É originário do sul dos Estados Unidos, mas invadiu a Califórnia, a oeste, e se tornou uma praga perigosa não só para as árvores cítricas, mas também para as videiras. Para descobrir qual o potencial de a Xylella que ataca as videiras da Califórnia invadir a América do Sul, por meio desses insetos, aplicamos os modelos no sudeste dos Estados Unidos.
E o que aconteceu?
No lado nativo, os testes foram muito precisos. Aplicado à Califórnia, sem pontos de infestação sobrepostos, o modelo indica uma correspondência com uma estatística significativa. Não só pode prever a distribuição nativa como também a distribuição do invasor. Projetamos o modelo para a América do Sul, preocupados com as plantações de citrus do Estado, mas os citrus parecem não ser vulneráveis a esse inseto. Mas regiões como Salta, na Argentina, ou mesmo o Rio Grande do Sul parecem ser bastante vulneráveis.