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Pecuária

Solução líquida

Uso conjunto de hidratante e diurético combate a intoxicação por amônia em bovinos

EDUARDO CESAR Ração com uréia: rebanho atinge em metade do tempo o peso ideal de abateEDUARDO CESAR

Uma forma barata de garantir durante todo o ano uma fonte constante de proteína para a atividade pecuária de corte em zonas tropicais e subtropicais é fornecer uréia misturada à ração ou sal dado para o gado, sobretudo durante a estação seca, quando há escassez de pasto. Com o suplemento alimentar, que, após uma série de reações químicas, vira proteína no estômago do animal, o rebanho atinge em metade do tempo o peso ideal de abate. O problema é que, se o criador errar a mão na dose do suplemento protéico, ocorre uma intoxicação por amônia, substância oriunda da uréia, de difícil controle e capaz de matar por arritmia e parada cardíaca em poucas horas um boi. Agora, a boa notícia: um novo procedimento terapêutico para esse tipo de problema, simples e cerca de dez vezes mais eficiente do que o tratamento padrão, foi desenvolvido e testado com sucesso por uma equipe de veterinários da Universidade de São Paulo (USP).

Os pesquisadores verificaram que a administração conjunta de uma solução hidratante, geralmente o soro fisiológico, e de um diurético consegue reduzir o grau de intoxicação e salvar a maior parte dos bovinos com excesso de amônia que entram em convulsão, estágio crítico a partir do qual o risco de vida é iminente. Se, ao procedimento acima, for adicionado o uso de aminoácidos do ciclo da uréia, o resultado da nova terapia costuma ser ainda melhor. “Mas não é imprescindível o emprego dos aminoácidos, um produto caro, nesse tratamento alternativo”, garante Enrico Lippi Ortolani, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, que coordenou os estudos sobre intoxicação por amônia.

“Apenas com o hidratante e o diurético é possível contornar o problema.” No mês passado, Ortolani participou do 22º Congresso Mundial de Buiatria, em Hannover, Alemanha, onde expôs o tratamento alternativo. O procedimento usual para tentar neutralizar a intoxicação, cuja eficácia, segundo Ortolani, deixa a desejar, é administrar ácido acético, o popular vinagre, nos animais que apresentam o problema.

O emprego do tratamento alternativo estimula uma ação crucial para um organismo intoxicado por amônia: urinar. Por meio de uma série de experimentos, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a equipe do veterinário verificou que animais com maior capacidade de micção tinham espontaneamente, mesmo sem ter sido submetidos a qualquer tratamento, maior chance de escapar com vida da intoxicação. Isso porque a concentração de amônia (e uréia) na urina é diretamente proporcional à quantidade de líquidos filtrados pelo rim e eliminados pelo corpo.

Também foi verificado que o pH (índice de acidez ou basicidade) sanguíneo e da urina dos animais que faziam muito xixi era ligeiramente menor do que 7 (levemente ácido) do que o dos bichos que apresentavam pouca micção. Havia uma relação clara entre esses dois parâmetros: quanto mais baixo (ácido) era o pH da urina, mais amônia era eliminada por essa via. Esse dado parece ser importante. Ao atingir um pH superior a 7 (básico ou alcalino), o fluido do rúmen passa a favorecer a absorção da amônia pela corrente sanguínea, o que abre caminho para a intoxicação.

Ao propor o uso de hidratante associado a diurético como nova terapia a esse quadro de intoxicação, Ortolani, portanto, tenta produzir temporariamente em todos os animais com excesso de amônia o mesmo tipo de proteção natural a essa substância que, de outra forma, permaneceria um privilégio de poucos bichos. Durante seu mestrado, veterinária Sandra Satiko Kitamura verificou que cerca de 60% dos ratos intoxicados por amônia sobreviveram a esse quadro clínico com o emprego de diurético e hidratante, contra apenas 6% entre os roedores que não receberam tratamento.

“Em experimentos com 25 bovinos com convulsões, nos quais havíamos provocado uma intoxicação similar à que acontece em campo, conseguimos reverter o problema em todos os casos com a nova terapia”, diz Ortolani. “Não perdemos um animal.” Uma hora após terem recebido por via intravenosa a hidratação e o diurético, os animais tratados já haviam eliminado cerca de 30% da amônia que haviam recebido. No tratamento convencional, esse índice é de menos de 3%.

A alta concentração de amônia provoca uma seqüência de eventos que, se não controlados de forma rápida, leva à morte dos animais. Inicialmente, o excesso dessa substância deprime o gado intoxicado e dificulta a sua permanência em pé. O boi sente tremores musculares e perturbações nervosas, pois essa substância interfere em seu cérebro, e acaba indo ao solo. Baba muito, tem dificuldade em engolir e fica desidratado. A amônia provoca o acúmulo de água no pulmão, onde ocorre um edema (acúmulo de água).

“O rúmen pára de funcionar, fica inchado e comprime os outros órgãos”, afirma Ortolani. O início das convulsões é um sinal de que, se não for feito nada para reverter o quadro de intoxicação, o rebanho está na iminência de perder um membro. Com a nova terapia, esses sintomas são controlados em menos tempo. “Os animais tratados com hidratante e diurético restabeleceram mais rapidamente a movimentação do rúmen e o apetite e levantaram mais depressa do solo”, afirma Sandra. O edema pulmonar também foi contornado mais facilmente.

A existência de amônia no rúmen do boi é imprescindível para que a uréia dada ao animal seja realmente fonte de proteína. No gado, como nas ovelhas, o rúmen é a parte do estômago onde a comida é digerida com o auxílio de enzimas produzidas por microrganismos que ali vivem em simbiose. Quando alcança o rúmen, a uréia é transformadas pela ação de uma enzima, a urease, e dá origem a amônia e dióxido de carbono. A partir da amônia, bactérias do rúmen sintetizam proteínas, que vão enriquecer a dieta do boi. O chamado ciclo da uréia é algo, em geral, benéfico à criação. Às vezes, no entanto, ocorre algum problema nesse sistema – mudança de pH no rúmen, dificuldade de ingestão, desbalanceamento da mistura uréia/ração – e o fígado e o sangue não conseguem mais dar conta de neutralizar a presença em excesso de amônia no rúmen. Ocorre, então, a intoxicação.

Para evitar o excesso de amônia no gado, a quantidade de uréia, um sólido no formato de cristais brancos, adicionada à comida dos bovinos não deve exceder 1% da matéria seca da ração ou 3% do concentrado dado aos animais. Em ruminantes não acostumados com esse reforço alimentar, deve ocorrer um processo de adaptação gradual ao suplemento protéico. Caso contrário, o risco de intoxicação é grande. Quando há descontinuidade no fornecimento de uréia, o processo de adaptação tem de ser reiniciado. Se isso não for feito, a intoxicação por amônia pode ocorrer.

Ou seja, qualquer descuido no emprego dessa fonte barata de proteína e os animais podem ficar doentes. Como os ganhos em termos de produtividade são grandes com o uso da uréia – o animal atinge o peso ideal para abate em no máximo três anos, em vez dos tradicionais cinco anos -, os pecuaristas nacionais, donos de cerca de 160 milhões de cabeças de gado, um dos maiores rebanhos do mundo, recorrem cada vez mais a esse reforço alimentar. Nesse contexto, um tratamento mais eficaz contra a intoxicação por amônia, como o proposto por Ortolani, é de fundamental importância para quem trabalha com gado de corte.

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