Quatro novas variedades de maracujazeiro obtidas por uma técnica de manipulação genética inédita no Brasil estão em cultivo no campus da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. São plantas originárias de um processo chamado hibridação somática, que possibilita a fusão de células de espécies cultivadas com espécies silvestres resistentes a várias doenças.
Bem diferentes dos híbridos interespecíficos usados na agricultura, que são obtidos por cruzamento, eles têm a soma do número de cromossomos das espécies usadas na fusão celular. A técnica também foi usada no melhoramento de citros e promete bons resultados para o controle de doenças que freqüentemente atacam os pomares brasileiros. As novas variedades poderão ser usadas como porta-enxerto nas culturas de maracujá e de citros.
Diferentes dos transgênicos, obtidos pela transformação da célula com a introdução de genes oriundos de outras espécies, os híbridos somáticos são produzidos pela fusão completa de duas células somáticas isoladas de espécies de um mesmo gênero. Embora de aplicação mais restrita – a técnica não levanta suspeitas de riscos ambientais ou para a saúde do homem -, a hibridação somática resulta em variedades que conservam todas as características genéticas das duas plantas que lhes deram origem. A técnica surgiu na década de 80 como um recurso para o melhoramento de plantas.
É empregada com sucesso na citricultura nos Estados Unidos, França, Espanha e Israel. No Brasil, os primeiros estudos para melhorar a cultura do maracujá começaram há dez anos sob a coordenação da professora Maria Lúcia Carneiro Vieira, do Departamento de Genética da Esalq. Desde então, a pesquisadora se dedica à obtenção de porta-enxertos mais resistentes de maracujá, reduzindo a incidência de doenças provocadas principalmente por fungos. “Se considerarmos doenças provocadas por vírus, bactérias e fungos, juntas, elas provocam uma perda de 35% na produção dos cerca de 45 mil hectares cultivados em todo o país”, afirma Maria Lúcia. Os projetos financiados pela FAPESP já somam investimentos de US$ 200 mil.
As pesquisas para o melhoramento de citros também avançam. Nos últimos cinco anos, o professor Francisco de Assis Alves Mourão Filho, do Departamento de Produção Vegetal, e a professora Beatriz Januzzi Mendes, do Laboratório de Biotecnologia Vegetal do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), já produziram 11 combinações de híbridos somáticos com o objetivo de controlar doenças nos laranjais. A pesquisa foi desenvolvida dentro do Programa de apoio a Jovens Pesquisadores, da FAPESP, e recebeu investimentos de R$ 150 mil.
Indústria de sucos
O maracujazeiro é uma planta nativa da América do Sul. Das 600 espécies conhecidas, cerca de 400 são originárias de várias regiões do Brasil. Apenas cinco são cultivadas, sendo a Passiflora edulis f. flavicarpa, o maracujá-azedo, a principal espécie utilizada pelos agricultores, que a cultivam para a indústria de sucos e que confere ao país o título de maior produtor mundial de maracujá. “O suco do maracujá é o segundo mais exportado pelo Brasil – só perde para o de laranja -, e o principal mercado comprador é a Europa, onde o maracujá é muito apreciado pelo sabor considerado exótico”, informa Maria Lúcia.
Apesar de bastante rentável – cerca de R$ 8 mil por hectare plantado -, a cultura do maracujá enfrenta sérios problemas devido à falta de material genético selecionado, pois os programas de melhoramento são ainda incipientes. “Trata-se de uma domesticação muito recente”, explica a pesquisadora. Diferente da uva, por exemplo, cuja domesticação é milenar, o maracujá começou a ser cultivado após a colonização, há menos de 500 anos. Com a introdução da monocultura, a espécie se tornou alvo de muitas doenças que afetam consideravelmente a produção.
O ataque de doenças provocou, nos últimos anos, uma rotatividade da cultura, que adquiriu um caráter nômade. Essa característica também acarreta outro tipo de prejuízo. O maracujazeiro é plantado em mourões, de forma que a planta cresça na vertical e se espalhe pelas laterais, como uma parreira. Isso implica alto custo na implantação e no manejo da cultura. “Quando incide a doença severamente, o agricultor perde todo esse investimento”, lembra Maria Lúcia. Para evitar a perda das plantas no período de chuvas, quando a incidência de doenças aumenta em decorrência da umidade e temperatura elevadas, os agricultores substituem todas as plantas logo após a primeira safra, plantando tudo de novo para a safra seguinte, tornando a cultura anual. “Embora não resolva o problema, isso é menos oneroso que o caráter migratório.”
A esperança da pesquisadora para uma solução eficiente está no germoplasma silvestre. Há várias coleções de passifloras no Brasil, por exemplo, na Embrapa Mandioca e Fruticultura, em Cruz das Almas, na Bahia, e na unidade de Jaboticabal da Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde Maria Lúcia mantém laços de colaboração. “Nessas espécies já foram identificados genes de resistência com bom potencial para melhorar o desempenho da espécie comercial”, afirma.
A introdução desses genes pode ser feita de várias formas. Uma delas é o cruzamento de espécies silvestres como a cultivada para obter um híbrido sexual. “Isso já foi feito há alguns anos, mas a maioria desses híbridos não se presta como doador de pólen. Para recuperar a produtividade da espécie cultivada, seriam necessários vários retrocruzamentos com a espécie comercial, o que é inviável porque os híbridos sexuais são estéreis”, explica Maria Lúcia.
Caminhos da fusão
A saída para a obtenção de plantas mais resistentes veio com a biotecnologia no sistema de hibridização. No caso do maracujá, as células são extraídas das folhas, tanto da espécie cultivada como da silvestre. O sucesso da técnica depende de mecanismos eficientes que promovam a fusão celular, o que pode ser feito por um agente químico ou por choques de corrente elétrica. Em ambos os casos, o objetivo é provocar a destruição das paredes celulares, que funcionam como barreiras impedindo a fusão. As células sem parede, chamadas protoplastos, são mantidas sob pressão osmótica controlada, para evitar o rompimento da membrana plasmática, o que provocaria a destruição da célula.
Após vários processos de lavagem e centrifugações, os protoplastos são mantidos em meio de cultura, onde a parede celular é regenerada e as células híbridas passam a se multiplicar. Surgem pequenas colônias originadas de uma única célula, que podem ser observadas ao microscópio óptico. Geralmente, depois de 28 dias, as colônias podem ser vistas a olho nu e são transferidas para um meio sólido. Forma-se uma massa indiferenciada de células, chamada calo, que dará origem a muitos brotos. Cada um deles se desenvolverá como uma nova planta, que ainda precisa passar por várias análises até que se tenha garantias de que se trata de um híbrido somático verdadeiro.
Depois de selecionados, os híbridos somáticos são cultivados até a fase adulta, quando florescem e dão frutos. A nova planta mantém todas as características genéticas das duas plantas originais (a comercial e a silvestre). “Isso ocorre porque a fusão cria um genoma tetraplóide, ou seja, que tem o dobro do número de cromossomos da espécie na Natureza”, explica Maria Lúcia.
Resistente a doenças
Os primeiros híbridos somáticos foram obtidos em 1995, com a fusão de células do maracujá-azedo (Passiflora edulis f. flavicarpa), que é a variedade mais cultivada, com células das espécies silvestres P. cincinnata (que é resistente à bacteriose causada por Xanthomonas sp. pv. passiflorae), P. giberti e P. alata (resistentes à morte prematura, de etiologia ainda desconhecida, que causa o definhamento das plantas). A espécie P. alata (ou maracujá- doce) também se mostra resistente à murcha, uma doença de solo provocada pelo fungo Fusarium oxysporum.
“Esses híbridos tendem a ser mais vigorosos, a ter folhas e caules mais espessos, porque suas células são maiores”, explica a pesquisadora. “No entanto, eles não são produtivos e sua aplicação mais importante é como porta-enxertos para a variedade comercial.” Além de mais vigoroso, espera-se que o híbrido somático tenha maior resistência a doenças de solo e que apresente alguma atenuação dos sintomas provocados pela bactéria Xanthomonas, servindo de proteção para a copa utilizada na enxertia. As mudas de maracujá comercial enxertadas nos híbridos apresentaram bom desenvolvimento tanto no que se refere à copa como ao porta-enxerto. O próximo passo é avaliar seu desempenho quanto à produtividade e resistência a doenças.
Ganho na citricultura
A expectativa dos pesquisadores é que a hibridação somática promova um salto muito positivo também no melhoramento de citros. Segundo Mourão Filho, programas de melhoramento convencional existem há mais de cem anos, mas os resultados não são bons, porque as plantas cítricas têm algumas características que dificultam o melhoramento. Um dos problemas é a alta variabilidade do resultado dos cruzamentos. “Quando se faz a polinização de uma planta com uma variedade de outra espécie, a progênie varia muito nas suas características”, diz. “Você pode até ter uma planta com tolerância à seca ou a certas doenças, mas ela perdeu as características desejáveis da planta original.”
Outro problema: devido a uma característica das sementes de citros, a germinação dá origem não apenas a um embrião zigótico, que é resultante do grão de pólen com o óvulo, mas também a vários outros que são idênticos à mãe. “É como voltar à estaca zero em melhoramento, porque, na hora de semear, recuperam-se plantas idênticas à mãe”, afirma.
A estratégia adotada pelos pesquisadores foi obter variedades mais resistentes para ser usadas como porta-enxertos. No campo, a variedade mais utilizada hoje é o limão-cravo. Embora muito tolerante à seca e vigoroso, ele é muito sensível ao declínio, uma doença de causa desconhecida que leva à morte da planta, e à gomose, doença provocada por fungos. “Mas existem outros porta-enxertos, como a laranja-doce ou laranja-caipira, que são mais tolerantes ao declínio, embora sejam sensíveis à seca. Assim, nosso objetivo foi somar variações genéticas com características complementares para melhorar o desempenho dos porta-enxertos”, explica Mourão Filho.
Atualmente, os 11 híbridos de citros obtidos no projeto estão em fase de crescimento. A próxima etapa, que está sendo financiada pelo Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), é fazer a enxertia e levar as plantas ao campo para avaliação de resistência a doenças e obtenção de um índice de produtividade. Os pesquisadores estão otimistas. “Com certeza, vamos obter bons resultados para o agricultor”, afirma Mourão Filho. Mas o resultado mais importante já foi obtido: o domínio de uma técnica que promete dar muitos frutos nos próximos anos.
Caminho transgênico
Além dos híbridos somáticos, Maria Lúcia busca alternativas para o melhoramento do maracujá. Uma delas é a produção de variedades transgênicas, mais tolerantes à bacteriose provocada pela Xanthomonas. O gene bactericida atacina A foi extraído da Trichoplusia ni, uma mariposa que freqüentemente ataca plantações de repolho, couve-flor e soja. A transformação dos tecidos da planta foi obtida por bombardeamento de partículas de tungstênio. Dezenas de brotos transgênicos estão em fase de crescimento em meio de cultura. Segundo Maria Lúcia, a pesquisa deve levar cinco anos para trazer resultados conclusivos, considerando todos os procedimentos de biossegurança envolvidos no processo.
Outra frente da batalha contra a Xanthomonas é a busca de genes resistentes nas populações exóticas (de fora da América do Sul) de maracujá. “Realizamos um cruzamento muito promissor entre uma variedade rústica, oriunda do Marrocos, na África, e resistente á Xanthomonas, com uma variedade comercial (Maguary), suscetível à bactéria”, conta a pesquisadora. As 90 plantas obtidas desse cruzamento foram analisadas quanto ao seu perfil de DNA e foi construído um mapa de ligação contendo os marcadores existentes no DNA.
Esse mapa molecular é o primeiro no mundo considerando se tratar de uma espécie fruteira tropical. Também para cada indivíduo foram analisados os níveis de resistência a Xanthomonas. “Observamos que há indivíduos da população filial que se mostram mais resistentes que o genitor marroquino, indicando haver possibilidade de resistência à bacteriose”, afirma.
Agora, as 90 plantinhas estão sendo transferidas para o campo, onde serão avaliados os níveis de produtividade. Elas farão parte de uma população de plantas de maracujá que vão dar novo impulso à cultura dessa fruta no Brasil.
Os projetos
1. Hibridação somática em maracujazeiro, estudos básicos e suas aplicações no melhoramento genético (nº 95/03029-0); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Pesquisa; Coordenadora Maria Lúcia Carneiro Vieira – Esalq/USP; Investimento R$ 87.227,00
2. Produção de híbridos somáticos de citros através da fusão de protoplastos (nº 95/09044-0); Modalidade Linha Regular de Auxílio à Pesquisa; Coordenadora Francisco de Assis AlvesMourão Filho – Esalq/USP; Investimento R$ 497.090,58