infográficos ana paula campos ilustrações fabio otuboA descoberta mais famosa do Grande Colisor de Hádrons (LHC) foi, sem dúvida, a detecção da partícula elementar conhecida como bóson de Higgs. Anunciada em 4 de julho de 2012, essa descoberta rendeu o Nobel de Física deste ano a Peter Higgs e François Englert, dois dos físicos teóricos que propuseram sua existência nos anos 1960. Mas o tal bóson, que explicaria a origem da massa de todas as partículas elementares, não é a única coisa interessante que vem aparecendo nas colisões produzidas desde 2009 pelo mais poderoso acelerador de partículas já construído, instalado na fronteira da França com a Suíça e coordenado pela Organização Europeia para Pesquisas Nucleares (Cern).
Enquanto o bóson de Higgs foi descoberto analisando o resultado de colisões de um próton contra outro, parte dos físicos envolvidos nos experimentos do LHC, incluindo pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do ABC (UFABC), estão mais interessados em usar a energia do acelerador para fazer núcleos atômicos de chumbo, com 82 prótons e 126 nêutrons, colidirem uns contra os outros. A energia dessas colisões desfaz os prótons e os nêutrons (partículas compostas) em seus componentes elementares, partículas indivisíveis chamadas quarks e glúons.
Por um brevíssimo instante após a colisão, os quarks e glúons formam um líquido: o plasma de quarks e glúons, um estado da matéria pouco conhecido, mais denso que a matéria do núcleo dos átomos e cerca de 250 mil vezes mais quente que o interior do Sol. Os físicos brasileiros colaboraram com análises divulgadas neste ano que revelaram comportamentos completamente inesperados desse plasma, para os quais ainda não há uma explicação convincente.
“A energia extrema dessas colisões recria as mesmas condições da matéria nuclear nos primórdios do Universo”, explica Jun Takahashi, físico da Unicamp que integra a equipe do A Large Ion Collider Experiment (Alice), o único dos detectores do LHC – são quatro – projetado para observar as colisões de chumbo. Takahashi e outros pesquisadores paulistas apresentaram alguns resultados recentes dos experimentos no LHC durante workshop realizado em agosto na FAPESP.
Os físicos acreditam que até cerca de 10 milionésimos de segundo depois do Big Bang, a explosão que teria gerado o cosmo há 13,8 bilhões de anos, o Universo era preenchido por um oceano de quarks e glúons – alguns chamam essa condição de sopa primordial –, que, ao esfriar, originou os prótons e os nêutrons. O fato de a matéria do Universo atual estar aglomerada em estrelas e planetas, e não espalhada pelo espaço como uma nuvem uniforme de gás e poeira, é ao menos em parte resultado de ondulações nessa sopa. “Estudar o comportamento coletivo dos quarks e dos glúons ajuda a entender como o Universo evoluiu”, conclui Takahashi.
Outro mistério que envolve a interação entre quarks e glúons é a origem da massa. O bóson de Higgs só explica a massa das partículas elementares, como os elétrons, os múons e os seis tipos conhecidos de quarks, além de suas correspondentes antipartículas (partículas idênticas com cargas elétricas opostas). Como os elétrons são extremamente leves, a massa dos átomos vem quase toda do núcleo, feito de prótons e nêutrons. Essas partículas são compostas: formam-se pela união de trios de quarks, ligados pela força nuclear forte, transmitida por partículas sem massa, os glúons, emitidos e absorvidos pelos quarks. A soma da massa dos quarks de um próton ou de um nêutron representa só 1% de sua massa total. Os 99% restantes vêm da energia da interação de seus quarks e glúons.
Comportamento coletivo
Desde os anos 1970 os físicos acreditam ter encontrado as leis gerais que descrevem a força nuclear forte, mas ninguém entende bem os detalhes do movimento coletivo dos quarks e glúons. “É como o caso da água”, Takahashi compara. “Sabemos que é feita de moléculas de H2O, mas conhecer isso não diz como a água se transforma em vapor, resultado do comportamento coletivo das moléculas.”
No Universo atual quarks e glúons nunca estão isolados. Tanto os quarks quanto suas antipartículas (antiquarks) sempre se unem em partículas compostas que recebem o nome de hádrons – esses hádrons podem ser, como os prótons e os nêutrons, feitos de trios de quarks (bárions) ou de pares de quarks e antiquarks (mésons). O motivo é que, ao contrário das demais forças fundamentais da natureza, que perdem intensidade com a distância, a força nuclear forte aumenta à medida que dois quarks se afastam um do outro. “Pense em duas bolas conectadas por um elástico”, explica o físico David Chinellato, da Unicamp, que também participa do Alice. “Quando uma se afasta da outra, a tensão no elástico aumenta, e quando elas se aproximam o suficiente, a tensão desaparece e as bolas se movimentam livres.”
O objetivo das colisões de núcleos pesados é comprimir prótons e nêutrons até que seus quarks e glúons fiquem soltos por um instante. A energia da colisão também cria novos pares de quarks e antiquarks, além de outras partículas elementares. Em seguida, a temperatura e a densidade no ponto de colisão começam a diminuir e os quarks se recombinam, formando milhares de novos hádrons, cujas trajetórias são registradas pelos detectores do experimento.
infográficos ana paula campos ilustrações fabio otuboIndícios de que os quarks poderiam se libertar dos hádrons e mésons começaram a surgir nos anos 1980 e 1990 no acelerador Super Proton Synchrotron no Cern. Mas a descoberta do plasma de quarks e glúons só ocorreu em 2005, quando pesquisadores do Colisor de Íons Pesados Relativísticos (Rhic), nos Estados Unidos, anunciaram ter evidências suficientes de que colisões de núcleos de ouro haviam produzido um estado em que quarks e glúons não estavam presos no interior de hádrons, mas também não estavam totalmente livres, como as moléculas de um gás ideal. Para a surpresa de todos, os quarks e os glúons pareciam formar uma gota de líquido capaz de fluir perfeitamente, quase sem viscosidade.
Em novembro de 2010, o LHC interrompeu suas colisões entre prótons isolados e realizou por um mês suas primeiras colisões de núcleos de chumbo, com uma energia cerca de 14 vezes maior que a das colisões no Rhic – mais colisões de chumbo foram repetidas em novembro de 2011 e no início deste ano. Alguns modelos teóricos previam que nesse nível de energia quarks e glúons se comportariam como um gás, mas foi observado um estado líquido semelhante ao registrado no Rhic. Estima-se que as gotas do plasma de quarks e glúons produzidas no LHC sejam duas vezes maiores que as do Rhic e que sua temperatura tenha chegado a 7 trilhões de graus (250 mil vezes a temperatura do núcleo do Sol).
As colisões de chumbo no LHC são estudadas por quase 1.200 pesquisadores de 36 países que trabalham no detector Alice. A participação brasileira no experimento é coordenada pelo físico Alejandro Szanto de Toledo, que trabalhou no Rhic até 2006. Ele e seus colegas Alexandre Suaide e Marcelo Munhoz, todos da USP, estudam hádrons feitos de quarks do tipo charm e bottom, milhares de vezes mais pesados que os quarks up e down, que constituem os prótons e os nêutrons. “O interessante é que esses quarks precisam de muita energia para se formar”, explica Munhoz. “Eles aparecem bem no início da colisão e por isso podem contar toda a história dela, porque têm tempo de interagir com tudo o que se forma em seguida.”
A pedra e o pedregulho
Uma expectativa dos pesquisadores era que os hádrons de quarks mais pesados perderiam menos energia que os de quarks mais leves ao atravessar o plasma, assim como uma pedra gigante sofre menos a ação da correnteza de um rio do que um pedregulho. “Isso não foi observado no Rhic nem no LHC”, diz Munhoz. “Ou não entendemos direito como os quarks perdem energia, ou não entendemos as propriedades do plasma.”
Takahashi e Chinellato se concentram em analisar os hádrons feitos de quarks mais leves, produzidos em maior quantidade nas colisões. Chinellato coordena o trabalho de 80 pesquisadores que estudam hádrons contendo o quark strange, cerca de 100 vezes mais pesado do que os quarks up e down. Em artigo divulgado em julho no repositório eletrônico ArXiv, os pesquisadores do Alice observaram que em certa faixa de momento (grandeza que dá uma ideia da energia das partículas) as colisões de chumbo tendem a produzir mais bárions (trios) contendo quarks strange do que mésons (duos) de quarks strange, efeito esperado por algumas teorias. Mas, inesperadamente, o Alice também observou um efeito semelhante, de intensidade menor, em colisões de núcleos de chumbo contra prótons, nas quais, em princípio, o plasma não deveria se formar. “Há vários mecanismos físicos possíveis para explicar isso”, diz Takahashi. “Estamos tentando entender qual é o mais adequado.”
Novos fenômenos envolvendo núcleos pesados também estão sendo descobertos pela equipe de outro detector do LHC, o Compact Muon Solenoid (CMS), do qual participam 3 mil pesquisadores de 40 países – entre eles, o grupo coordenado por Sergio Novaes na Unesp e na UFABC. Na Unesp, a física Sandra Padula desenvolve e aplica técnicas para combinar trajetórias das partículas produzidas nas colisões e, assim, estimar o tamanho do sistema formado, o movimento coletivo das partículas e outras propriedades do meio de que vieram. Um dos efeitos observados em colisões entre núcleos de ouro no Rhic e entre núcleos de chumbo no LHC foi o surgimento de uma estrutura que lembra uma cordilheira (ridge), que gerou várias tentativas teóricas de explicação. “Uma delas considera que essa estrutura surge porque o plasma se assemelha a um líquido que escoa sem viscosidade”, conta Sandra. “E que as partículas que se formam refletiriam esse comportamento coletivo.”
O problema é que uma versão semelhante desse efeito também foi observada no CMS, em colisões entre prótons e em colisões entre prótons e núcleos de chumbo – duas situações em que não se esperaria a formação do plasma.
As colisões no LHC estão suspensas desde fevereiro. O acelerador foi desligado para passar por melhorias que devem aumentar a energia de suas colisões e a sensibilidade de seus instrumentos. Os experimentos recomeçam em 2015 e espera-se que até 2018 a energia seja o dobro da atual. “Estão sendo desenvolvidas simulações do que pode acontecer nesse nível de energia”, diz Sandra, “mas acho o inesperado mais interessante.”
Em 2018, o LHC deve parar novamente para mais melhorias. O grupo de Szanto, em parceria com a equipe do engenheiro Wilhelmus Van Noije, da Escola Politécnica da USP, deve participar da construção de componentes microeletrônicos para aprimorar o sistema de detecção do Alice. Novaes e sua equipe, por sua vez, deverão participar do criação de componentes microletrônicos para melhorar a capacidade de detecção do CMS.
Projetos
1. Física nuclear de altas energias no Rhic e LHC (2012/04583-8); Modalidade Projeto Temático; Coord. Alejando Szanto de Toledo IF/USP; Investimento R$ 2.789.509,20 (FAPESP).
2. Física experimental hadrônica no Rhic e LHC (2012/02895-2); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Jun Takahashi – IF/Unicamp; Investimento R$ 104.995,95 (FAPESP).
3. Centro Regional de Análise de São Paulo: participação nos experimentos DZero e CMS (2008/02799-8); Modalidade Projeto Temático; Coord. Sergio Ferraz Novaes – IFT/Unesp; Investimento R$ 2.026.797,78 (FAPESP).
4. Projeto de um Asic de aquisição e processamento digital de sinais para o Time Projection Chamber do experimento Alice (2013/06885-4); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Wilhelmus Van Noije – Escola Politécnica/USP; Investimento R$ 858.978,38 (FAPESP)
Artigos científicos
ALICE Collaboration. Multiplicity Dependence of Pion, Kaon, Proton and Lambda Production in p-Pb Collisions at sqrt (sNN) = 5.02 TeV. eprint arXiv:1307.6796. jul. 2013.
CMS Collaboration. Multiplicity and transverse-momentum dependence of two-and four-particle correlations in p-Pb and Pb-Pb collisions. Physics Letters B. v. 724, n. 213. mai. 2013.