Por que algumas plantas conseguem viver quase metade do ano em meio à escuridão líquida, totalmente submersas pelas cheias dos rios da Amazônia, enquanto outros exemplares da mesma espécie não resistem sequer duas semanas embaixo d’água? Depois de comparar sementes e mudas de uma perfumada árvore da Região Norte, a sucuuba (Himatanthus sucuuba), obtidas em zonas inundadas de várzea e em áreas secas de terra firme nos arredores de Manaus, uma equipe nacional de botânicos e ecólogos encontrou uma série de pistas que ajudam a entender esse enigma evolutivo. Embora apresentem aparência externa idêntica à de suas irmãs encontradas nas porções não alagáveis da floresta, as plantas da várzea desenvolveram uma forma particular de armazenar e gastar energia que lhes garante a sobrevivência nesse ambiente duplamente hostil à maioria dos vegetais, sem luz e com escassa quantidade de oxigênio. Provavelmente como resultado de um longo processo adaptativo que permitiu sua proliferação à beira dos rios, as sucuubas instaladas nas margens alagadiças armazenam cerca de 30% mais carboidratos em suas raízes e consomem os açúcares que lhes servem de combustível de maneira mais econômica do que as plantas oriundas da área seca.
Apesar de serem constituídas das mesmas reservas químicas, as sementes de sucuuba da várzea e as de terra firme apresentam concentrações díspares desses compostos – e essas desigualdades também ajudam a explicar por que apenas as primeiras não perecem no meio liquido. As sementes originárias das áreas alagadas são mais duras (têm uma quantidade maior de polissacarídios que formam sua parede celular) e se mostram quase impermeáveis. “Se, do ponto de vista da morfologia, as árvores que vivem nesses dois ambientes distintos são iguais e pertencem à mesma espécie, podemos dizer que, fisiologicamente, elas já se comportam como se fossem duas espécies diferentes”, diz a botânica Cristiane Ferreira, da Universidade de Brasília (UnB), primeira autora de um artigo científico publicado sobre a planta, informalmente chamada de jasmim da Amazônia por ter flores e aromas semelhantes aos do jasmim, na edição de novembro da revista Annals of Botany. “Flagramos a sucuuba no meio do processo de especiação”, afirma a ecóloga Maria Teresa Fernandez Piedade, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, outra autora do estudo. “E é provável que o mesmo esteja ocorrendo com outras espécies da região que também estão adaptadas a diferentes ambientes.” Análises genéticas preliminares ainda indicam que o DNA das duas variedades tende ao distanciamento.
A sucuuba – uma árvore que chega a durar 70 anos, atinge na idade adulta 25 metros de altura, a cujo látex se atribuem propriedades anti-inflamatórias, analgésicas e vermicidas – está longe de ser a única planta que se desenvolve tanto em áreas secas como inundadas da Amazônia. Os especialistas estimam que cerca de 30% das espécies de várzea também ocorrem em terra firme. Mas a planta é um caso extremo de adaptação, ideal para um estudo que tenta entender os mecanismos que possibilitam a sobrevivência de vegetais em zonas alagadas. “Garimpamos uma espécie bem emblemática dessa questão”, comenta Maria Teresa. Seu hábitat por excelência é o mais extremo em termos do contato com o meio líquido, a várzea baixa, colada às margens dos rios, justamente o primeiro ponto a sentir os efeitos das cheias e o último a se livrar delas. Nessa região, as águas inevitavelmente avançam sobre as bordas dos rios, mesmo em anos pouco chuvosos, diferentemente do que se passa na várzea alta, onde nem sempre há alagamentos e, quando há, sua extensão e duração são menores.
A resistência ao meio aquático da sucuuba é impressionante. Até atingir os 10 anos de idade, quando provavelmente terá adquirido altura suficiente (uns seis metros) para manter a parte superior do tronco e a copa fora do alcance das cheias, a planta terá passado quase metade de sua vida totalmente submersa pelas águas. Como outras plantas que vivem em áreas alagadiças, onde a luz penetra no máximo três metros água adentro, os exemplares adultos da sucuuba exibem em seu caule as marcas deixadas pela última enchente.
Quando se encontram mergulhadas nas trevas aquáticas, cobertas durante cinco meses seguidos por uma coluna de até seis metros de água, as sucuubas da várzea entram numa fase que lembra vagamente a hibernação dos bichos no ambiente gelado: gastam mais lentamente suas reservas de energia e não investem em crescimento vertical. Economizam ao máximo seus açúcares para que possam usá-los no momento mais adequado, na época de estiagem, quando a prioridade será ganhar altura suficiente para escapar da próxima inundação sazonal ou minimizar seus efeitos. Afinal, no período em que as águas retornam aos leitos dos rios, elas contam com apenas três meses para germinar e espichar seu caule o mais que puderem antes de serem engolidas novamente pelas águas. A estratégia de sobrevivência é surpreendente, visto que, num ambiente sem luz, as plantas não fazem fotossíntese (ou a fazem marginalmente) e tendem a queimar todo o seu estoque de carboidratos para se manter vivas. É isso o que ocorre com a sucuuba de terra firme se inserida numa zona inundada – ela germina muito rapidamente e morre “de fome” –, mas não com a da várzea.
CRISTIANE FERREIRAUm experimento feito pelos cientistas brasileiros com mudas (plântulas no jargão dos botânicos) de sucuuba com um mês de vida e 10 centímentros de altura ilustra as diferentes habilidades adaptativas de cada população da árvore. Os exemplares da planta provenientes da várzea conseguiram sobreviver quando foram cultivados e mantidos por mais de um mês em recipientes alagados por água e privados de luz externa, um ambiente artificial que tenta simular as condições naturais da várzea baixa. Eles também vingaram se plantados em vasos que não sofreram inundação. Já as amostras da espécie vindas da terra firme não venceram as barreiras do excesso de água e da escuridão. Morreram no ambiente tomado pelo líquido.
Segundo o botânico Marcos Buckeridge, da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou os estudos sobre carboidratos, as duas populações de sucuuba mostram como plantas de uma mesma espécie adaptadas a ambientes distintos podem usar seus estoques de energia em momentos e para funções completamente diferentes. É verdade que os exemplares de várzea acumulam mais açúcares na raiz do que os de terra firme, porém não é isso que faz o metabolismo de cada ocorrência da espécie funcionar de maneira distinta. “Não é a quantidade total de carboidratos que diferencia as duas populações de sucuuba, mas sim a forma como esses compostos estão estruturados na planta e como ela faz uso de cada tipo de reserva energética”, comenta Buckeridge. As sementes das sucuubas oriundas da várzea, por exemplo, contam com cinco vezes menos açúcares solúveis – consideradas reservas de uso rápido – do que as de terra firme. Evolutivamente, essa distribuição de carboidrato faz todo sentido. Afinal, quando submersa, uma árvore de zona alagada deve usar sua energia de forma controlada para garantir a sobrevivência por mais tempo.
Na aparência externa, as plantas de várzea e as de terra firme ainda são absolutamente iguais. Mas, a exemplo do que ocorre com os gêmeos, que nascem biologicamente idênticos, mas têm comportamentos distintos, as duas populações da árvore adotam, digamos, estilos de vida particulares em função do ambiente em que vivem. É possível que os exemplares das duas zonas de floresta também estejam se distanciando do ponto de vista anatômico (alterações na estrutura interna de suas raízes já foram verificadas). No entanto, essa questão só poderá ser esclarecida no futuro. Por ora, apesar de exibir um metabolismo distinto, as sucuubas de várzea e de terra firme ainda produzem sementes no mesmo período, entre junho e julho, após a época das cheias, e sua dispersão se dá pelo vento ou por flutuação no caso do meio aquático. Além de ser importante para entender os mecanismos que viabilizam a adapatação de uma árvore a áreas inundadas da Amazônia, o estudo das duas populações de sucuuba também é relevante por um motivo bem prático. A planta desperta grande interesse comercial por suas propriedades medicinais e também por sua madeira leve, boa para revestimentos de pisos. “Se alguém um dia for plantar sucuuba numa várzea, precisa ter certeza de que os exemplares ali introduzidos são adaptados a áreas alagadas”, adverte Cristiane. Caso contrário, o manejo da espécie à beira dos rios não será viável.
Artigo científico
FERREIRA, C.S. et al. The role of carbohydrates in seed germination and seedling establishment of Himatanthus sucuuba, an Amazonian tree with populations adapted to flooded and non-flooded conditions. Annals of Botany.v. 104 (6), p.1.111-19. nov. 2009.