Experimentos independentes não confirmam comportamento de materiais que, mesmo fora de condições controladas, seriam capazes de transmitir eletricidade sem perda de energia
Supercondutores expulsam campos magnéticos e provocam o fenômeno da levitação
Peter Hansen / Getty Images
A temperatura não para de subir dentro e fora dos laboratórios que procuram por materiais supercondutores, capazes de conduzir eletricidade sem nenhuma perda de energia na forma de calor, ou seja, com resistência zero. Em 8 de março deste ano, uma equipe coordenada pelo físico Ranga Dias, da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, publicou um artigo científico na revista Nature em que relatava a síntese do que seria o primeiro supercondutor à temperatura ambiente. De acordo com o trabalho, o composto de fórmula LuNH – material baseado no lutécio, um metal de cor branca-prateada, misturado com nitrogênio e hidrogênio – apresentaria resistência zero a 294 Kelvin (K), 21 graus Celsius (°C).
O suposto feito, longe de ser comprovado por ora, teria um potencial revolucionário. Todos os supercondutores hoje disponíveis – instalados em aparelhos de ressonância magnética, no interior de grandes aceleradores de partículas e em alguns trens magnéticos de alta velocidade – funcionam apenas quando resfriados, de forma custosa, a temperaturas extremamente baixas, próximas do zero absoluto (0 K). Esses valores equivalem a centenas de graus Celsius negativos.
O parâmetro mais importante de um supercondutor é denominado temperatura crítica (Tc), valor geralmente dado na escala Kelvin abaixo do qual um material apresenta resistência zero à passagem de corrente elétrica. Ou seja, vira um supercondutor elétrico. Outra característica definidora é a capacidade de repelir campos magnéticos, propriedade que pode ser usada para produzir o fenômeno da levitação.
É verdade que, segundo o estudo da Nature, o LuNH precisava ser submetido a uma pressão 10 mil vezes superior à da atmosfera terrestre para atuar como um condutor perfeito de eletricidade. Ainda assim, desde a descoberta da supercondutividade em 1911 no elemento mercúrio a -269 ºC (4,15 K), ninguém tinha pleiteado a existência de um supercondutor com uma Tc tão alta. Ninguém a não ser o próprio Dias em um artigo anterior, publicado em outubro de 2020, também na Nature. No trabalho, ao lado de colegas da Universidade de Nevada e de seu time em Rochester, o físico alegava ter produzido um composto feito de carbono, hidrogênio e enxofre que se tornava supercondutor a 15 ºC se submetido a uma pressão 2,6 milhões de vezes maior do que a da Terra.
Não há perda de energia na forma de calor quando a corrente elétrica passa por um supercondutor
Passados seis meses de sua divulgação, o composto LuNH exibe fissuras crescentes em sua alegada reputação de supercondutor à temperatura ambiente. “Tenho um ceticismo comedido com esse material. Nesse campo da ciência, o primeiro resultado é provisório enquanto não for confirmado por outros laboratórios”, comenta o físico Wilson Ortiz, coordenador do grupo de supercondutividade e magnetismo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Nenhum grupo de pesquisa independente conseguiu reproduzir, em laboratório ou computacionalmente, o experimento que teria indicado sua supercondutividade a 21 °C.
A situação do estudo anterior, de três anos atrás, com o composto feito de carbono, hidrogênio e enxofre, é ainda mais desconfortável. Em setembro do ano passado, a Nature retratou, à revelia de seus autores, o artigo de 2020 publicado em suas páginas pela equipe de Dias. “Depois da publicação [do artigo], questões foram levantadas sobre a maneira com que os dados desse paper foram processados e analisados”, escreveram os editores do periódico em um texto que explicava a decisão.
Para piorar ainda mais a situação, a prestigiada revista Physical Review Letters (PRL) retratou, em agosto de 2023, outro artigo que o grupo de Dias e os colegas de Nevada haviam publicado em uma de suas edições de 2021. O paper anulado não tratava especificamente de supercondutividade, mas das propriedades elétricas do dissulfeto de manganês (MnS2), que podia se comportar ora como isolante, ora como metal.
Quatro equipes independentes de especialistas examinaram o artigo da PRL e expressaram “sérias dúvidas” sobre os dados apresentados em uma figura sobre as curvas de resistência elétrica do material, de acordo com o comunicado emitido pelo periódico quando divulgou a retratação. Todos os 10 autores do paper concordaram com o veredicto da revista, com exceção de Dias, que tem evitado dar entrevistas recentemente sobre seus trabalhos.
J. Adam Fenster / Universidade de RochesterO físico Ranga Dias, da Universidade de Rochester, que afirma ter produzido supercondutores à temperatura ambienteJ. Adam Fenster / Universidade de Rochester
Nascido no Sri Lanka, o físico da Universidade de Rochester concluiu o doutorado em 2013 na Universidade Estadual de Washington e fez pós-doutorado na Universidade Harvard antes de ser contratado como professor em 2017 pela Universidade de Rochester. Ao lado do físico Ashkan Salamat, da Universidade de Nevada, um colaborador de muitos de seus estudos, Dias fundou em 2020 a empresa Unearthly Materials, para vender (supostos) supercondutores que funcionariam à temperatura ambiente e a pressões modestas.
“O artigo mais recente da equipe de Ranga Dias não explica direito a composição desse material do sistema LuNH nem o método usado para obtê-lo”, comenta o engenheiro de materiais Luiz Eleno, da Escola de Engenharia de Lorena da Universidade de São Paulo (EEL-USP). Em parceria com pesquisadores das universidades Sapienza de Roma (Itália), de Cambridge (Reino Unido) e Tecnológica de Graz (Áustria), Eleno e o engenheiro físico Pedro Ferreira, que faz doutorado sob sua orientação, publicaram um estudo na Nature Communications em 4 de setembro em que descartam qualquer possibilidade de uma combinação dos elementos lutécio, hidrogênio e nitrogênio gerar um material supercondutor com características similares às defendidas pelo grupo de Rochester.
O trabalho com participação dos brasileiros não foi de caráter experimental. Eles não foram ao laboratório e tentaram reproduzir o mesmo material e os resultados apresentados por Dias, como fizeram, também sem sucesso, alguns grupos internacionais. Escolheram uma abordagem de modelagem computacional em que desenham virtualmente um material e tentam prever suas propriedades eletrônicas, magnéticas e outros parâmetros com o emprego do conhecimento da física de estado sólido e de várias técnicas modernas de informática, como inteligência artificial e aprendizagem de máquina.
Dessa forma, simulam diferentes condições de temperatura e de pressão e criam, em um cluster de computadores, versões distintas de cristais a partir da combinação dos elementos químicos usados pela equipe de Rochester. O objetivo final do experimento computacional era averiguar se algum composto feito com essa receita poderia resultar em um material candidato a ser um supercondutor à temperatura ambiente.
No total, foram simulados no computador 200 mil compostos com estruturas atômicas diferentes. Dos pouco mais de 150 materiais que pareciam ser estáveis quando submetidos a uma certa corrente elétrica, o grupo identificou 52 que exibiam algum potencial para se comportar como supercondutores – nenhum deles a temperaturas próximas às temperaturas em que vivem os seres humanos. “O composto que se saiu melhor poderia, segundo as simulações, transmitir uma corrente sem perda de energia apenas a 40 K, ou -233,15 ºC”, comenta Eleno.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Foi um trabalho de ocasião, que começou a ser concebido assim que o artigo do grupo de Rochester ganhou as páginas da Nature em março passado. Nessa época, Ferreira passava uma temporada na Universidade Tecnológica de Graz, na equipe de Christoph Heil, e pesquisava outro tema na área de supercondutividade. Mas, diante do enorme interesse e polêmica despertados pelo estudo da equipe de Dias, decidiram concentrar esforços em um estudo com o composto LuNH.
“Se ele fosse realmente um supercondutor à temperatura ambiente, como eles diziam, essa poderia ser a descoberta científica do século”, comenta Ferreira, que é o primeiro autor do estudo na Nature Communications e faz doutorado com bolsa da FAPESP. “Por isso, fizemos nosso estudo com rapidez. Sabíamos que os maiores grupos dedicados à procura de novos materiais, em especial da área de supercondutores, fariam o mesmo.”
Apesar de batida e talvez pretensiosa, a metáfora de que a busca por supercondutores de altas temperaturas é o Santo Graal da física – algo muito procurado, mas que ninguém encontrou – continua sendo comumente empregada. A alegoria faz sentido, ainda que não faltem outros objetivos com potencial revolucionário em vários campos científicos, inclusive na própria física. A descoberta de um material que atue como supercondutor à temperatura (e pressão) ambiente poderia impulsionar novas aplicações em várias áreas, como computação quântica, transportes e na própria transmissão de eletricidade, além de gerar uma economia de energia sem paralelo.
“Hoje se gasta muito com sistemas de refrigeração que usam hélio líquido para manter os supercondutores abaixo de sua Tc”, comenta o físico Pascoal Pagliuso, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em física da matéria condensada. Em tese, uma corrente elétrica circularia infinitamente em um material supercondutor – desde que mantidas as condições de temperatura e pressão que levam ao surgimento da resistência zero à passagem de eletricidade. Em um experimento no Reino Unido, a corrente em um anel supercondutor foi mantida por dois anos e meio e só se interrompeu em razão de uma greve de caminhoneiros, que atrasou a entrega do hélio líquido necessário para manter o material abaixo de sua temperatura crítica.
Além de problemas práticos, há questões teóricas mal resolvidas na supercondutividade de altas temperaturas. A chamada teoria BCS fornece as bases para a compreensão do surgimento do fenômeno da resistência elétrica zero em supercondutores clássicos, que funcionam geralmente em condições extremamente frias. Ela mostra como átomos e elétrons vibram de forma coordenada na malha estrutural de cristais supercondutores sem acarretar perda de energia na passagem da eletricidade. “Mas, em muitos supercondutores com temperatura crítica mais elevada, não conhecemos o mecanismo microscópico que levaria à supercondutividade e a BCS não dá conta de explicar esses casos”, comenta Ortiz.
Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPOs aparelhos de ressonância magnética funcionam com o emprego de supercondutores mantidos a baixíssimas temperaturasLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
A passagem ou o bloqueio da corrente elétrica é um fenômeno quântico e a explicação que segue é uma simplificação do processo. Os elétrons, como seu nome indica, são as partículas responsáveis pela condução da eletricidade no interior dos materiais. Em isolantes, eles estão tão juntos do núcleo dos átomos que não conseguem se deslocar e fazer a corrente fluir. Em materiais que conduzem eletricidade, mas não são supercondutores, os elétrons se movimentam e conseguem transmitir apenas uma parte da corrente recebida.
No entanto, outros, em menor número, chocam-se com os núcleos dos átomos, que têm carga positiva e atraem os elétrons, de carga negativa. Essas colisões provocam perda de energia, na forma de calor. “É por isso que os fios de um metal condutor, como os de cobre, esquentam”, comenta o físico Mauro Doria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em supercondutividade, magnetismo e fluidos. “Sua resistência à passagem da corrente não é zero.” Pelo menos 15% da energia é dissipada como calor em materiais que transmitem correntes elétricas, mas não de forma perfeita como os supercondutores.
Os trabalhos de Ranga Dias não são os primeiros a pleitear a descoberta da supercondutividade à temperatura ambiente. Vários grupos fizeram o mesmo no passado, todos sem sucesso. Nos últimos meses, em paralelo às discussões e polêmicas sobre os estudos do grupo de Rochester, pesquisadores sul-coreanos do Centro de Pesquisa em Energia Quântica, de Seul, publicaram em julho passado, na forma de preprint no repositório arXiv, um artigo com uma reivindicação ainda mais espetacular. Diziam que tinham criado um material, um composto de cobre, chumbo, fósforo e oxigênio denominado LK-99, com resistência zero à passagem de corrente elétrica à temperatura e pressão ambiente.
Apesar de ter causado muito barulho, o trabalho, que não foi aceito para publicação em nenhuma revista, carecia de rigor científico na opinião de muitos especialistas. “Eles cometeram erros de interpretação tanto no texto como nas figuras que indicariam a existência de supercondutividade”, diz Pagliuso. “Foram precipitados e amadores.” Quando um composto atinge a temperatura em que se torna um supercondutor, sua resistência à passagem de corrente elétrica cai abruptamente e chega a zero. “O trabalho dos coreanos registra uma grande queda repentina na resistência elétrica, mas ela não parecia se tornar nula nos dados mostrados.”
Não à toa, as dificuldades de encontrar materiais que deixem a corrente elétrica fluir totalmente livre, sem nenhum grau de resistência, em condições similares à do ambiente natural, levaram o físico argentino Elbio Dagotto, da Universidade do Tennessee, a afirmar, certa vez, que a supercondutividade de altas temperaturas era “o Vietnã da física teórica”.
BCS, uma teoria para supercondutividade Interação coordenada de elétrons e átomos permite passagem de corrente sem perda de energia
Alexandre Affonso/ Revista Pesquisa FAPESP
Apresentada em 1957 pelos físicos norte-americanos John Bardeen (1908-1991), Leon Cooper e John Schrieffer (1931-2019), a teoria BCS (alusão ao sobrenome de seus propositores) é a melhor explicação científica disponível até hoje sobre o mecanismo microscópico que estaria por trás da supercondutividade. Embora não seja atualmente considerada capaz de dar conta dos mecanismos que possibilitam a transmissão de eletricidade com resistência zero em materiais que se comportam como supercondutores a temperaturas mais altas, essa formulação de meados do século passado introduz um conceito fundamental para a compreensão geral desse fenômeno quântico: a formação dos chamados pares de Cooper.
Trata-se da contraintuitiva ligação de grupos de dois elétrons que, em certos materiais, em determinadas condições favoráveis, como a temperaturas perto do zero absoluto ou a grandes pressões, permite a passagem de corrente elétrica sem perda de energia. Por terem carga negativa, os elétrons não deveriam se atrair, mas se repelir. Entretanto, quando um material apresenta supercondutividade, os pares de elétrons que fluem no interior da estrutura de um cristal se aproximam bastante (sem, no entanto, juntar-se ou colidir) e passam a interagir conjuntamente, como uma quase partícula, com os átomos do material, que têm carga positiva.
Os pares de Cooper se movem ordenadamente em um jogo de aproximação e distanciamento dos átomos – uma vibração ou excitação coletiva denominada fônon – e percorrem a malha estrutural do cristal sem provocar colisões. Grosso modo, são os choques dos elétrons com os núcleos dos átomos que fazem com que os materiais condutores ou semicondutores de eletricidade, como fios de cobre ou chips de silício, desperdicem parte de sua energia na forma de calor. “A teoria BCS é completa para descrever a supercondutividade, mas não explica realmente como os pares de Cooper se formam nos supercondutores de alta temperatura”, comenta o físico Pascoal Pagliuso, da Unicamp. Hoje, há praticamente um consenso de que, além da BCS, que rendeu o Nobel de Física de 1972 a seu trio de formuladores, novas teorias precisam ser desenvolvidas para tentar explicar o surgimento da supercondutividade em temperaturas mais elevadas.
Projeto Estudo ab initio de sistemas supercondutores e topológicos (nº 20/08258-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Luiz Tadeu Fernandes Eleno (USP); Bolsista Pedro Pires Ferreira; Investimento R$ 384.888,43.
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