EDUARDO CESARDepois de décadas priorizando o apoio a grandes empreendimentos de indústrias ou de infra-estrutura, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a maior instituição pública de financiamento do país, agora se volta à gente miúda, anônima e informal. Organizada em comunidades chamadas Arranjos Produtivos Locais (APLs), essa multidão que raramente consta das estatísticas, mas exibe uma notável capacidade de inovar, em termos organizacionais e tecnológicos, produz coisas tão variadas quanto mel no sertão de Pernambuco, programas de computador em Recife, esculturas de madeira e gesso de Padre Cícero em Juazeiro do Norte, Ceará, bordados em Seridó, Rio Grande do Norte, alface e couve em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, pêssegos em conserva em Pelotas, Rio Grande do Sul, vinhos na Serra Gaúcha, vinhetas para os programas da TV Globo e roupa íntima feminina em Petrópolis, a cidade da Serra Fluminense em que viveu o imperador Pedro II.
“O apoio ao desenvolvimento local é urgente porque se insere no esforço de robustecimento do crescimento da economia brasileira”, diz o economista Luciano Coutinho, presidente do BNDES. “Grandes projetos e grandes investimentos são importantes porque produzem efeitos que mobilizam a economia, mas não necessariamente asseguram o desenvolvimento de baixo para cima.” No início de novembro o banco criou a secretaria de arranjos produtivos inovativos, que deve enfatizar o desenvolvimento local e levantar as possibilidades de ação nessa área, e um comitê interno para articular as áreas do banco. As duas equipes devem perseguir o mesmo propósito: iniciar rapidamente um programa piloto na Região Nordeste para atender um grupo ainda restrito de APLs com os instrumentos de apoio financeiro à mão. Os resultados devem embasar um programa nacional de apoio a esses núcleos produtivos e mostrar o que precisa ser feito ou ajustado.
Coutinho antecipa um dos problemas a serem enfrentados: o acesso ao crédito, que ele define como “uma angústia para o BNDES”. Como o banco não tem capilaridade e depende de outros agentes financeiros, as condições de empréstimos tendem a assustar o pequeno empresário. Em busca de alternativas o BNDES abrigou em novembro um seminário de três dias em que economistas, geógrafos e sociólogos da Rede de Pesquisa em Sistemas e Arranjos Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist) apresentaram os resultados de dez anos de produção teórica e de estudos práticos de APLs em 23 estados e um conjunto de recomendações que devem servir de base para as ações do banco.
A decisão do banco de apoiar as redes invisíveis de micro e pequenas empresas “é importante por causa do efeito de sinalização do banco, que quer chegar aonde não chega e agir com os estados e outras instituições que já trabalham com APLs”, comenta Helena Lastres, coordenadora e co-fundadora da RedeSist agora à frente da nova secretaria do BNDES. “Falta um paradigma de política [de apoio aos APLs] que funcione”, observou Coutinho.
Os relatos também deixaram claro que as respostas dos APLs podem ser rápidas. Em menos de um ano uma região depauperada do oeste de Goiás transformou-se bastante. Motivados pela Secretaria de Planejamento do governo estadual, os pequenos produtores de leite do município de São Luís de Montes Belos se organizaram e se aliaram à prefeitura, à universidade estadual, à Embrapa Gado e Leite e a grandes laticínios. Nascida da base produtiva local, essa articulação levou à criação de uma fazenda-escola, já em construção, e ao projeto de um centro de tecnologia do leite, aprovado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Dos planos fazem parte também a criação de um curso de pós-graduação em leite, segundo Sérgio Castro, economista da Universidade Católica de Goiás.
No sertão do Ceará, a água subterrânea que poderia ser explorada por meio de poços rasos e havia sido descoberta por uma equipe da Universidade Estadual do Ceará atraiu os agricultores de Quixeramobim. A prefeitura financiou a construção dos equipamentos de perfuração, construídos pelas metalúrgicas locais, e a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) facilitou o trabalho dos pesquisadores com os agricultores. Três anos depois os 30 produtores que antes plantavam mandioca, milho e feijão eram 60 e cultivavam mamão, maracujá e tomate, comprados pela prefeitura para atender às escolas. “Os pesquisadores tentaram em outros lugares, mas a apropriação da tecnologia de exploração de água só vingou em Quixeramobim por causa do capital social”, comenta o economista Jair do Amaral Filho, que nasceu no interior paulista e estudou na Sorbonne em Paris antes de se instalar em Fortaleza como professor da Universidade Federal do Ceará. Capital social, conceito essencial para entender a formação dos APLs, equivale à capacidade de articulação da sociedade e reflete as relações de confiança e de cooperação entre as pessoas.
Quem olhar com desconfiança a capacidade inovadora dos APLs poderá se surpreender. Pequenas empresas integradas a essas redes quase invisíveis tornaram-se assíduas entre as escolhidas do Prêmio Finep de Inovação Tecnológica, destacando-se, por exemplo, com novas técnicas de produção de vinho em Petrolina, Pernambuco. Em Anápolis, Goiás, o Instituto de Gestão Tecnológica Farmacêutica (IGTF), que reúne 20 empresas farmacêuticas, universidades e órgãos do governo estadual e federal, em breve solicitará a primeira patente de um processo de extração de veneno de cobra. Duas empresas desse APL ganharam dois prêmios regionais de inovação da Finep.
Quando aparecem, os APLs surpreendem, maiormente, porque estavam lá há muito tempo e ninguém os via. Ana Lúcia Gonçalves da Silva, da Unicamp, conta um caso que saiu das sombras há pouco tempo: um aglomerado de quase 20 fábricas de instrumentos para dentistas no bairro de Pirituba, na cidade de São Paulo. Tomando apenas as mais visíveis e já identificadas, o estado de São Paulo abriga cerca de 150 APLs, Bahia 66, Rio de Janeiro 61, Goiás 57, Pará 56, Paraná 40, Mato Grosso do Sul e Alagoas 27, Rio Grande do Norte 25 e Pernambuco 10, de acordo com o mapeamento da RedeSist. Impossível dizer quantos aglomerados de empresas e trabalhadores funcionam no país inteiro – entre 500 e mil ou algo abaixo ou acima disso.
O apoio que recebem varia muito. “Em Goiás a situação é relativamente boa”, observa Castro, “porque o corpo técnico compreendeu e assumiu o conceito de APLs”. Foi assim também no Paraná, onde “os políticos não se envolveram e deixaram os técnicos trabalharem”, comenta Fábio Scatolin, economista da Universidade Federal do Paraná. No Ceará pelo menos 13 dos 23 APLs já identificados contam com apoio de uma rede de 19 instituições criada pelo governo estadual.
Já em Santa Catarina não há política de apoio definida, nem ação articulada entre as instituições, nem critérios para definir os APLs prioritários, na avaliação de Renato Campos, da Universidade Federal de Santa Catarina. Na Bahia um projeto do BID para incentivar o desenvolvimento dos APLs do estado “agora está órfão, por causa do desinteresse do atual governo do estado”, conta Hamilton Ferreira, da Universidade Federal da Bahia. “Os APLs precisam de apoio de estado, não de governo, e de políticas de médio e longo prazo, que vão além do tempo de cada gestão”, diz ele.
Em 2003 e 2004 o economista Francisco de Assis Costa, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, coordenou o mapeamento de APLs de alimentos em Belém, representado pela cadeia produtiva de açaí. Mais tarde trabalhou durante um ano e meio na então nascente Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA) com a noção de APL como base para o desenvolvimento regional. Aos poucos, porém, notou um abismo entre a intenção e a prática das instituições públicas, pouco permeáveis ao novo conceito, e sentiu as possibilidades de ação se esvaírem. “A lógica dos APLs exige outras formas de representação política, diferentes da lógica clientelista de hoje, mediante a qual atuar com ou para APLs não se transforma em capital político”, interpreta Costa. Hoje o estado do Pará conta com seis comitês tecnológicos estaduais e 14 tecnológicos regionais já instalados para atender aos 56 APLs do estado. “No mínimo emergiu a capacidade de comunicação”, diz ele. “Podemos ver o futuro com otimismo, mas temos de aguardar.”
Com maior ou menor apoio do Estado, esse Brasil das formiguinhas é resistente. “Principalmente no interior do país os APLs refletem um processo de eficiência produtiva que sobreviveu com galhardia à crise da década passada”, avalia o economista José Eduardo Cassiolato, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador da RedeSist. Formada hoje por quase cem economistas, geógrafos e sociólogos do Brasil e de outros países, a RedeSist nasceu em 1997 com o propósito de examinar fenômenos que escapavam às análises econômicas habituais. Judith Sutz, socióloga da Universidade de la República, Uruguai, uniu-se ao grupo já no início atraída “pelo desafio e pela oportunidade de pensar com cabeça própria um espaço latino-americano sobre inovação e desenvolvimento, em diálogo com o mundo”, lembrou ela. “Não queríamos só buscar dados, mas também fazer teoria, vencendo o papel subordinado de apenas aplicar teorias prontas do Norte.”
Como sinal dessa ousadia, o logo da RedeSist é um mapa-múndi invertido – a América Latina no alto. “Vamos transformar o conhecimento em uma lanterna que ilumine o que a gente quer fazer, sem receio de modificar os modelos teóricos quando necessário”, convidou Helena Lastres. “Não temos de ser escravos dos conceitos, que às vezes deixam de fora coisas importantes. Temos de parar de culpar a realidade por não se encaixar nos modelos.”
Aos poucos o grupo se afastou dos conceitos clássicos de inovação – tecnológica, organizacional, institucional e social –, conhecimento e desenvolvimento econômico. De acordo com Judith, o enfoque habitual de inovação prioriza o desenvolvimento econômico, que, uma vez obtido, levaria ao desenvolvimento social. “Desse modo, a inovação não tem podido ajudar no desenvolvimento social”, observa ela. Os rebeldes da RedeSist sentiram-se mais à vontade tomando a inovação sob um enfoque primordialmente social, a partir do qual se poderia analisar o desenvolvimento econômico. É uma mudança e tanto, assinala Hernán Thomas, professor do Instituto de Estudos sobre Ciência e Tecnologia da Universidade Nacional de Quilmes, Argentina, já que a inovação pode assim deixar de ser linear, paliativa, assimétrica e unilateral e se tornar algo coletivo, flexível e aberto, capaz de reunir o conhecimento tácito e formal para resolver dificuldades ligadas à sobrevivência. Assim é que os cubanos criaram materiais de baixo custo para construir casas capazes de resistir a tempestades e os uruguaios reinventaram aparelhos de baixo custo para tratar icterícia aguda em recém-nascidos. Foram também os uruguaios que transformaram o sangue e rúmen de boi em fertilizante natural quando uma lei proibiu que os matadouros jogassem fora esses resíduos. “As oportunidades de inovação vêm, e se matam, de toda parte”, lembrou Judith.
As peculiaridades de cada lugar é que regem também o reforço de infra-estrutura de pesquisa e desenvolvimento. Um centro de tecnologia em moda e design toma forma em um núcleo de produção de roupas em Jaraguá, em Goiás, e outro, de design de móveis, em Xapuri, no Acre. Os produtores de móveis em Linhares, no Espírito Santo, e de jóias em Limeira, interior paulista, também valorizam novos designs como forma de ampliar a clientela.
Sob esse enfoque, as pequenas empresas deixam de ser os patinhos feios da economia e se tornam essenciais. Segundo Cassiolato, as 3 mil empresas que produzem calcinhas e sutiãs em Friburgo, na Serra Fluminense, exemplificam a eficiência coletiva como forma de ganhar economia de escala, não mais privilégio de médias e grandes empresas, mas também da sociedade das formiguinhas. Um dos seis livros da equipe da RedeSist intitula-se justamente Pequena empresa: cooperação e desenvolvimento local.
Por enquanto os pesquisadores da RedeSist examinaram em profundidade cerca de 60 APLs centrados na atividade industrial, orientaram cerca de cem teses de mestrado e doutorado. Há dois anos começaram a explorar outra área: os APLs intensivos em cultura, a exemplo da indústria musical de Fortaleza, o audiovisual de Goiânia, o Carnaval da Bahia, o Boi-bumbá de Parintins, Amazonas, e a produção cinematográfica em Recife e Porto Alegre. O Brasil silencioso já se revela um pouco mais. Uma só festa popular, o Círio de Nazaré, que todo ano atrai milhões de visitantes a Belém, movimenta o equivalente a 3,5% do PIB da capital do Pará. Na cidade do Rio de Janeiro cerca de cem empresas se especializaram na produção audiovisual e na formação de atores para a TV Globo. Os territórios de aprendizagem coletiva e de cooperação começam a vencer a invisibilidade.
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