Causador da malária e transmitido ao ser humano pela picada de um mosquito, o protozoário plasmódio é conhecido há mais de um século e está cada vez mais resistente aos medicamentos clássicos, como a cloroquina. Para desenvolver novos quimioterápicos, é imprescindível entender os mecanismos que regulam o ciclo de vida do plasmódio. Agora, pesquisas de uma equipe do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP) encontraram uma sólida pista desses mecanismos.
Ao estudar células de camundongos e de humanos infectadas com plasmódios, a equipe – coordenada pela bioquímica Célia Garcia, com a colaboração da farmacologista Regina Markus – mostrou que o hormônio melatonina contido no hospedeiro parece responsável pela fina sincronia do ciclo de vida do parasita dentro do organismo.
Espantosa sincronia
O trabalho, que ganhou destaque numa publicação especializada da revista inglesaNature , foi desenvolvido no projeto temático Biologia Celular e Molecular do Plasmodium: Aspectos Comparativos de Estudo da Transdução de Sinal na Relação Parasita-Hospedeiro, financiado pela FAPESP. Esse organismo unicelular do gênero Plasmodium aloja-se nas glândulas salivares do mosquito Anopheles e penetra no organismo pela picada do inseto. Dentro do hospedeiro – além do homem, o parasita infecta outros mamíferos, aves e anfíbios -, o plasmódio se encaminha para as células do fígado e, depois, para as hemácias ou eritrócitos – os glóbulos vermelhos do sangue.
É justamente dentro das hemácias que o protozoário revela uma peculiaridade de seu ciclo de vida que dificulta muito o controle da infecção. Obedecendo a uma espantosa sincronia, os parasitas, praticamente todos ao mesmo tempo, amadurecem, multiplicam-se, atacam e rompem a membrana da célula infectada, abrindo o caminho para ganhar simultaneamente a corrente sanguínea e invadir células ainda sadias.
Era preciso desvendar o mecanismo que rege o avanço orquestrado dos plasmódios, chegar a uma descoberta que ajudasse no desenvolvimento de remédios mais eficazes contra a malária – doença que a cada ano mata 1 milhão de pessoas no mundo. Aí se encaixa a boa notícia das pesquisas da equipe. Por meio de estudos com células de camundongos e de humanos infectadas com plasmódios, a equipe evidenciou a relação entre a quantidade do hormônio melatonina presente nas células e a sincronia verificada em todas as fases do ciclo de vida do parasita.
Contra-ataque
A melatonina é um hormônio produzido durante a noite pela glândula pineal, num ciclo circadiano – repetido a cada 24 horas. Já se sabia que esse hormônio sincroniza diversas funções dos sistemas imunológico, nervoso e endócrino. Descobriu-se mais: “Tanto in vitro como in vivo, a melatonina é capaz de modular o ciclo do parasita. Demos um passo para desvendar a regulação do sincronismo do plasmódio nas células do hospedeiro. Fomos pioneiros nisso” – assegura Célia, graduada em Química pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde fez mestrado e doutorado. Sua pesquisa ganhou as páginas da edição de julho da Nature Cell Biology, uma das publicações da renomada revista científica inglesa Nature.
A equipe também constatou que a sincronia do ataque do parasita pode ser quebrada se o ritmo de produção da melatonina for alterado – o que, em tese, deixa a infecção mais vulnerável e fácil de ser debelada. Quando se impediu a secreção desse hormônio em camundongos – por meio da retirada de sua glândula pineal – ou se ministraram a eles drogas que impedem o parasita de detectar a presença de melatonina, o ciclo de vida do protozoário foi totalmente alterado.
Ação bioquímica
Em linhas gerais, pode-se dizer que o aumento na concentração de melatonina no hospedeiro faz com que os plasmódios que invadiram hemácias evoluam simultaneamente de seus estágios iniciais, chamados de anel e trofozoíto, para o estágio mais maduro, de esquizonte. Ao fim desse estágio, depois de se terem reproduzido assexuadamente, os parasitas arrebentam a célula hospedeira, entram na corrente sanguínea e reiniciam o processo de infecção. Quando passa da fase de trofozoíto para a de esquizonte, cada parasita gera de 18 a 35 novos plasmódios dentro da hemácia invadida – um pelotão que se encarregará de destruí-la.
No modelo proposto, acredita-se que a membrana plasmática do parasita seja dotada de um receptor de melatonina que, ao entrar em contato com esse hormônio do hospedeiro, detona uma série de reações químicas. A equipe já havia demonstrado que o plasmódio é dotado de equipamento para sinalização por cálcio similar ao de organismos superiores, de modo que também poderia usar o cálcio como sinalizador de seus processos celulares. Usando indicadores fluorescentes que permitem a quantificação do íon cálcio, mostrou-se que a melatonina é capaz de causar a liberação do cálcio contido nos depósitos intracelulares do protozoário.
O cálcio é extremamente importante, pois determina vários processos, especialmente a divisão celular. Então, como a melatonina do hospedeiro ativa a liberação de cálcio dentro da célula do parasita, esse cálcio pode ativar o processo que provoca o amadurecimento e a multiplicação celular do próprio plasmódio.
Para chegar a essas conclusões, as pesquisadoras fizeram experimentosin vivo com camundongose in vitro com culturas celulares de roedores e de humanos. Primeiro, adicionaram melatonina a uma cultura de células de camundongos da espécie chamada Balb/C infectadas com Plasmodium chabaudi – o protozoário da malária que infecta esse animal. Dezessete horas mais tarde, verificaram que houve aumento no número de hemácias invadidas por parasitas, proporcional à quantidade de hormônio injetado. O resultado indicava que a melatonina acelera a reprodução do parasita.
Aceleração
Para comprovar que a melatonina realmente acelera a infecção, a equipe conduziu experimento semelhante com uma cultura de células humanas. Contaminada com Plasmodium falciparum – a espécie do parasita da malária que mais comumente ataca o homem, essa cultura também recebeu doses gradativas de melatonina. Paralelamente, manteve como grupo de controle uma cultura de hemácias humanas contaminadas com a mesma espécie de plasmódio, mas não submetida a doses de melatonina.
O resultado foi exatamente o esperado: 24 horas depois de iniciado o tratamento com melatonina, as hemácias infectadas com Plasmodium falciparum tinham uma quantidade muito maior de parasitas no estágio final de esquizonte do que as do grupo de controle – prova de que a melatonina havia acelerado o desenvolvimento do parasita na hemácia.
Nos dois grupos, contudo, o número de células infectadas do hospedeiro permanecia o mesmo de antes do início do experimento – o que pode parecer estranho, mas também era esperado. É que não houve tempo para esse número mudar, pois o ciclo de vida do Plasmodim falciparum dentro da hemácia é de 48 horas – 16 horas na fase de anel, 20 na de trofozoíto e 12 na de esquizonte. Ou seja, essa espécie de parasita precisa de dois dias para passar pelas três fases – desenvolver-se, amadurecer e multiplicar-se – antes de romper a hemácia invadida e estar apta a atacar novas células. “O ciclo de vida de todos os plasmódios é sempre um múltiplo de 24 horas”, acrescenta Célia.
Depois de reunir evidências de que o hormônio melatonina ditava o ritmo de amadurecimento do parasita em culturas de laboratório, os pesquisadores partiram para os experimentosin vivo com camundongos. O objetivo era determinar se a ausência de produção de melatonina pelo hospedeiro ou de percepção dela pelo parasita também teria alguma repercussão no ciclo de desenvolvimento da malária.
Então, retiraram a glândula pineal – o que paralisa toda a produção do hormônio – de camundongos da espécie Balb/C e os infectaram com uma população de Plasmodium chabaudi, cujo ciclo de vida no hospedeiro é de 24 horas. Setenta e duas horas depois do início da infecção, a quantidade de parasitas no estágio inicial de anel era duas vezes maior nos camundongos que não produziam melatonina do que nos do grupo de controle, que mantinham a glândula pineal. Também se constatou que a quantidade de parasitas na fase de trofozoíto era muito menor nos animais incapazes de secretar o hormônio do que no grupo de controle. Ou seja, sem a melatonina do hospedeiro, o ciclo do parasita perdia a sincronia.
Fizeram mais um estudo, em que mudaram o enfoque – do hospedeiro para o parasita. Trabalhando com duas espécies de camundongos, Balb/C e C3H, injetaram neles a droga luzindole – um inibidor de receptores de melatonina – e, ao mesmo tempo, os infectaram com Plasmodium chabaudi. De modo geral, o inibidor reduz a capacidade do parasita de identificar a melatonina do hospedeiro e reagir a ela, o que altera todo o processo químico que dita suas mudanças de estágio e sua divisão celular. Nessa situação, o hospedeiro continua produzindo normalmente a melatonina, mas o parasita não consegue percebê-la completamente.
O resultado do experimento foi semelhante ao realizado com os animais dos quais foi extraída a glândula pineal: mais anéis e menos trofozoítos nos camundongos que receberam a dose de luzindole do que no grupo de controle.A mais nova frente de pesquisa de Célia Garcia é o ciclo do parasita da malária em lagartos. Motivo: metade das cerca de 170 espécies de plasmódios existentes infecta lagartos que, estranhamente, têm um baixíssimo índice de mortalidade devido a essa infecção.
Por que os lagartos resistem tão bem aos plasmódios? Os pesquisadores procuram a resposta estudando o ciclo de vida dos parasitas dentro do organismo desses répteis. Isso pode mostrar algum caminho no sentido de evitar a letalidade da malária em outras espécies, sobretudo no homem. Há duas espécies de lagartos da Amazônia que já estão em estudo nos laboratórios de Biociências da USP, o Ameiva ameiva e o Tupinambis meriane.
Carrasco dos trópicos
A malária causa febre alta a intervalos regulares – mais ou menos a cada 24 horas, momento em que os parasitas rompem as hemácias infectadas e ganham de novo a corrente sanguínea para invadir mais glóbulos vermelhos. Outros sintomas são vômitos e dores de cabeça e nas juntas. Os casos mais graves evoluem para estado de coma e morte. Não há vacinas aprovadas pela comunidade científica – algumas estão em teste -, mas, embora às vezes resista aos medicamentos, a infecção pode ser debelada se tratada rápida e adequadamente.
Contudo, os números seguem impressionando. O flagelo da malária mata a cada ano de dois a três milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo os pequenos – calcula-se que uma criança morra de malária a cada 30 segundos, quase três mil por dia.
Mantendo o círculo vicioso, o mosquito transmissor Anopheles pica de 300 a 500 milhões de pessoas por ano e nelas injeta o protozoário plasmódio que desencadeia a doença em novas vítimas. De cada dez casos, nove ocorrem na porção da África abaixo do Saara. Dos restantes, seis países concentram dois terços – entre eles o Brasil. E calcula-se que cerca de 40% da população mundial viva em áreas com risco de transmissão. Para a Organização Mundial da Saúde, a malária é a mais grave doença tropical causada por parasita.
Últimos resultados
Chamada por muitos de “rainha das doenças” por esses altos índices de incidência e mortalidade, ela continua a desafiar o mundo. Para enfrentá-la no Brasil, cerca de 300 especialistas participaram de 26 a 29 de novembro, no Rio de Janeiro, da 7ª Reunião Nacional de Pesquisa em Malária. O encontro – que teve o apoio da FAPESP no financiamento de viagens de pesquisadores – trouxe os últimos resultados nas áreas de vacinas, diagnóstico, controle da transmissão e dados nacionais.
O tema principal foi o recrudescimento da doença na Amazônia, sobretudo em áreas de garimpo e assentamentos. A tendência de crescimento é preocupante: segundo a Fundação Nacional de Saúde, foram 405 mil casos em 1997 e um recorde de 632 mil em 1999 – 34% a mais que no ano anterior. Desse último ano, 99% dos casos foram na Amazônia. Os Estados do Amazonas e Pará concentram 66% das vítimas, mas Acre e Maranhão tiveram em 99 os maiores percentuais de aumento anual: 143% e 87%, respectivamente.
Proliferação de garimpos, extração de madeira, construção de barragens e assentamentos rurais foram apontados como principais razões para o aumento na Amazônia. “O deslocamento de pessoas para a região e a ocupação desordenada do espaço, principalmente nas últimas três décadas, fez a situação piorar”, disse Wilson Alecrim, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas. A mudança de parte da população de zonas rurais para as cidades também agrava a situação. “Os problemas sociais determinam o aumento da malária na Amazônia”, acrescenta Alecrim.
Um grupo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenado pelo imunologista Maurício Rodrigues, estuda, a ação imunizante da proteína MSP 1 do Plasmodium vivax, espécie mais comum do parasita causador da malária no país. Em testes com cobaias, essa proteína foi capaz de estimular uma resposta imunológica de até 90% entre cobaias infectadas.”Os resultados nos levam a pensar em desenvolver uma vacina”, revelou Rodrigues. Em 2001 começam os testes da proteína em macacos saimiris no Centro Nacional de Primatas de Belém. “Vamos verificar a resposta imunológica nesses macacos, nos quais podemos reproduzir a malária causada pelo vivax, pois são animais próximos do homem”, explica.
Mosquito transgênico
O desenvolvimento de um mosquito que seja resistente a infecções por parasitas é uma alternativa. A fisiologista de insetos Margareth Capurro, da Unifesp, explicou que o objetivo da pesquisa é a introdução no mosquito transmissor da malária – o Anopheles – de um gene que interfira no desenvolvimento do plasmódio. Assim, o mosquito se tornaria um mau transmissor da malária ou deixaria de transmiti-la, quebrando o ciclo da doença.
“Estamos estudando o bloqueio do parasita nas glândulas salivares dos mosquitos”, disse Margareth. Ela destacou alguns desafios para se chegar ao mosquito transgênico: liberar esse inseto na natureza com segurança e torná-lo dominante, de modo que passe seus novos genes para as populações selvagens deAnopheles . Denise Vale, da Fundação Oswaldo Cruz, também estuda o bloqueio do parasita no tubo digestivo do mosquito.
Edmund Christian, da Organização Panamericana de Saúde (Opas), lembrou que as paredes das casas de barro e alvenaria das regiões endêmicas da doença absorvem muitas vezes os inseticidas usados no controle do mosquito, reduzindo sua eficácia. Ele acha que “é preciso testar outras formulações de inseticida para aumentar a eficiência”. Também citou alternativas de prevenção, como um sabonete com compostos repelentes aos transmissores da malária que é testado na Colômbia e na Venezuela.
Quanto aos métodos de diagnóstico, Cor Jésus Fontes, da Universidade Federal de Mato Grosso, acha que é preciso aprimorar kits de diagnóstico mais modernos e baratos. Ele analisou amostras de sangue de 630 mato-grossenses e descobriu que os métodos atuais têm uma taxa de detecção de 80% para o Plasmodium falciparum – espécie ligada ao maior número de casos graves e de mortalidade -, índice considerado insuficiente.
Plano de ataque
Apesar de tudo, a letalidade da doença no Brasil diminuiu muito: segundo a Fundação Nacional de Saúde, cerca de 150 pessoas morreram de malária em 1998, cinco vezes menos do que no início dos anos 90. E avaliou-se na reunião nacional que o aumento da incidência possa ser revertido a partir de 2001, com a implantação do Plano de Intensificação do Controle da Malária pelo governo federal. Treinamento de pessoal e aquisição de microscópios para o diagnóstico estão entre as estratégias do plano, que investirá R$ 145 milhões nos próximos anos para reduzir em 50% a incidência de malária na Amazônia.
O projeto
Biologia Celular e Molecular do Plasmodium: Aspectos Comparativos de Estudo da Transdução de Sinal na Relação Parasita-Hospedeiro (nº 98/00410-2); Modalidade Projeto temático; Coordenadora
Célia Regina da Silva Garcia – Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP); Investimento R$ 220.000,00