“A palavra cinema já me soa conservadora. A imagem audiovisual tem outras formas possíveis além do cinema. Estou falando de uma nova maquinaria de imagens, de novas fantasmagorias, novas e insuspeitadas sombras eletrônicas, ou melhor, luzes eletrônicas que por enquanto apenas entrevemos.” No palco da imensa sala 1 do Memorial da América Latina, bem iluminado só em uma pequena área destinada ao personagem em cena, Fernando Birri, 81 anos, mirava assim o futuro, em sua aula magna no final da manhã de 14 de julho, logo após ser apresentado à platéia pelo presidente do Memorial, Fernando Leça.
Na verdade, a maioria das pessoas reunidas ali para ouvi-lo, faixa etária amplíssima, entre menos de 20 e mais de 80 anos, sabia muito bem quem era aquela figura venerável de longas barbas brancas, a lembrar um profeta nordestino, na visão de alguns, ou Leon Tolstoi, no olhar de outros. Porque para aficionados do cinema produzido fora do mainstream, como era o caso de quase todos ali, o nome de Birri, cineasta argentino e cidadão do mundo, é nada menos que uma metáfora da capacidade de resistência e de múltiplos renascimentos do cinema latino-americano, em mais de cinco décadas. Com certa freqüência a ele se atribui a paternidade do Novo Cinema Latino-Americano.
A aula magna fazia parte do 1º Festival de Cinema Latino-Americano, promovido pelo Memorial e pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, que coincidentemente tem à frente nesse momento o cineasta João Batista de Andrade. O evento fora aberto na noite do domingo, 9, com o mais recente filme de Fernando Birri, o documentário Za-2005. Lo viejo y lo nuevo, um megaclipe, como ele mesmo define, uma colagem de cenas tiradas de algumas das melhores produções do continente em diferentes épocas. Nele, trechos de clássicos como Memórias do subdesenvolvimento, do cubano Tomás Gutiérrez Alea, Vidas secas, do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, e Tire Dié, do próprio Birri, considerado uma obra-prima fundadora, dialogam com cenas de trabalhos cinematográficos recentes de alunos da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, em Cuba (EICTV). Como disse em O Estado de S. Paulo o crítico Luiz Zanin Oricchio, o filme “é a perfeita imagem do seu autor – fala do sonho de um cinema latino-americano que se impõe por seu rigor, por sua força e qualidade, e cresce à margem da grande indústria mundial do entretenimento”.
Fernando Birri, casado há 46 anos com Carmen, é, registre-se logo, bem mais que um cineasta: é um teórico do cinema, professor e educador que plantou múltiplas experiências de ensino de cinema e televisão, entre as quais a escola de Cuba é sem dúvida a mais reluzente e avançada. É pintor, escritor, poeta. É um visionário, um libertário – e bela amostra de tudo isso junto está no texto denso e vigoroso de “Acta de Nacimiento de la Escuela Internacional de Cine y TV”, que integra o livro El alquimista democrático, cuja edição brasileira deverá ser publicada em breve, graças ao empenho de Sergio Muniz, documentarista brasileiro, primeiro diretor docente da EICTV. Birri é, finalmente e acima de tudo, alguém que jamais abriu mão de seu direito de construir coisas baseadas em seus sonhos mais utópicos, com método e rigor.
A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu a Pesquisa FAPESP.
Gostaria de começar pelo final de sua aula, quando você disse que há algo novo que emerge no panorama da imagem, algo como uma nova “imageria” que iria muito além de um novo cinema. Como é isso?
Ainda o vejo muito nublado, a bola de cristal ainda está empanada, em brumas, não sabemos inteiramente, porque o que tem que vir nunca se sabe acertadamente, até que vem, tautologicamente. Mas sinto, intuo que efetivamente há algo, algo está se passando que se entrevê mais que se vê. Esse festival, muito sério, muito bonito – pelos filmes que se viu e tantas coisas mais – , serviu muito para isso, acima de tudo por haver recuperado uma tradição dos festivais do novo cinema latino-americano que só nos 50 teóricos se viu assim. Tínhamos ali painéis, mesas-redondas com personagens do cinema, muito importantes, e parece realmente uma preocupação… Isso por um lado. De outro lado, o Brasil sempre foi um ambiente de buscas, estudos, inquietudes e preocupações, capaz de sinalizar rumos. Aqui a elaboração teórica do cinema alcançou realmente um nível muito alto, comparado a outros países da América Latina.
Nas universidades?
Sim, nas universidades, na crítica, mesmo entre cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Leon Hirzman e tantos outros, não? Teria que fazer uma lista de nomes, com Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Ozualdo Candeias, Geraldo Sarno, enfim, todos cineastas que fizeram acompanhar sua obra de elaborações teóricas sumamente importantes. Esse aporte de material teórico caracteriza o cinema novo brasileiro.
Mas este “novo” que você agora entrevê tem a ver mais com as técnicas de filmagem, com a estética cinematográfica ou com a reflexão teórica?
A verdade é que eu jamais seria capaz de separar todas essas coisas. Acho que elas só se separam como objeto de estudo, de análise, como por exemplo quando Leonardo da Vinci secciona um corpo e analisa um pequeno músculo que corre para que um dedo se mova, mas há que analisar-se o próprio homem, e creio que são imprescindíveis um e outra: o pequeno tendão do dedo da unha e a alma do homem que move o dedo. Creio que nesse sentido realmente o que está se passando agora é que há coisas que estão vindo como respeito a todo um material, um background que o novo cinema latino-americano elaborou em quase meio século de vida e, sim, o que acontece com sinceridade é que muitas das coisas que foram elaboradas já não são válidas, ou melhor, são válidas para ajudar a pensar, mas nas circunstâncias já não bastam. E já não bastam porque há coisas novas que estão vindo aí, e nesse sentido há que assimilá-las e interpretá-las. Por exemplo, há duas coisas que surgem desse encontro latino-americano e que me parecem muito importantes. A primeira delas é que aqui se está lançando com muita insistência não o novo, mas os novos cinemas latino-americanos, meio século depois. Existe uma pluralidade nesse movimento e isso é absolutamente novo. Num poema que escrevi nos anos 80 para um grande encontro na Alemanha chamado Horizontes, (leia o poema abaixo) e me pediram então um prólogo para um enorme catálogo, fiz esse “Poema em forma de ficha filmográfica”, em que dizia que somos um na diversidade e diversos em nossa unidade. Dizia que havia que manter sempre essa característica, esse tao, essa dialética, como você preferir, que em definitivo enriqueceu esse momento antidogmático por excelência. Quero dizer que agora essa diversidade vem assumindo muito mais força, muito mais evidência, e numa explicação simplista podemos dizer que há muito mais cinemas do que havia há 50 anos. Há 50 anos falar de cinema na América Latina era falar quase exclusivamente dos cinemas argentino, brasileiro e mexicano. Depois, em meados do século passado, aparecem outros, nos anos 60 aparece a cinematografia cubana com grande força. Mas hoje não há país latino-americano que não produza cinema. E eu não limitaria a palavra produção ao set cinematográfico, mas a usaria como produção de sentidos cinematográficos, estendendo-a assim para a produção de revistas, de crítica, de análises…
E de televisão?
… E aí vem o ponto crítico, e é justamente que de alguma forma a palavra cinema já não basta.
Foi isso o mais instigante de sua fala: como assim, a palavra cinema não basta, o que é preciso criar em seu lugar para ampliar o próprio sentido do que ela nomeia?
Há que inventar uma palavra que antecipe a invenção real do meio. Por ora podemos nos conformar em amarrar algumas palavras que existem para isso, como por exemplo “imageria” audiovisual, que me agrada muito. Ou imago, imagem, que tem um prestígio muito grande, quase fantasmagórico. É como um fantasma audiovisual, quiçá possamos dizer mesmo como um ectoplasma, como uma nebulosa que se está completando de diversas formas e da qual o cinema é uma só uma expressão…
Para além do cinema, em curta, média ou longa metragem, você está contemplando algo que se apresenta por vários meios…
Claro, mas não vamos exagerar, vamos ficar um pouquinho mais próximos, e para começar podemos nos deter em todas essas formas que já existem de fato, não de modo antecipatório. E nesse sentido há o que Pasolini chamava “contaminatio” : a contaminação de gêneros. Assim, ocorre que mesmo no cinema visto na tela normal é por vezes muito difícil separar as coisas, o que é documentário, o que é ficional… E desde já em muitos filmes existe uma intersecção, existe uma interinfluência dos gêneros tradicionais com coisas que não conhecemos ainda.
Daí a idéia do “docfic”.
Claro, docfic é isso, é uma reformulação proposta por Orlando Senna na Escola de Cinema de Cuba em princípio dos anos 90, a que eu adiro porque me parece realmente que ele atinge uma intuição que de alguma maneira define uma coisa que também já está sendo. Mas deixe-me concluir o que queria dizer: onde me parece que realmente aponta tudo isso, como ponto extremo, como uma new frontier, uma nova fronteira até a qual alguns já chegaram e a estão ocupando para depois partir para outros territórios incógnitos, é o cine virtual, é a imagem virtual. Essa imagem virtual, que para a maioria, digamos assim, de um público de espectadores, de fruidores, ainda permanece algo secreto e proibido, existe para uma minoria superespecífica, por exemplo, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), lugar onde se pratica faz décadas… é um cinema muito especial, que se pode tocar verdadeiramente, e umas tantas coisas que seguem de alguma maneira enquanto se fazem as novas tecnologias. E aqui temos uma questão que você me propunha antes: é que as novas tecnologias, as novas expressões, as novas críticas, seguem juntas, não são coisas que apontam umas para um lado e outras para um outro. É possível, sim, separá-las com a finalidade de vivissecção, de estudo, a exemplo da anatomia, mas para que o corpo caminhe, viva, respire e ame tem que estar completo e, se não o assumimos em sua completude, esse corpo…
Estamos falando entre outras coisas, aqui, das experiências do Medialab, do MIT?
Sim, claro, eles têm um dos laboratórios mais avançados no aspecto da imagem virtual e, por suposto, de todas as antecipações que de alguma maneira derrubam as classificações atuais, ou que julgamos atuais e que são velhas, do cinema.
Tudo isso que você vislumbra de novo de alguma forma se vincula a todo o trabalho de meio século de ensino de cinema na América do Sul que começa com a escola de Santa Fé? Como se juntam essas duas pontas em sua reflexão?
Lamentavelmente, por ora não se juntam. Ainda não estamos em um momento de síntese. Se me permite dizer como você, ainda estou tentando entender, não tenho resposta a revelar, não há resposta pré-fabricada para essa questão. Pensemos juntos todos nesse sentido… de alguma maneira, contudo, talvez o que nos ajude realmente a pensar um pouco a produção dos fenômenos culturais da América Latina, seja um dos mais reveladores e mais ilustrativos deles, ou seja, o fenômeno religioso, quase diria antropológico-religioso – mas me refiro concretamente ao sincretismo, o famoso fenômeno sincrético na América Latina.
Mas você não se refere aos novos movimentos religiosos, o pentencostalismo…
Vou um pouco mais atrás, digamos assim. O conceito é o seguinte: isto que estamos usando, a imagem de alguma maneira, na realidade é nessa perspectiva que estamos tentando entrever, é ainda uma apreciação sincrética do fenômeno, é um momento prévio ao momento analítico e muito anterior ainda ao momento sintético, que acredito que é aquele em que se produzirá finalmente a eclosão do fenômeno como um fenômeno social, coletivo.
Ou seja, em seu olhar estamos agora no momento de florescimento de variadas coisas, muito antes que se chegue a uma nova forma para o velho cinema, que, entretanto, não sabemos qual é.
Sim, você já pode afirmar isso na entrevista. Creio que a virtude e os riscos desse momento é que é um momento antecipatório. E todo momento antecipatório, todo momento em que o novo se apresenta de alguma forma, se intui, o espírito humano tem diversas atitudes, mas há duas fundamentais: a primeira é ousar, atirar-se num duplo salto mortal sem rede no vazio… e voar. Aí pode ocorrer tudo. A segunda é voltar para trás.
E o que é, no caso, voltar para trás?
Prosseguir falando de cinema.
Mas corremos esse risco?
Sim, claro. Não apenas o corremos, mas hoje ainda o praticamos concretamente, cotidianamente.
Em seu filme ZA-2005, sua preocupação era mostrar um pouco essa possibilidade de colagens, de sincretismo, da América Latina? Qual é a relação entre esse filme e tudo que você entrevê como panorama da “imageria” contemporânea?
São duas perguntas em uma. A primeira resposta é: busco nesse filme o que quero em todos, mas um pouco mais, porque tento abarcar um período histórico, enfrentando algumas seqüências dos filmes fundadores do cinema latino-americano e os filmes de teses produzidos pelos estudantes da escola [de Cuba] nesses 20 anos. Então isso me dá motivo para pôr umas ante as outras como espelhos, em primeiro lugar para ver se uma produção reflete a outra, ou, pelo contrário, se não se olham, se rechaçam, se quebram por inteiro, ou, a última alternativa, se indiferentemente uma dá de ombros para a outra, e não são espelhos, são simplesmente superfícies de vidro e mercúrio que não refletem nada. Essa é a preocupação do filme, em princípio uma verificação, uma operação de constatação de algo que se tenta compreender. E cada um assuma sua posição, tire suas próprias conclusões, e, nesse sentido, o filme não tem a pretensão de impor nada, mas sim tenta propor. A segunda questão: o que tem a ver esse filme com o que falávamos antes? Muito, tudo. Porque ao fazer essa espécie de balanço de alguma maneira também estamos como que fechando uma janela e abrindo uma porta, o que significa dizer, isto é de um jeito, vamos para outro – e não vou lhe dizer agora, porque seria muito óbvio, que se trata de ciclos culturais, que começam, chegam a sua conclusão, terminam. Julgo que nesse sentido o filme também propicia esse tipo de preocupação que tenho nesse momento e, como digo no começo do filme, trata-se de compartilhar tudo isso com uma espécie de megaclipe didático e coletivo para tentar entender algo – veja, não para ensinar algo, mas para tentar aprender algo, coletivamente. E nesse sentido, porque nada nasce de nada, esteve muito presente a parte de Zavattini, não em seqüências, mas o nome e o espírito. Está também muito presente um outro diretor italiano que nos últimos anos de sua vida trabalhou muito nesse sentido, que foi Rossellini. O grande diretor de Roma cidade aberta, de Paisá, de belos filmes, nos últimos anos de sua vida se dedicou à televisão (1970), fazendo filmes de uma hora cada um, como Sócrates, como Atti degli Apostoli, como La toma del poder por Luis XIV…
Isso foi no final dos anos 80...
Sim, mais ou menos. Eram filmes de uma hora, muito simples, muito elementares, destinados a difundir a vida, o paradigma, o exemplo, a referência em que se constituíram grandes personagens da humanidade. E também, muito abertos, muito pouco acadêmicos ou antiacadêmicos em sua maneira de contar a história.
Como com tanta repressão que as expressões culturais sofreram na América Latina é possível que se entreveja agora esse novo, no âmbito do cinema, surgindo aparentemente com grande vigor na totalidade do continente? Quais são as raízes dessa força latino-americana?
É uma pergunta ao mesmo tempo muito difícil e muito fácil. Muito difícil se a quisermos assumir numa análise que não seja somente a da euforia. E mais fácil se… Vamos dizer de outra maneira: é uma pergunta muito difícil se aplicamos o close-up. Mas se a tomo com teleobjetiva torna-se um pouco mais fácil ou pelo menos mais gratificante respondê-la, porque assim, com a teleobjetiva, estou falando de 500 anos de história e um pouco mais para trás. Então, vendo a América Latina nessa perspectiva inversa, digamos assim, fica mais fácil compreender que nesses 500 e tantos anos de história, incluindo a fase pré-colombina, de uma riqueza impressionante, realmente este continente fisiologicamente se mostra destinado a ser aquilo que está sendo, ou seja , a elaborar a química do novo. Porque é isso.
Como começou sua experiência de ensino na área de cinema?
Começou porque eu justamente queria aprender a fazer cinema na Argentina, ali pela metade dos anos 50 e não havia onde fazê-lo. Então, a única maneira possível era ir a um estúdio e trabalhar com alguém que fazia filmes e aprender na prática ao lado dessa pessoa. Mas quando tentei fazer isso em Buenos Aires, inclusive por todos os meios possíveis e impossíveis – me ofereci até para trabalhar varrendo o estúdio –, para que em troca me deixassem ver como se fazia um filme, mas isso não funcionava na indústria, não era habitual.
Havia então estúdios de cinema em Buenos Aires?
Claro, a Argentina tinha vários estúdios importantes. Ali estavam Argentina Sonofilm, San Miguel, Lumiton, estúdios que faziam parte da indústria tradicional da Argentina. Naquele momento eu me dei conta, refletindo um pouco depois sobre isso, que em geral todas as coisas que terão um destino nascem de uma carência. Veja, por exemplo, estava pensando esta manhã nesta conversa que teríamos… Como explicar o que lhe dizia? O fogo, por exemplo, nasceu da escuridão. Depois, bom, serviu para cozinhar também, mas o fogo nasceu da necessidade de derrotar a escuridão. Então o ser humano diante de uma carência inventa coisas, com sua grande capacidade imaginativa. Portanto, na Argentina não conseguia estudar, e esse momento coincidia com uma situação política muito tensa…
Era o primeiro período do peronismo.
Sim, para mim um momento muito dificil, mas não falo especificamente do peronismo, falo especificamente da situação do cinema durante o peronismo. O primeiro é um conceito político muito mais complexo e teria que articulá-lo de outra maneira. Estou me referindo especificamente ao cinema e à necessidade que tinha uma pessoa, um rapaz anônimo, sem nenhum antecedente, de aprender a fazer cinema nesse país.
Você de alguma maneira já convivia com o cinema? Como surgiu seu interesse nesse primeiro momento nos anos 50?
Veja, eu era de uma família de artistas, meus tios todos de alguma maneira estavam ligados à arte, música, pintura… Meu pai era professor de ciências políticas e sociais, mas esta na verdade era uma carreira que sobreveio e sufocou, de outro lado, sua verdadeira vocação que era de pintor. Eu cresci nesse ambiente, e o cinema foi um pouco um sucedâneo da minha infância, da atividade que dominou minha vida ou à qual entreguei minha vida, que era um teatro de títeres, entende?
Sim, teatro de títeres, de marionetes.
E nisso seguimos. Depois eu escrevia poesias, pintava desde jovenzinho. Também comecei uma carreira de advogado, mas isso me criou um problema terrível, uma crise, afinal mandei ao diabo essa carreira. Sabe que quando o diabo se apresentou a Lutero ele lhe atirou a Bíblia para que a lesse, não? Em meu caso não o fiz com a Bíblia, mas com um livraço de capa vermelha, que era A economia política, de Gide, um economista francês, no qual estudávamos. No momento mais alto da minha crise, eu lia, lia, lia e não entendia “páparos”, então o atirei contra a parede, como Lutero contra o diabo, e decidi ali que não ia ser advogado, mas um diretor de cinema.
Quantos anos você tinha então?
Penso que um pouco menos de 20 anos, 17 anos. Bem, como disse, eu escrevia poesia, pintava, havia fundado o primeiro teatro experimental da Universidade Nacional do Litoral, em Santa Fé, e de outro lado também havia fundado o Cineclube Santa Fé, quer dizer, já tinha um vínculo com o cinema, havia uma predisposição, mas…
Então o mundo perdeu um advogado…
Teve a sorte… (recíproca)
Buenos Aires não o aceitava…
Não, o que não me aceitava era o cinema em Buenos Aires. A cidade era fascinante, encontrei muita gente, amigos, estava Ernesto Sábato, Xul Solar, Mario Trejo, outros, muita gente, todo um clima muito simpático, e trabalhei também como ator numa obra surrealista de García Lorca que se chamava Assim que passem cinco anos, mas com o cinema se deu essa dificuldade política mais a impossibilidade de aprender, e além do mais tudo isso coincidiu com um fenômeno histórico muito importante que era o neo-realismo italiano. Estávamos nos anos em que chegavam à Argentina os primeiros filmes italianos, Roma cidade aberta, de Rossellini, vários outros… aliás, digo-lhe que na Argentina havia uma cultura cinematográfica… Por exemplo, [Sergei] Eisenstein, eu conheci antes por lê-lo do que por vê-lo, porque tinha sido traduzido do russo O sentido do cinema, um livro determinante, e isso e mais o realismo italiano foram grandes impulsos para eu seguir. Então me decidi a ir para a Itália, e foi um primeiro exílio, digamos assim.
O exílio dos anos 1950.
Exato. Saí disposto a experimentar a cinematografia e estudei no Centro Experimental num momento em que já chegavam outros estudantes da América Latina atraídos pelo neo-realismo, dos quais os dois primeiros foram este que lhe fala e um compatriota seu de quem gosto muito, que é Rudá de Andrade, uma pessoa adorável.
Quem eram seus professores em Roma?
Nesse momento havia no Centro professores fixos, como o crítico Mario Verdone, por exemplo, um grande historiador do cinema italiano, mas de outro lado vinham nos dar aula os grandes diretores como Vittorio de Sica, Luchino Visconti ou mesmo Roberto Rossellini… Também Renoir… era realmente uma plêiade de grandes diretores que vinham periodicamente dar suas aulas. Era um ensino muito sério, de muita formação.
E então os dois jovenzinhos da América Latina receberam sua formação de cinema dos grandes mestres italianos.
Exato. E depois vieram outros latino-americanos, veio García Márquez, veio Tomás Gutiérrez Aléa, de Cuba, mesmo Glauber Rocha passou pelo Centro Experimental, e tanta gente mais… Tarik Souki, da Venezuela, Julio Garcia Espinosa, também de Cuba… uma grande quantidade de companheiros.
E quanto tempo você terminou ficando nesse período em Roma?
Terminei meus estudos no Centro Experimental, que foram dois anos, me graduei, e ao mesmo tempo comecei a trabalhar no cinema italiano, em várias coisas. Trabalhei como ator, no primeiro filme de Francesco Maselli, Gli sbandati, con Lucia Bose e outras pessoas, depois trabalhei como assistente de direção de Carlo Lizzani, um grande cineasta que depois foi também diretor do Festival de Veneza, trabalhei como assistente de Vittorio de Sica e de Cesare Zavattini no filme Il tetto. Zavattini foi meu grande amigo, foi a pessoa com quem tive o diálogo mais sério, mais profundo e mais determinante para mim em minha futura carreira, porque era um vulcão, numa erupção de idéias permanente, um grande inovador, um precursor de muitas coisas, do que depois vai ser o cinema novo, o “nuevo cine”, o “free cinema”, o cinema democrático, o vídeo democrático de que se fala tanto agora. Ele foi o primeiro homem que lançou os famosos “cinegiornali liberi”, os cine-diários livres, que eram como noticiários, mas absolutamente antioficiais, contra a cultura oficial, contra a retórica da cultura oficial, muito provocadores, nessa época mais forte, mais florescente e produtiva do neo-realismo. A Zavattini, e justamente por isso, dedico Za05 – Lo viejo y lo nuevo, um megaclipe didático e coletivo em homenagem aos 20 anos da EICTV, a Escola de Cinema e Televisão de Cuba, que se completam agora.
E, afinal, quantos anos você ficou nesse tempo de estudos e trabalhos italianos?
Fiquei até 1955, passei portanto seis anos, contados desde 1950. E depois voltei, porque parecia que a Argentina ia tomar outro rumo, outros caminhos, havia interesse em minha experiência e eu cria que já sabia fazer um filme. Já tinha feito vários documentários, havia feito Immagini popolari siciliane, Selinunte, Alfabeto notturno, também já tinha trabalhado como assistente em vários filmes de ficção. Dessa forma decidi que era chegado o momento de voltar à Argentina, voltei já com um projeto de filme que era Los inundados, e nesse sentido já havia lido, amadurecido e escrito uma espécie de primeiro treatment.
MIGUEL BOYAYANVocê efetivamente fez esse filme.
Sim, foi meu primeiro filme de ficção, de longametragem. Mas para fazê-lo tampouco encontrei a possibilidade de que a indústria cinematográfica se interessasse, quisesse fazê-lo em Buenos Aires, e então decidi queimar os navios, romper com tudo o que era instituição, o aparatschnik oficial, e voltei a Santa Fé para começar desde o chão. Então fiz um seminário em Santa Fé, onde tive quase cem alunos, que nunca haviam feito cinema. Havia de tudo: donas-de-casa, pintores, bombeiros, estudantes universitários… Enchemos uma sala e aí fizemos praticamente os primeiros fotodocumentários, que era a maneira mais simples de fazer um projeto de filme, com fotos e com papéis, com epígrafes, saindo para encontrar as pessoas. Saindo para falar com as pessoas, perguntar de seus problemas, suas aspirações, suas raivas, seus desejos, suas esperanças, seus sonhos… e ao final, depois de dois anos de trabalho, já nos havíamos organizado como grupo na universidade, através de um Instituto de Sociologia que era muito progressista, muito liberal…
Um instituto da Universidade Nacional do Litoral…
Sim, em Santa Fé. Aí praticamente nasceu Tire Dié, que é a primeira “encuesta” social que se filma na América Latina. É um filme muito polêmico, que dividiu a Argentina em a favor e contra, teve enormes detratores e teve muita gente que o apoiou. Ele tem a ver diretamente com o tema sobre o qual você está me perguntando, o do ensino. Por quê? Primeiro, porque há um paradoxo, dado que vou à Argentina para fazer um filme de ficção, e, ante a impossibilidade de fazê-lo, volto à estaca zero e faço um documentário como uma espécie de exploração de campo que depois se vai traduzir na base do filme de ficção que faço mais adiante, Los inundados. Então, entre Tire Dié – que começa a ser feito em 1955, no qual se trabalha durante todo o ano de 1956 mais 1957, e tem a primeira cópia pronta em 1958 – e Los inundados há um ar de família total, digamos. Mas agora vem o que nisso se vincula diretamente com algo que estamos falando: é que Tire Dié é um filme-escola. É minha maneira de fazer escola. Faz tempo que sei que cinema se aprende fazendo cinema. Então as especulações teóricas são fundamentais e imprescindíveis na medida em que tenham sua contrapartida da práxis. Teoria e prática andam juntas, e então enfrenta-se uma fórmula que é mais ou menos inclusive a européia, na qual se privilegiava muito a teoria. Eu faço um pouco ao revés: parto de uma práxis e nela analiso a teoria em que a sustento. É isso que se passa com Tire Dié, por isso é um filme-escola, é um filme feito para que essas quase cem pessoas que o fazem aprendam a fazer cinema. Façam cinema pela primeira vez em sua vida. Por isso, ao lado de ser um filme-escola, é também um filme coletivo. E essa é outra das minhas idéias fixas, de minhas obsessões – o cinema como arte coletiva.
Mas você é o diretor. Como o filme, sendo uma obra sua, é simultaneamente uma obra coletiva?
É porque não fui nunca um diretor no sentido convencional, tradicional, da palavra.
Você nunca teve uma visão autoral, digamos assim?
Sim, claro, o autor de todos os meus filmes são o coletivo, somos todos diretores. É o que eu faço sobre todos, e nesse sentido Tire Dié foi determinante, tem uma função de estímulo, como uma pessoa que provoca, suscita… Visão autoral sim, mas autoritária não.
Mas as raízes dessa abordagem, dessa sua forma de fazer as coisas, em seu caso, estão lançadas numa formação marxista?
Sim, é uma parte das coisas, mas não só isso. Porque sou marxista, mas sou também tântrico, sou zen… rechaço os pequenos rótulos, porque sou cronópio, sou fama… Mas é verdade que há raízes marxistas, essa concepção parte de uma visão comunitária da vida, ou da vida como um projeto comunitário e utópico, dois conceitos que animaram todo o meu trabalho, e espero poder “tirar la pata”, como dizem, ou respirar meu último respiro (viva Buñuel!) vivendo dentro disso que lhe digo.
É bom pensar a vida como um projeto comunitário e utópico?
Se não fosse assim, que graça teria? Não teria me divertido (e sofrido) como tenho feito tanto nesta vida, com todos os dramas e as tragédias das quais participei, fui parte e sigo participando e compartilhando, ao mesmo tempo sabendo que definitivamente isso é o que dá sentido às coisas, pelo menos a mim assim parece.
Quanto tempo durou a experiência de Santa Fé?
Para mim durou até 1963 mais ou menos, um pouco antes, talvez, digamos princípio dos anos 60. Porque então a situação política se pôs outra vez muito feia na Argentina, o vírus fascista e ditatorial voltou a impregnar toda a sociedade argentina. Houve um período mais ou menos democrático do presidente Arturo Frondisi, mas os militares voltam uma outra vez a sacar suas asquerosas botas, voltam a pisotear todos e a acabar com tudo. E então para preservar um pouco a escola cujo nome oficial era Instituto de Cinematografia da Universidade Nacional do Litoral, mas que passou à história do cinema com o nome de Escola Documental de Santa Fé, decidi que não me restava outra opção senão ir-me…
Mas quantos documentários foram feitos enquanto você estava à frente da escola de Santa Fé?
Foi bastante, mas não quero dar um número que pode não corresponder à realidade.
E estão todos preservados?
Alguns sim, outros não. Por exemplo, o segundo documentário importante que a escola fez, Quarenta quartos, de um cineasta que se chama Oliva, que havia sido meu aluno, o presidente argentino desse momento o proibiu, não pôde ser visto. As coisas já se punham muito duras, muito rígidas. E ao final, depois já na época mais dura da ditadura, nos anos 70, terminaram por fechar a escola. Fecharam-na, e os militares pegaram todas as coisas, as câmaras, as moviolas… chegaram numa noite com dois grandes caminhões, com dois toldos, lonas, puseram tudo lá dentro e… desapareceu a escola. Mas tudo isso não é uma história trágica, senão o contrário, porque agora a escola existe outra vez.
Quando a escola foi reaberta?
Há alguns anos, quando retornou a democracia, foi proposto que se reabrisse a escola. Isso aconteceu e há três ou quatro anos ela tem inclusive um status já reconhecido oficialmente, chama-se Instituto de Meios Audiovisuais e é dirigido por um ex-aluno meu que se chama Rolando Lopez, uma pessoa muito boa e capaz. E justamente ontem [23 de agosto] me mandou um e-mail dizendo que terão uma casa grande para trabalhar, com cursos, formando gente, um lugar muito ativo com muitos bons professores, o Fernando Solanas, Dolly Pussi, Tristan Bauer, outros cineastas argentinos…
E você também dá alguns cursos?
Sim, eu vou uma vez por ano e dou uns seminários. Agora tenho que ir em novembro. Fico um mês, porque em seguida vou fazer outro seminário numa nova escola que vai ser inaugurada na Universidade San Martín, na província de Buenos Aires. É uma universidade muito nova, avançada e progressista, que funda uma escola de cinema documental.
Você dizia que partiu mais uma vez no começo dos anos 60, quando as coisas voltaram a ficar rígidas na Argentina. Dessa vez, para onde?
Para o único lugar onde pensava que de alguma maneira poderia ter portas e janelas abertas. Mandei uma carta, ou chamei por telefone, já não recordo, a um amigo em São Paulo, e então lhe disse que estávamos em uma situação insustentável, tínhamos que sair da Argentina, e queria saber se havia alguma possibilidade de virmos ao Brasil. E então esse amigo que era o querido Vlado [Vladimir Herzog], que havia estado com Maurício Capovila na escola de Santa Fé, o que me disse foi simplesmente “venham, estamos esperando”. Era em 1963 e o Brasil vivia uma abertura democrática incrível. A Argentina… bem, em poucas palavras: deixávamos para trás a escola, éramos quatro companheiros, homens e mulheres: Edgardo Pallero, sua companheira Dolly Pussi, Manuel Horácio Gimenez e minha companheira Carmen. Em São Paulo nos organizaram uma palestra na cinemateca, onde estava Paulo Emílio [Salles Gomes]. Quem organiza é Rudá de Andrade, e junto com ele está Vlado e também Sérgio Muniz, está toda a turma com a qual, quando termina a palestra nesta mesma noite, saímos todos com um entusiasmo único, falando em fazer muitos filmes, e isso e aquilo – havíamos apresentado Tire Dié e outros documentários da escola –, e então se aproxima um senhor, jovem ainda, porém um pouquinho mais velho do que nós, que diz “que bom… tenho uma casa de fotografia que tem aparelhos”… e esse senhor…
Thomaz Farkas!
Sim, Thomaz Farkas, grande Thomaz! Nasce então aí o movimento documentarista paulistano. E Thomaz decide levar adiante essa empresa, a assume economicamente, produz os documentários, e nós ficamos uns meses mais, depois vamos ao Rio porque a possibilidade de fazer filmes estava mais no Rio, uma vez que eu já vinha preparando um projeto com Ferreira Gullar, que era João Boa Morte.
Como você disse que se chamou a mobilização para a produção de documentários, Movimento Documentarista de São Paulo?
Agora o chamamos assim, no momento não lhe dávamos nome. Fazíamos coisas, os nomes viriam depois. É como os bebês, eles não nascem com nomes. Bom, então vamos ao Rio, trabalho com Ferreira Gullar na direção de João Boa Morte, se produz aquela coisa incrível quando as terras são dadas aos camponeses [o decreto da Supra, Superintendência da Reforma Agrária], esses também são os meses em que estréiam Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha…
Nossas duas obras-primas…
Sim, mas há toda uma efervescência bonita mesmo, um momento único. Lembro da comemoração do que deveria ser o princípio do fim do latifúndio, com os camponeses enchendo a praça, chegavam com os tratores, as foices, feixes de trigo – me fazia pensar en La tierra, o filme de Dovsenko, dos começos da cinematografia soviética –, uma coisa incrível, impressionante… Era o começo de uma era, e justamente por isso uma semana depois se trunca e já vem o contragolpe, e os próprios companheiros brasileiros me aconselham que deixe o Brasil, somos una complicação também para eles porque já nesse momento não há mais garantia de segurança para ninguém. E assim é a coisa, tenho que ir-me outra vez.
Estamos em 1964 e você volta à Itália.
Não, passo primeiro por Cuba, e lá também não posso fazer nada porque a cinematografia desse país está num momento economicamente muito difícil. E então vou à Itália e aí começa um período que continua de certa forma até o presente momento em que estou falando. Foi um período dolorosamente frustrante no início, muito ativo depois, no qual praticamente alguém já passa a ser um cidadão do mundo. E há uma frase muito desgarradora de um cineasta argentino, que foi morto pela ditadura em Paris, Jorge Cedrón, que desde então passa a ser meu lema: “Minha pátria são meus sapatos”. A vida me obrigou a isso, então eu o assumo, assumo bem, e com sonhos de futuro. Ponto e basta.
Quando você voltou à Itália, voltou a trabalhar com os diretores do neo-realismo?
Não, praticamente voltou à Itália meu corpo, mas não voltou a minha alma. Minha alma seguiu não sei onde, e começou um período muito duro, que alguns chamam de “exílio interior”… Bom, que seja, o exílio exterior, o exílio interior é tudo uma grande ausência e, em troca, eu o evoco num filme que me tomou dez anos de trabalho, que se chama Org. É um nome inventado (cuja raiz etimológica está na palavra orgasmo), é um filme que eu dedico a Che Guevara, a Mèliès, o cineasta de Viaje a la luna, e dedico a Wilhelm Reich, o autor da revolução sexual. Porque creio que são três figuras emblemáticas que ficam do final dos anos 60, quando o homem chega à Lua, em 1969, e antes, em 1967, quando se produz a morte de Che, e quando a situação política explode, em 1968, no maio francês, no projeto de um novo mundo e de um mundo que se transforma. O filme trata de tudo isso, e é também um manifesto “por um cinema cósmico, delirante e lúmpen”. É um filme absolutamente demencial, mas que traduz as Utopias (positivas) e Distopias (negativas) desse momento de demência única. De certo modo, é um filme que participa das tensões de A idade da terra, de Glauber. São dois filmes irmãos.
Desta segunda vez, até quando você ficou na Itália?
Até que terminei Org e voltei à América Latina pela Venezuela. No norte da Venezuela, em Mérida, havia um departamento de cinema de antigos companheiros meus em Roma. O diretor era Tarik Souki. Voltamos a nos encontrar e ele me levou à Universidade dos Andes, em Mérida, onde fundei no começo dos anos 80 outra escola, o Laboratório Ambulante de Poéticas Cinematográficas. Era alguma coisa muito simples, que dizíamos que estava feita para fazer cinema, ler e pensar cinema. Aí trabalhei vários anos, terminei em 1983 meu filme Rafael Alberti, un retrato del poeta por Fernando Birri, e depois de vários anos de trabalho voltei à Itália, e daí à Nicarágua e a Cuba.
Porque era ambulante? Porque estava em cima de um carro, uma caminhonete, algo do gênero?
Não, porque estava em cima de meus sapatos. O laboratório ia aonde eu ia, essa era a idéia. Assim o laboratório esteve em muitas partes do mundo.
Você podia brincar, parodiando o lema de Glauber, do Cinema Novo, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”…
Sim, exatamente, uma câmara sobre meus sapatos… mas o laboratório foi a muitas partes. Desde a Suécia até Angola e Moçambique, passando pela Alemanha, claro que viajou dentro da América Latina, na Nicarágua, México, Colômbia, Brasil, Argentina… meio mundo e um pouquinho mais. Aonde eu ia mostrar meus filmes, fazer minhas conferências, meus seminários, ia o laboratório. E era uma maneira de já ir difundindo, ir semeando, ir plantando as sementinhas do novo cinema latino-americano.
Nesse momento ainda eram difíceis grandes encontros de cinema latino-americano?
Não, não mais. No princípio, sim, era quase impossível. E depois de muitos anos, depois do final dos anos 50, o primeiro encontro foi no Sodre de Montevidéu, para o qual convidaram o Nelson [Pereira dos Santos], eu, e estava o diretor da cinemateca do Uruguai, Martinez Carril, que havia organizado isso, e foi o primeiro momento em que num evento público, como um festival, começamos a nos encontrar, nós, os latino-americanos.
Mas então ali estava a escola, o laboratório ambulante nos anos 80…
… vai se movendo, vai fazendo coisas, e quase lhe diria que, numa conseqüência lógica, normal, porque o movimento do cinema latino-americano estava sendo incrementado, o festival de Havana se tornava forte, tudo isso, então, na metade dos anos 80, em 1986, nasce a Escola Internacional de Cinema e Televisão, que é um projeto da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano. Fundação que está formada por todos nós, muitos brasileiros inclusive, como Cosme Alves Neto, determinante nesse processo, Geraldo Sarno, Silvio Tendler, agora também Wolney Oliveira, tantos companheiros… Orlando Senna, grande figura… E justamente quando me encarregam de formar a escola de Cuba, que é um projeto absolutamente autônomo, original, porque reconhece todas as experiências, mas não quer imitar nenhum modelo, entre as pessoas que chamo para colaborar comigo estão Sérgio Muniz e Orlando Senna, que depois vai ser meu sucessor na escola, com uma qualidade humana e artística de primeira ordem, e que introduz o conceito do docfic, uma tendência estética onde de alguma maneira se superam as velhas formas arterioesclerosadas da ficção, por um lado, e do documentário por outro. Docfic é uma palavra inventada por Orlando.
Sei que você já contou isso muitas vezes, mas faça, por favor, um breve resumo da fundação da escola de Cuba, processo em que você foi uma figura central.
Muito rapidamente, porque isso já foi contado tantas vezes! Uma madrugada, Espinosa, que nesse momento era presidente do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC) e estava acostumado a me chamar nas piores horas, quando sempre estava dormindo por causa da diferença de fuso horário, me despertou e disse: “Fernando, você tem que vir!”. Disse-lhe sim, você já me chamou outras vezes, e ele: “Não, você tem que vir agora, esta manhã”. Ri, lhe disse, “mas como?, é quase manhã”. E ele me perguntou quando eu poderia ir: “Depois de amanhã”, lhe disse. Embarquei. E quando cheguei vi que já estava García Márquez, que já havia confabulado com Espinosa e com Fidel, e a idéia era me encarregar da direção – mais que a direção, era realmente a fundação da escola de cinema –, e então pensei um pouco, porque imaginava o grande trabalho que íamos ter, o que ia significar não fazer uma coisa dejá vu, haveria que pensar tudo, desde o projeto, as pessoas, até a instalação do tubo que levaria água para os chuveiros…
MIGUEL BOYAYANEnfim, todas as questões práticas e teóricas estariam a seu encargo.
Bem, um momento, a responsabilidade era minha, mas o trabalho era de todos, aí voltava essa noção do conceito de que falamos antes, o coletivo, a equipe. A escola foi o resultado desse trabalho coletivo. Convocamos companheiros de todos os países da América Latina, que vieram dar sua colaboração. Sérgio Muniz veio como diretor docente, Tarik Souki como diretor de produção, Orlando Senna como professor do staff de direção. Foi um trabalho compartilhado. E, para começar, o verdadeiro nome da escola era Escola dos Três Mundos: América Latina e Caribe, Ásia e África. Isso tinha um sentido polêmico, porque nesse momento na Europa falava-se muito no Terceiro Mundo, uma denominação que eu sempre abominei, sempre reneguei, porque me parecia indigna… ora, ninguém no mundo se sente de terceira categoria, e só pode dar essa denominação somente um mundo que se atribui a condição de primeiro. Então, para romper esse equívoco, chamei nossa escola “de três mundos”, que permaneceu como um sobrenome. Enfim… havia outras necessidades formais, então mantivemos esse nome meio secreto nem tão secreto. Bem, a escola nasce com parâmetros muito específicos e muito inovadores. Porque veja, ela se propõe como escola de documentário e de ficção.
García Márquez, em Como contar um conto, dá um testemunho fantástico da experiência da escola, de como se podia ir montando coletivamente roteiros…
Sim, está muito bem contado, e ele sempre esteve muito identificado com essas experiências da escola. Trabalhava-se no roteiro, e já nas últimas oficinas dele, depois do celuloide já estava incorporado à prática da escola o teipe magnético. Na metodologia cuidou-se sempre de prática e teoria juntas.
E como lhe parece que está a escola hoje?
Muito bem. Creio que é preciso atualizar algumas coisas, por conta das dificuldades econômicas que houve. A escola era gratuita, hoje cobra, e é importante a gratuidade porque na América Latina a cobrança é sempre discriminatória. A escola tem um grande e justo prestígio internacional, mantém-se a ligação entre prática e teoria, os alunos filmam como uns loucos, não há dia nem hora em que não esteja às voltas com câmeras e gravadores… Mas creio que é hora de expandir a área das tecnologias eletrônicas. Creio que isso é o que tem que fazer a escola nesse momento, porque é o que vai continuar autorizando-a a ser uma escola de vanguarda, futurista, como foi no momento em que a criamos. Há um obstáculo, que são os custos da eletrônica, que ainda são altos. Mas sonho que a escola tenha um departamento de imagem virtual.
E assim voltamos ao princípio de nossa entrevista. Mirando o futuro, a” imageria” nova.
Exatamente. É esse o sentido da coisa: estimular uma “imageria” e uma imaginação que de alguma maneira antecipem o futuro. Se o audiovisual, o velho cinema, já não servem para nada, se são obsoletos, se significam sonhar os velhos sonhos, todas as noites precisamos cerrar os olhos para sonhar os novos sonhos. Lia outro dia que Negroponte, o mago branco da Intermídia, MIT, está numa campanha absolutamente louca e bela de fazer computadores que não custem mais do que US$ 120, US$ 150. Bem, isso em minha opinião é algo como a invenção da imprensa por Gutenberg. Produz-se uma revolução dos meios e muda já algo dentro da cabeça dos homens e das mulheres. É para o que estamos vivendo e para ter um pouquinho de felicidade, se for possível.
Yo ví, yo ví
un Lorito verde
en el zoo de Berlín,
Y pienso:
“El nuevo cine latinoamericano
es hoy una realidad
pero
pero
pero
hace veinticinco años
era una utopía.
¿Cuál la nueva utopía?”
Y el lorito
verde verde
verde loro
cuyo nombre en latín
es muy difícil
pero que seguramente
se llama Juancito o Nemesio,
es un lorito
del Alto Paraná
quiero decir mi hermano
o mi primo.
Lo ví, lo ví.
Y pienso:
“Identidad nacional.
¿Necesitaba este lorito su identidad
nacional (y crítica)?
Pero nosotros sí.
La necessitábamos:
Por un cine nacional
realista
y
crítico.
Después agregamos
popular”.
Yo ví, yo ví
el lorito
mirando el cielo gris
de Berlín
a través
de los agujeros
del alambre tejido de la jaula.
No estaba triste,
sólo reflexivo.
Y pienso:
“El problema ahora
es el lenguaje
(la ideología la hemos hecho
sangre
saliva
esperma
muertos
exilio
resistencia.
Violenta, serena
liberación
del hambre
de la conciencia).
Una revolución
que no revoluciona
(permanentemente)
sus lenguajes
alfabetos
gestos
miradas
involuciona o muere.
(el lorito repiraba, parpadeaba)
Cine-poesía
anti-literario
anti-teatro.
Metáfora viva
Haz de luz poético-político
revolución y orgasmo”.
Yo ví, yo ví
el lorito
había otros
también
apretaditos
alguna pluma caía
como un copo de nieve verde
bajo
el cielo lejano
de Berlín.
Y pienso
o creo que pienso:
“Abuelos Lumière
abuelo Méliès
abuelo Edison
reciban
este nuevo cine latinoamericano
uno en la diversidad
diverso en la unidad
Uno y el uni-verso
Hasta ahora hubo
cines de autor
cine de escuelas o movimientos
cines de países
hoy hay un cine de un entero
continente.
Se llama:
Nuevo Cine Latinoamericano.
Un entero continente
quiero decirte lorito
fonofílmico
expresa su visión
su delirio
de magma y nieve
su indignado temblor
-pongamos la cámara a la altura
del ojo de un hombre-
su trans-figuración”.
Yo digo:
“Desanudadme del compromiso
de este prólogo,
déjenme que hable (les hable)
con pan., zoom, trav., decibels, mix., 24 fot.
al segundo
de mi lengua haz proyectado de luz”.
En el zoo
De Berlín, de Berlín
yo ví, yo ví,
el lorito verde
y el lorito no me vio.
Fue escrito a pedido de Peter B. Schumann, para el prólogo del “Handbuch des lateinamerikanischen films. Herausgegeben von den Freuden der Deutschen Kinemathek aus Anlaß von Horizonte ’82”, Berlín. (Retrospectiva antológica del Nuevo Cine Latinoamericano “Horizontes”).
Por primera vez en español en la Revista de Casa de las Américas, Cuba.
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