Aos sábados pela manhã, Joaquim José de Camargo Engler repetia o mesmo gesto cotidiano de segunda a sexta-feira, adquirido havia décadas, e gastava algum tempo lendo o Diário Oficial do Estado. “Sabe por quê? As piores coisas, as mais controversas, são publicadas no sábado quando ninguém presta atenção ao Diário Oficial. É uma estratégia muito antiga do governo”, dizia o engenheiro-agrônomo, diretor administrativo da FAPESP de 1993 a 2017. O hábito foi criado na longa carreira de gestor público, que incluiu a direção da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e a participação em cargos administrativos nas diversas instâncias da USP. Engler morreu em 23 de julho, aos 81 anos, em São Paulo.
Natural de Campinas, Engler formou-se em 1964 na Esalq, localizada em Piracicaba (SP). “Naquela época ainda havia cadeiras com a chefia de professores catedráticos. Ele frequentou a chamada cadeira de economia rural e já partiu para o doutorado em economia aplicada, obtendo o título em 1968 na própria Esalq”, conta Evaristo Marzabal Neves, professor aposentado e ex-diretor da instituição. No mesmo ano, foi como bolsista da FAPESP para a Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, na qual fez o mestrado (1970) e um novo doutorado (1971) na mesma área.
De volta a Piracicaba em 1972 como docente, colaborou como assessor técnico no Ministério da Educação e iniciou o trabalho como professor visitante para a área de teoria econômica no Centro de Estudos de Economia Agrária do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal, até 1976. Nesse mesmo ano, foi um dos idealizadores e instituidores da Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (Fealq). O organismo foi criado para captar recursos nacionais e internacionais de modo a apoiar e administrar as atividades de pesquisa e a formação de recursos humanos com mais agilidade e flexibilidade.
“O professor Engler dizia que a Esalq não podia ter apenas o dinheiro disponível da universidade, mas deveria procurar obtê-lo também de outras fontes para não ficar limitada a um orçamento que muitas vezes era insuficiente”, relata Ricardo Ferraz de Oliveira, coordenador do Laboratório de Estudos de Plantas sob Estresse (Lepse-Esalq). “Ele e meu pai, Antonio Sanchez de Oliveira [1931-2008], docente do Departamento de Engenharia Rural, formaram por vários anos uma boa dupla para trabalhar pela infraestrutura do campus.” Ricardo lembra que foi Engler quem instituiu o campus Luiz de Queiroz durante seu período como diretor da Esalq entre 1983 e 1986, já como professor titular, e tornou-se seu primeiro prefeito.
Ricardo e Neves reconhecem a vocação de gestor público de Engler, mas ressaltam seu empenho na formação de jovens. “Ele incentivava a carreira acadêmica, procurava interessar alunos a se dedicar à pesquisa e era muito bom na garimpagem de bolsas e recursos em agências de fomento para indicar a quem desejava estudar no exterior”, diz Neves. “Coordenou convênios com universidades do exterior, como as estaduais de Ohio e Michigan, nos Estados Unidos, e com a Fundação Ford para desenvolvimento de estudos agrícolas, para trazer professores visitantes e enviar estudantes aos grandes centros de outros países.”
Na segunda metade dos anos 1980 começou a trabalhar na reitoria da USP. Foi assessor técnico de planejamento, chefe de gabinete do reitor, coordenador de Administração Geral e, por 31 anos, presidente da Comissão de Orçamento e Patrimônio. “Conheci o professor Engler há mais de 50 anos, como colega no Conselho Universitário da USP, um de meus colaboradores mais importantes quando fui reitor da universidade, de 1986 a 1990. Era discreto, eficiente e leal”, contou José Goldemberg à Agência FAPESP. Goldemberg presidiu o Conselho Superior da FAPESP entre 2015 e 2018, quando o reencontrou no cargo de diretor administrativo da Fundação.
Engler foi coordenador da área de Ciências Agrárias da Diretoria Científica da FAPESP a partir de 1986 e membro do Conselho Superior dois anos depois. Em 1993, assumiu a Diretoria Administrativa. “Ao longo dos 24 anos em que foi diretor administrativo, período ainda complementado por mais seis anos como assessor da presidência do Conselho Superior, ele marcou a história da FAPESP com sua integridade, com atenção no interesse público e na capacidade de relacionar-se harmonicamente com os colegas de trabalho”, diz o atual diretor administrativo, Fernando Menezes. “Tê-lo sucedido na Diretoria Administrativa permite-me ainda testemunhar a generosidade e a amizade com que sempre me apoiou e aconselhou.”
Celso Lafer, presidente do Conselho Superior da Fundação entre 2007 e 2015, lembra que Engler tinha grande conhecimento da lógica interna da FAPESP, uma instituição complexa, e dos recursos que viabilizam sua ação. “No período em que presidi a Fundação, quando já tinha mudado o patamar de receita por força da Constituição, seus conselhos foram fundamentais”, afirma. Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP, destaca sua dedicação à Fundação: “Era uma pessoa muito competente e discreta. Eu, em especial, aprendi muito com ele”.
Para Carlos Henrique de Brito Cruz, presidente entre 1996 e 2002 e diretor-científico da Fundação de 2005 a abril de 2020, Engler teve uma carreira exemplar de dedicação à pesquisa. “Prudente, sábio e discreto, sua experiência e conhecimento da história da Fundação muito auxiliaram a mim e aos colegas”, relata.
Marco Antonio Zago, atual presidente do Conselho Superior da FAPESP e reitor da USP entre 2014 e 2017, enfatiza sua importância para as instituições. “A figura do professor Engler estará definitivamente ligada às histórias da FAPESP e da USP. Os ordenamentos administrativo e financeiro das duas instituições guardarão, por longo tempo, os sinais de sua passagem, marcada pela visão de que os interesses acadêmicos e de pesquisa devem se superpor às rotinas burocráticas”, afirma.
Entre os prêmios e distinções que o ex-dirigente recebeu, estão o Internacional Alumni Award (1994), da Universidade Estadual de Ohio; a Medalha Fernando Costa (1991), da Associação de Engenheiros Agrônomos do Estado de São Paulo; a Medalha Paulista de Mérito Científico e Tecnológico (2001); o Prêmio IAC – Personalidade da Pesquisa (2014), entre outros.
Engler deixa a mulher, Cleide, os filhos, Cristina e Fábio, e três netos.
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