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Evolução

Um molde e muitas formas

Expressão de um mesmo gene em tecidos distintos ou momentos diferentes contribui para a diversidade biológica das espécies

FUSÃO DAS IMAGENS DE ASA DE MORCEGO (JOHN ZOOK/UNIVERSIDADE DE OHIO) E MÃO (EDUARDO CESAR)As aparências enganam: mão e asa têm a mesma origem genética FUSÃO DAS IMAGENS DE ASA DE MORCEGO (JOHN ZOOK/UNIVERSIDADE DE OHIO) E MÃO (EDUARDO CESAR)

A mão de uma pessoa e a asa de um morcego exercem funções tão distintas que parecem ser projetos diferentes. Mas é só olhar de perto para ver as semelhanças. São formadas pelo mesmo número de ossos, segundo instruções dos mesmos genes. Durante o desenvolvimento, basta que um gene central  na formação da mão esteja mais ativo na pata dianteira do embrião do morcego para criar uma asa. Usar o desenvolvimento embrionário para entender como alterações mínimas no mesmo projeto criam boa parte da diversidade biológica do planeta é tarefa de uma área da biologia apelidada de evo-devo, resultado da fusão de duas outras – evolução e desenvolvimento – e tema central do 54º Congresso Brasileiro de Genética, realizado em setembro em Salvador, na Bahia.

Pesquisas apresentadas no congresso mostram que muitas vezes pequenas diferenças no momento ou no local em que um gene é ativado determina a origem de novidades evolutivas. “Se você tem o rosto diferente de quem está ao lado, isso se deve às células da crista neural –  é melhor saber alguma coisa sobre elas”, disse a norte-americana Marianne Bronner-Fraser, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).

As células da crista neural surgem no início da formação do sistema nervoso dos vertebrados, animais com coluna vertebral como peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Essas células migram para a periferia do embrião, onde originam o sistema nervoso periférico, a cor do rosto de alguns animais, parte dos ossos faciais e o bico das aves. São pequenas variações nesse processo que tornam os rostos humanos diferentes uns dos outros. Marianne estuda os genes que coordenam a formação e a migração dessas células para responder a uma pergunta básica: como um tipo de célula que não existia surgiu junto com os vertebrados.

O primeiro desafio foi descrever os genes que regulam o desenvolvimento embrionário da lampreia, um peixe alongado de consistência gelatinosa que se alimenta do sangue de outros peixes. Pouco atraente, a lampreia representa o ramo mais antigo dos vertebrados, razão por que compará-la aos outros animais dá pistas de como o grupo surgiu. A equipe de Marianne examinou cerca de 50 genes ativos no embrião da lampreia e, em artigo de 2007 na Developmental Cell, mostrou que alguns dos genes mais importantes para formar uma lampreia adulta são semelhantes aos que controlam o desenvolvimento embrionário de outros vertebrados. Em muitos casos, a diferença principal é que alguns genes que entram em ação no início do desenvolvimento desses animais só são ativados mais adiante nas lampreias. Com isso, a pesquisadora mostrou que a parte inicial do circuito de genes que regula o desenvolvimento existe há mais de 500 milhões de anos.

Para entender a origem desse circuito, Marianne comparou o desenvolvimento das lampreias com o dos anfioxos – representantes vivos dos ancestrais dos vertebrados que parecem filhotes de peixes, mas não têm coluna vertebral nem crista neural. Marianne vasculhou o genoma do anfioxo e encontrou genes semelhantes aos que regulam a formação da crista neural em vertebrados, segundo artigo deste ano na Genome Research. “No anfioxo há ao menos uma cópia de todos os genes que existem em várias cópias nos vertebrados”, conta, sugerindo que já existiam em ancestrais dos vertebrados genes que foram cooptados para uma nova função nesses animais: fabricar a crista neural.

O argentino Pablo Wappner, da Universidade de Buenos Aires, também investiga genes que cumprem funções distintas em organismos diferentes. Ele estuda a formação do sistema respiratório nas drosófilas. Diferentemente dos vertebrados, os insetos não têm sistema vascular e respiram por traquéias, tubos ramificados que levam oxigênio para diversas partes do corpo e se formam segundo instruções dos mesmos genes que constroem o sistema vascular em mamíferos. Wappner vem mostrando por que as traquéias das drosófilas e os vasos sanguíneos de mamíferos se tornam mais ramificados em situações de baixo oxigênio, aumentando a eficiência de transporte do gás para os tecidos. Em artigo da Methods in Enzymology de 2007, Wappner descreveu a cascata de genes ativada na falta oxigênio que leva à ramificação das traquéias. Ele aposta que seja possível aplicar ao sistema vascular humano o que se aprende sobre as drosófilas.

Quem avançou na compreensão de como se forma o coração humano é o médico José Xavier Neto, do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo. O que há de especial no coração de vertebrados é a arquitetura em câmaras: uma recebe o sangue e outra se contrai e lança o sangue adiante. Em outros animais, exceto moluscos, os vasos sangüíneos empurram o sangue por meio de constrições das paredes – um método que tem o defeito de criar movimento nos dois sentidos, como quando se aperta um tubo de pasta de dentes pelo meio. Xavier vem mostrando que a formação das câmaras depende dos níveis de ácido retinóico no embrião. “Se tratamos o embrião com altas doses de ácido retinóico, o coração vira um grande átrio; se inibimos a produção do ácido, só o ventrículo se desenvolve.” Xavier mostrou que durante o desenvolvimento do embrião o ácido retinóico se espalha como uma onda: começa a ser produzido na cauda e aos poucos avança em direção à cabeça. Como o coração está alinhado com o eixo do corpo, no início as enzimas que produzem o composto só são produzidas nas células do átrio. Quando a onda chega aos ventrículos, seu desenvolvimento já está definido e não é alterado.

O pesquisador do InCor comprovou que a onda de ácido retinóico também existe em anfíbios, aves, mamíferos e peixes, inclusive lampreias. O anfioxo produz enzimas semelhantes às que fazem o ácido retinóico, mas o composto não se dissemina como uma onda. Em congressos, Xavier tem discutido a síntese de seu trabalho. Ele reuniu os dados que obteve até agora e sugere que a onda de ácido retinóico já existia antes do surgimento dos vertebrados e do coração dividido em câmaras. O grupo estuda agora os genes que comandam a produção do ácido retinóico. Entender como o coração se desenvolve pode nortear o diagnóstico e o tratamento de defeitos cardíacos congênitos.

MATHIAS GERBERDING/INSTITUTO MAX PLANCKMaterial genético corado em azul marca diferentes estágios de desenvolvimento no embrião de crustáceoMATHIAS GERBERDING/INSTITUTO MAX PLANCK

Outra fonte de diversidade é a expressão de genes que dão origem a segmentos do corpo de insetos – os mesmos genes que determinam as diferentes seções na coluna vertebral de um camundongo. Como todas as moscas, as drosófilas têm um par de asas e um par de pequenos apêndices chamados halteres. O biólogo Nipam Patel, da Universidade da Califórnia em Berkeley, relatou que, ao inativar o gene ultrabitórax (ubx), surgem asas no lugar dos halteres. Com quatro asas a mosca fica parecida com borboletas e abelhas, outra indicação de que pequenas mudanças geram diversidade de formas. Mas o desenvolvimento das asas ainda não está plenamente desvendado: nas borboletas, Patel encontrou grande atividade do ubx nas asas de trás, mas não nas da frente, que são maiores. A evolução parece ter recurso a mecanismos alternativos na construção das asas dos insetos.

Patel também investiga a função do ubx em crustáceos, que têm uma diversidade incomum em termos de desenvolvimento e de arquitetura. A parte anterior desses animais é composta por diversos segmentos – cada um dos quais pode ter patas, pinças ou apêndices especializados em alimentação chamados maxilípedes. O pesquisador de Berkeley constatou que nos camarões do gênero Periclimenes o gene ubx só entra em ação a partir do quarto segmento, onde começam as patas. Patel desenvolveu um método de ativar o gene nos primeiros segmentos e diminuir sua expressão nos posteriores. Assim, fez nascerem patas onde deveriam estar os maxilípedes e vice-versa.

Ele também investiga outra questão de simetria: as diferenças entre os lados direito e esquerdo dos organismos. Nos seres humanos, o coração e o estômago ficam mais para o lado esquerdo e o fígado à direita. Quando essa assimetria falha, os órgãos ficam mal encaixados, uma condição geralmente fatal. O principal gene responsável pela assimetria é o Nodal, expresso no lado esquerdo dos vertebrados. Patel mostrou que esse mesmo gene determina a torção da concha de caramujos, em algumas espécies para a direita e em outras para a esquerda. Se o Nodal for inibido no início do desenvolvimento, a concha se forma esticada. Mas por que o gene só é expresso num lado do corpo? Patel ainda não sabe dizer.

Ele não é o único a se interessar por asas de drosófilas. A geneticista Blanche Bitner-Mathé, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estuda a diversidade de formas e tamanhos das asas dessas moscas. Ao contrário dos outros especialistas em evo-devo que estudaram a embriologia antes de chegar aos genes, Blanche partiu de uma abordagem de genética  evolutiva e agora busca no desenvolvimento a explicação para suas descobertas. Ela criou drosófilas da espécie Drosophila melanogaster em temperaturas diferentes (16,5˚ C e 22˚ C) e a cada geração selecionava as dez com asas mais alongadas e as dez com asas mais arredondadas. Essas moscas dariam origem à geração seguinte, sempre à mesma temperatura. O grupo carioca verificou que a resposta à seleção varia conforme o ambiente. A 22˚ C, ao fim de 50 gerações, a equipe obteve moscas com asas alongadas e outras com asas quase redondas, formato não observado na temperatura mais fria nem na natureza. “O genoma tem potencial para criar formas que não necessariamente existem”, resume a pesquisadora, que investiga o gene rotund, que ganhou esse nome por gerar asas mais redondas quando alterado.

O trabalho de Blanche vai além de evolução e desenvolvimento. “Nossos resultados reforçam a importância de estudar a interface entre ecologia, evolução e desenvolvimento”, conta, definindo a eco-evo-devo. Em colaboração com o Laboratório de Biologia Molecular de Insetos da Fundação Oswaldo Cruz, o grupo observou que as asas alongadas produzem um som diferente das redondas – e que as fêmeas preferem machos de asas longas. O sucesso entre as fêmeas talvez ajude a explicar por que na natureza as drosófilas sempre têm asas longas.

Klaus Hartfelder, do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), também se concentra em uma única espécie: busca explicar como duas larvas de abelhas geneticamente iguais se diferenciam em rainha ou operária. Ele observou que genes ligados ao metabolismo da insulina são mais ativos durante o desenvolvimento de operárias do que o das rainhas, segundo artigo publicado este ano no Journal of Insect Physiology. É o que o pesquisador chama de paradoxo das abelhas, porque em outros insetos a insulina promove o crescimento. Nas abelhas parece ser o contrário: as rainhas são muito maiores, mas têm esses genes inativados durante o desenvolvimento.

Hartfelder verificou também que os teores de hormônio juvenil são mais altos no início do desenvolvimento das larvas das rainhas. Esse hormônio protege os ovários da morte celular, fazendo com que rainhas adultas tenham cerca de duzentas estruturas que produzem óvulos, enquanto operárias só têm entre 2 e 12 em cada ovário. O grupo de Hartfelder analisa agora quais são os genes mais ativos nos ovários de rainhas e operárias, para esmiuçar melhor como as duas castas se formam.

A solução para o enigma das abelhas? O rosto de Hartfelder se ilumina: “Não sei!” Mistérios como esse, que atiçam a curiosidade dos pesquisadores, tornam a eco-evo-devo uma das áreas mais badaladas da biologia no momento.

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