Quando fala sobre mudanças climáticas globais, o antropólogo Emilio Moran parece capaz de capturar a atenção até mesmo do mais cético dos antiambientalistas. Talvez porque, em vez de se deter só em números — seja de espécies animais e vegetais em processo de extinção, seja de graus Celsius a mais ou a menos na temperatura da Terra ou referentes a volumes de determinados gases da atmosfera —, ele ordene palavras com mestria suficiente para levar o ouvinte a vislumbrar, quase tocar, mundos futuros. São cenários às vezes assustadores que se deixam entrever por entre suas frases, outras vezes menos, mas que carregam sempre aquele quê de desconforto inerente às mudanças inevitáveis, em especial às grandes mudanças.
Cubano naturalizado americano, Moran foi um dos primeiros pesquisadores a lançar um olhar de cientista social sobre o debate do aquecimento global, por muito tempo confinado ao âmbito da meteorologia. Diretor do Centro Antropológico para Treinamento e Pesquisa em Mudanças Ambientais Globais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, ele sugere que a melhor forma de sensibilizar as pessoas para o perigo real dessas mudanças e, assim, provocar transformações em seu comportamento tradicional é estudar a dimensão humana do fenômeno, tornando cada vez mais interdisciplinar a pesquisa neste campo.
Em conferência realizada no auditório da FAPESP, em dia 8 de junho passado, Moran mostrou que é pouco produtivo o debate sobre o aumento médio da temperatura no planeta. O importante não é a elevação média de 3 ou 4 graus nos próximos 90 anos, mas as mudanças extremas, na forma de enchentes, nevascas e ondas de calor, que deverão varrer o planeta com mais freqüência. Outro exemplo de seu olhar agudo: a idéia de que a ocupação humana da Amazônia é a vilã do desmatamento não se sustenta. Isso porque a população da região está concentrada nas cidades e o que se vê nos campos devastados é a pecuária extensiva. Por que a floresta arde? Porque vigora um círculo vicioso no qual pequenos produtores devastam para ter terra de graça, lançam-se à pecuária e esperam alguns anos até a terra valorizar-se, para então vendê-la a grandes proprietários.
Um estudioso do Brasil, Moran graduou-se em Literatura Brasileira e fez pós-graduação em Antropologia, nos Estados Unidos. Em 1971 soube por um professor e grande conhecedor de América Latina, Charles Wagley, que algo importante estava acontecendo no Brasil – a abertura de uma estrada que rasgaria a maior floresta tropical do planeta. Durante um ano e meio acompanhou o nascimento da ocupação humana na Transamazônica. Nos anos 1990 deu uma guinada na carreira. Seu campo de pesquisa atual combina métodos de sensoriamento remoto com trabalhos de campo na Amazônia. Autor de diversos livros sobre a região, participa do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Seu interesse pelo país é mais do que acadêmico. Um de seus sonhos é mudar-se, um dia, para o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro. “Sonho em português”, diz ele, que deixou Cuba aos 14 anos de idade. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a Pesquisa FAPESP:
MIGUEL BOYAYANEu começaria por lhe perguntar o seguinte: como apresentar ao público os problemas ligados às mudanças climáticas globais sem que o assunto pareça irremediavelmente aborrecido, de interesse só para especialistas? Como colocar no debate uma dimensão mais claramente humana, social, capaz de sensibilizar a sociedade para esse tema?
Eu acho que o ponto de partida tem que ser falar sobre como o clima afeta e sempre afetou a vida de todas as pessoas. Quando alguém sai pela manhã, ao chegar à porta já tem que enfrentar o clima. Pode estar chovendo ou não, pode estar quente ou frio. E de saída isso influi no modo como a pessoa se veste, na escolha sobre sair ou não sair naquele dia. Hoje fala-se muito no aquecimento global, mas em termos de mudança climática global não é isso, na verdade, o mais importante. Porque esse aquecimento global tem uma média muito baixa, espera-se um aumento na temperatura de poucos graus, 3, 4 ou 5 graus nos próximos 90 anos. E isso nos piores cenários do IPCC [sigla de Painel Internacional de Mudanças Climáticas, no original inglês].
E o que então é o mais importante?
São as mudanças extremas de clima, que com certeza vamos ter e que vão resultar em diferentes experiências para as pessoas. Em qualquer lugar no mundo, numa área específica, a alteração pode ser de 10 ou 15 graus, para cima ou para baixo. As mudanças já estão em curso. Sabemos, por exemplo, que El Niño ocorre agora com mais freqüência. Antes aparecia a cada 20 anos, coisa assim, agora esse intervalo já baixou quase para cinco anos e algumas pessoas falam no fenômeno se apresentando a intervalos de três a quatro anos daqui a pouco. Em diferentes partes do mundo, como a Amazônia e outras áreas tropicais, vai ter seca com mais freqüência, mais fogo descontrolado… Em outras áreas, como o Rio Grande do Sul, vai ter mais chuva devastadora… Então as médias não traduzem o problema. Lembro de uma discussão com uma climatóloga em Belém do Pará. Relatei que os colonos falaram que já dava para ver, após 20 anos de desmatamento, uma queda na precipitação. E ela me respondeu: “Não é verdade”. Aí fomos procurar essa informação no arquivo e deu para ver que, na média dos anos, a chuva até tinha aumentado, mas nos dados diários ficava muito claro que ocorrera uma grande mudança — antes não tinha um mês com menos de 100 milímetros de chuva e agora, com freqüência, por dois, três, quatro meses observava-se quase zero de chuva. No ano tinha-se quase 100 milímetros mais, só que havia mais chuva do que antes na época chuvosa e quase nada no período seco.
Ou seja, havia uma irregularidade muito maior na distribuição das chuvas.
Exato. O que afeta a agricultura seriamente. E essas divergências de precipitação pluviométrica vão aumentar. No mundo inteiro. E em diferentes partes do país de forma diferente.
Mas quais são efetivamente os grandes vilões dessas mudanças globais que se verificam?
Bom, tem uma série de gases que são emitidos, aquecem a atmosfera e criam esse aquecimento. O dióxido de carbono é o principal, mas tem também o metano, que vem dos fertilizantes, por exemplo, e outros — mas esses são os principais. Tem o problema na camada de ozônio, agora mais ou menos estabilizado…
E que atividades humanas estão mais vinculadas às emissões que provocam essas mudanças climáticas globais?
A principal, em nível global, é o uso de combustíveis fósseis, sem dúvida nenhuma. Há, claro, uma variação de país para país. No Brasil, a contribuição do desmatamento é enorme, não sei exatamente a proporção, mas é quase igual ou maior do que a emissão dos combustíveis fósseis. Toda essa história, no entanto, com seus vilões, começou ainda na Idade Média, com a agricultura na Europa, com os monastérios e os padres nos monastérios desmatando áreas para agricultura. A Europa toda foi desmatada.
E logo se chegava à destruição das florestas européias.
Em mil anos acabaram com as florestas da Europa. Delas restaram só poucas manchinhas originais. Depois foi a fase de destruição das florestas dos Estados Unidos, no século 19. Em Indiana, onde moro, eram 94% floresta, e em um século isso baixou para 6%. Foi a mesma coisa em Ohio, Pensilvânia, Nova York… O pessoal chegou, colonizou, desmatou tudo, deixou só umas manchinhas onde era mais difícil o acesso. Isso continuou para a frente. No final do século 19, houve uma certa parada econômica na agricultura, uma transição para a atividade industrial, as cidades começaram a absorver gente liberada pela lavoura, e as fazendas que não eram muito bem manejadas, muito econômicas, com boa produção, começaram a falir. Nos anos 1930 entrou em cena a grande depressão econômica que acabou com essas fazendas. As pessoas as abandonaram e os governos começaram a pegá-las para criar reservas florestais.
Ou seja, nesse momento houve um certo reflorestamento.
É. No final do século 19 a área de florestas baixou até 6% do que havia originalmente e no momento está em 24% em Indiana, e tem outros estados em que ela já é 40% do original, na região de Nova York.
Seguindo nessa perspectiva histórica, o desmatamento se intensifica na América do Sul e na América Central, já na segunda metade do século 20, não é isso?
Exatamente. Tudo começa com a expansão econômica mundial promovida por economias como a dos Estados Unidos, quando se intensifica a industrialização, mudam os padrões da agricultura, que se mecaniza sempre mais, e passa-se a usar mais combustíveis fósseis na produção de energia. O mundo inteiro entrou numa fase de crescimento econômico rápido, mas um crescimento que favorecia uns e desfavorecia outros.
Os problemas de desmatamento no Brasil na verdade começam pela Mata Atlântica…
Que já quase já acabou também, não é? Está na mesma faixa de 6%, 5%…
O desmatamento da Floresta Amazônica é um problema mais recente. Antes dele, como se encaixa nesse raciocínio mais global a questão das florestas tropicais africanas e a questão das florestas da Ásia?
Bom, as florestas africanas e as da Ásia quase já acabaram também. E a grande preocupação de muitas pessoas que trabalharam naquela área e a conhecem bem, como uma colega minha que trabalhou por quase 20 anos em Sarawak, Indonésia, e agora mudou para a Amazônia, é que as companhias da Malásia, que são os grandes madeireiros que acabaram com a floresta lá, estão indo para a Amazônia. E se eles entrarem sem controle de governo, sem limites, áreas de proteção ambiental bem protegidas, pode acontecer no Brasil a mesma coisa que na Ásia, porque essas companhias são devastadoras. Elas acabaram com a floresta, em Sarawak, até em áreas de difícil acesso. Isso é preocupante.
E o que se pode fazer para evitar sua ação daninha?
Tem uma teoria, muito usada agora em alguns círculos, segundo a qual, se um lugar que tem muita floresta se torna acessível, a população humana irá atrás dele para usar esse recurso florestal. O governo é o principal ator nessa cena. Ele incentiva o acesso a uma área antes inacessível de floresta para incorporar sua riqueza à riqueza nacional. No caso do Brasil, criaram-se estradas com a intenção de integrar a Amazônia ao resto do país, e esse movimento foi seguido por madeireiros, por empresas da área de minério, enfim, houve uma frente de colonização, depois acompanhada por outras ondas econômicas. Mas o objetivo principal foi dar acesso e criar condições para as pessoas penetrarem naquela floresta.
Ao falar da Amazônia, estamos nos situando dos anos 1970 para cá. No caso da Mata Atlântica, é muito diferente: são séculos.
Sim, nesta o desmatamento começou em 1500, mas acelerou muito na mesma época, nos anos 1960, começo da era militar. Houve um programa do governo dedicado ao crescimento econômico, com uma estratégia de incorporação, cujo lema era “Integrar para não entregar”?, lembram? Existia uma mentalidade naquele momento na América Latina de que sem uma política de ocupação dessas áreas elas seriam entregues a outros. Não só no Brasil. Os governos do Peru e da Bolívia tinham programas idênticos de integração nacional.
Isso é claro em relação à Amazônia, mas no que se refere à Mata Atlântica o que as políticas de ocupação de territórios virgens daqueles anos têm a ver com a aceleração do desmatamento? Afinal ela estava ali no litoral, bem integrada às áreas de ocupação mais antigas do território brasileiro.
Aí já se trata de efeitos do desenvolvimento econômico, industrial. Com o aumento significativo da riqueza no país, muitas pessoas passaram a ter condições de possuir uma segunda casa no campo ou na praia, e ofereceram-se para isso terras antes cobertas pela Mata Atlântica.
MIGUEL BOYAYANO discurso do governo brasileiro hoje é de que não existe nenhum tipo de incentivo oficial para a ocupação da Amazônia. E de fato, como política de governo, nada é igual ao que havia na época do regime militar. No entanto, o desmatamento continua, às vezes em ritmo acelerado, às vezes um pouco mais lento, mas o que se diz é que há ali um movimento de expansão econômica que funciona naturalmente, sem nenhum tipo de incentivo, e não se consegue detê-lo. Parece-lhe que é assim mesmo, não há como segurar?
Penso que nessa questão ainda há alguma influência daquela ideologia do governo militar. Vejam, ela fez um apelo à nacionalidade, à noção de que essa área grande do Brasil pertencia e tinha que continuar pertencendo ao país. E existe um compromisso de assegurar que toda essa área da Amazônia seja garantida para os brasileiros. Nesse ponto, a ideologia continua como um fator que influi na política de todos os governantes do Brasil e de todos os seus setores sociais e políticos. Agora, é verdade que já há atores com poder e dinheiro para atuar independentemente do governo até. As madeireiras da Malásia estão interessadas naquela área e elas têm ligações e dinheiro para influenciar a política que lhes afeta. Igualmente, os empresários de São Paulo podem influenciar a política de crédito para a Amazônia. Diz-se que a maioria do investimento ali é para a agricultura, mas está indo para a pecuária. Então isso já tem uma vida própria, o desmatamento continua, e a presença do governo… infelizmente, continua uma ausência. Só tem presença maior quando ocorre um desastre como o assassinato da Irmã Dorothy Stang. Aí chegam 20 mil soldados, ficam por um mês ou dois, depois vão embora. As coisas vão prosseguir assim até a sociedade civil ficar mais consciente de que a riqueza da Amazônia seria mais aproveitável no futuro do que no presente, por exemplo, com a exploração farmacológica de sua biodiversidade, com seu valor em termos de proteção climática, proteção das águas… a água é o provável objeto de uma grande crise futura, e isso é uma possibilidade para o Brasil e a Amazônia. Essa é uma coisa que tem que ser mais bem estudada, para que se possa manejar melhor e ganhar mais dinheiro com os recursos da Amazônia. Com a devastação se desperdiça a maior parte de seus recursos.
Hoje há uma compreensão limitada do verdadeiro potencial desses recursos.
Claro, e como isso pode mudar? Através de políticas que valorizem uma visão a longo prazo. Só que os governos mudam a cada quatro, cinco, seis anos, é curta a visão do político, talvez mais que a de grandes empresários fixados só no agora.
Como manter, ante os problemas anunciados, uma visão não-apocalíptica do futuro em relação às mudanças climáticas globais no planeta e aqui no Brasil em particular?
Eu não sou pessimista porque acho que dá para ver mudanças na maneira como lidamos com os problemas. Em relação à propriedade, por exemplo, já mostrei em meus trabalhos que o colono aprende em 20 anos a proteger a floresta, a deixar uma boa mancha de floresta em cada propriedade e até a deixar voltar a floresta sobre áreas menos produtivas. O problema é que se continua a abrir estradas. O programa “Avança, Brasil” [do segundo governo FHC] foi um exemplo de proposta muito semelhante à dos anos 1970. Naquela época se falava da Perimetral Norte (uma estrada ao longo da fronteira brasileira para facilitar o movimento militar e proteger o Brasil das invasões de países vizinhos), que foi abandonada por causa da crise do petróleo de 1973. No “Avança, Brasil” eu vi a Perimetral Norte de novo, só que ainda mais extensa. Por isso acho que continua a mesma ideologia, ou seja, a idéia de que para proteger a Amazônia tem que se fazer essa estrada. Mas, ao fazer isso, cria-se uma abertura entre a população que está sem recursos, sem terra, e os especuladores também. E o maior problema da estrada não é deixar as pessoas entrarem, mas deixar o recurso sair. Recursos que não ficam com as pessoas ali, que vão para fora e se perdem. Então, quem se beneficia desse investimento do governo? Essa é uma das grandes perguntas. Quem se beneficia não é o povo: através dos anos que temos pesquisado na Amazônia, nunca observamos, nem no chão nem no espaço, via satélite, mais de 4% da área voltada para agricultura alimentar na Amazônia. A maior parte da área está em pasto com menos de uma vaca por hectare. Às vezes, menos até. Esse é um bom aproveitamento, tomar 1 hectare de terra, que tinha 280 espécies vegetais — uma quantidade inimaginável de recursos farmacêuticos e de recursos de alimentação para as pessoas —, destruir tudo e colocar uma vaca? Uma vaca magra, aliás, porque na Amazônia elas são magras, com carne que não é de boa qualidade. É isso que na maior parte da Amazônia se está conseguindo.
Em sua palestra na FAPESP, você abordou alguns mitos ligados à questão ambiental. Um deles seria “crescimento populacional resulta em intensificação agrícola”, coisa que a realidade, segundo sua análise, desmente. Eu gostaria que você falasse um pouco disso.
Em nível global a correlação é possível, mas em nível local não. Porque tem outros fatores que influenciam mais a intensificação agrícola. O quê? Por exemplo, políticas do governo com concessão de crédito que facilita a intensificação. Ninguém intensifica agricultura a menos que seja obrigado pela fome ou seja incentivado a substituir a lavoura do braço pela lavoura da tecnologia. E isso está faltando à Amazônia, onde o crédito vai para o pecuarista. Quase todo o crédito rural para o pequeno produtor na Amazônia vai para o desmatamento, coisa que já mostrei em várias áreas de estudo. Não existe uma forma, até agora, de prover tecnologia que facilite o uso mais intensivo da terra para reduzir os desmatamentos. É mais fácil desmatar uma grande área, botar gado nela, esperar que suba o preço da terra… porque o problema é que a terra é de graça na fronteira, e só com o tempo vai ganhando valor. O pequeno produtor investe na lavoura e daqui a 10, 20 anos, ele vende sua propriedade ao grande produtor, porque já colocou uma pastagem, que é o que este quer.
Mas insistindo nos mitos…
Olha, sobre a questão da população é preciso considerar o seguinte: quando a população aumenta em área rural, se não há outra opção, a única saída é a tecnologia de intensificação da agricultura para produzir a comida necessária. Mas em muitos casos o que ocorre é outra coisa. Ou seja, se existe a opção de migração da área rural para a área urbana porque tem emprego na cidade, esvazia-se o campo, e aí tem dois caminhos: intensifica-se o extensivo ou intensifica-se com tecnologia, que é o que está ocorrendo muito mais no mundo. Ocorreu nos Estados Unidos, está ocorrendo no Brasil também. O campo se esvazia, as pessoas vendem a terra, entra o capital, e há possibilidade de produção de soja, arroz, para o mercado mundial. A questão é até que ponto existe emprego na área urbana. Muitas vezes as pessoas da área rural vão para uma cidade pequena por perto. Essas cidades crescem e se dá um processo de concentração urbana. Mas falta desenvolvimento industrial nas cidades pequenas e até nas grandes.
Há fatores influentes das mudanças globais em curso que passam ao largo das florestas e têm a ver com a produção de areossóis, gases etc. nas cidades, nas áreas de densidade acentuada. Eu queria aproveitar para perguntar o seguinte: como pesquisar essas mudanças sem ficar preso somente aos dados do clima, da extinção das espécies, às aborrecidas projeções cheias de números, e introduzindo aí com força e clareza questões relativas a mudanças populacionais, a mudanças sociais? Enfim, como tornar essa pesquisa das mudanças globais tema legítimo de antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, filósofos etc., que de fato é
Olha, temos que criar perguntas integradas, que tenham a ver com a interação entre população e fatores climáticos. Por exemplo: como a sociedade age em termos de uso de energia? Tomemos o caso dos hotéis, no Brasil e em outras partes do mundo, que já instalaram em todos os corredores sensores de movimento. As luzes ficam apagadas, e quando uma pessoa sai de um quarto aparece só um ponto de luz bem em cima do lugar em que ela se encontra. Ou, se a pessoa caminha pela direita, as luzes começam a ser acesas do lado direito e em seguida são desligadas. Bem, não foi feito um estudo sobre se dá lucro ou não instalar esses sensores, sobre o custo/benefício dessa tecnologia… Enfim, falo aí de comportamento, de mudanças culturais, de economia. Nesse caso, comportamento em relação à luz, à energia, fator importantíssimo nas emissões de gases aquecedores, porque essa energia vem de onde? Do uso de combustíveis fósseis.
Aqui no Brasil a matriz é meio diferente.
Eu sei. Metade da energia vem de hidrelétrica. Mas é a mesma coisa. Pense no custo de uma hidrelétrica, no investimento, no custo enorme da biodiversidade, nas imensas áreas perdidas… Alguma coisa tem que botar esse sistema para funcionar: aí queimam-se combustíveis fósseis. A questão é sempre conservar energia o mais possível. Vejamos o caso do uso do carro: há que se pensar num desenho urbano em que a pessoa de novo possa ir caminhando fazer suas compras, em vez de ir com um carro enorme até o Carrefour. Isso muda também o padrão de emprego. A loja pequena perto do bairro da pessoa cria mais emprego do que aquela loja enorme…
Na verdade, você está falando de toda uma mudança de mentalidade.
E de comportamento.
Mas insisto no seguinte: como fazer, em termos práticos, para que nos estudos científicos sobre mudanças globais haja uma abordagem integrada dessas questões ligadas a comportamento, mentalidade etc., com aquelas vinculadas a física, química e biologia que as pesquisas ambientais e climatológicas sempre envolvem?
Penso que já hoje, na Europa, nos Estados Unidos, por exemplo, existe uma aceitação no âmbito das ciências ambientais de que é preciso incluir a parte socioeconômica, a parte humana, na pesquisa de clima e mudança global. Há programas apoiados pela NSF [Fundação Nacional de Ciência, dos Estados Unidos] que já faz dez anos seguem essa orientação. Nós, por exemplo, num projeto específico, escolhíamos três ecossistemas, em 12 países, para comparar esse relacionamento de população e floresta. E era um projeto que recebeu muito recurso para pesquisa. Essa pesquisa de acompanhamento integrado prossegue e os programas têm aumentado.
Você podia falar um pouco de sua participação nesses estudos pioneiros que integraram ciências exatas, biológicas e sociais.
Na verdade, foram os cientistas de clima que vieram às ciências sociais, em 1988, dentro de um movimento internacional com base em Estocolmo. O convite partiu deles porque se deram conta de que os modelos globais de clima estavam bonitinhos, mas só que não dava para saber como mudar o comportamento que estava por trás dessa mudança climática. Eles sabiam que a mudança era antropogênica, antrópica, como se diz mais no Brasil.
Em termos institucionais, de quem foi a iniciativa em 1988?
Foi do Programa Internacional da Geosfera-Biosfera, comitê de coordenação científica de que agora [o pesquisador brasileiro] Carlos Nobre é o chairman. Os cientistas sociais convidados eram de uma organização baseada em Paris. Eles sugeriram a outros grupos que se movimentassem para aproveitar a oportunidade de interagir com climatólogos, geólogos etc. Começaram programas em vários países e se criou o Programa Internacional de Dimensões Humanas. Que foi baseado na Suíça, em Genebra, e depois mudou para Bonn, Alemanha.
Ainda nesse âmbito das mudanças sociais versus mudanças climáticas, você falou em sua palestra sobre futuras adaptações, mudanças de cultivos, por exemplo, que certamente deverão ocorrer pelo mundo afora. Trata-se de convencer empresários, agricultores a substituir suas plantações por questão da mudança climática?
Sim, é uma coisa inevitável. Se determinada cultura não cresce em dadas condições de chuva e temperatura, não se pode plantar isso. E, se quiser plantar, vai ter que ir mais ao sul, comprar a terra do outro. Mas chega um ponto em que já se atingiu a fronteira, tem o Uruguai, no Sul do Brasil, e aí? Há um problema econômico e um problema político muito sério.
E você vê isso ocorrendo em escala mundial.
Sim, há um modelo climático nos Estados Unidos que já mostra que a fronteira do milho vai ter que mudar uns 3 graus de latitude em direção ao norte.
E a ciência deve ajudar com algumas modelagens que dêem suporte para os planejadores de política. Mas você dizia que aqui temos problemas com os modelos para as áreas tropicais.
Em parte, mais para a Amazônia. Em São Paulo é ótima a informação sobre o clima. Já na Amazônia, em centenas de quilômetros não tem uma estação meteorológica. Mas a ciência pode ajudar muito mais. Pode sugerir que em dado regime de chuva, de temperatura, a melhor opção agronômica é x ou y. E aí entra a Embrapa. Agora, isso tem mercado? Aí entra o economista. Na verdade, a maior parte da alimentação é muito restrita ainda em termos de espécies, e tem um monte de outras coisas já pesquisadas, comidas boas para o futuro da humanidade que ainda estão só nos livros de ciência.
Você enxerga efetivamente o mundo em processo de mudança: do clima, da geopolítica, do comportamento, da dieta…
Lógico. Porque se ele não muda com a mudança climática, então quando vai mudar esse comportamento? Acho que quem não muda não se adapta às mudanças, desaparece. Tem muitos ecólogos radicais, que falam “eu não me preocupo, porque o mundo vai continuar”. Às vezes acrescentam “sem a humanidade”. Porque se ela não se adapta às mudanças, se não reconhece com antecedência essa situação, não vai sobreviver. Ora, mas temos interesse, como uma espécie desse planeta, em sobreviver, não é? Então temos que pensar de forma criativa como mudar, onde mudar. Temos uma característica de não mudar mais que o necessário. E já fizemos um investimento tão grande em cultura, em economia, em infra-estrutura, que não queremos mudar além do necessário. O que se quer saber com alguma certeza é qual mudança é necessária. Aí está o problema, no momento. Há divergências ainda na pesquisa… Mas temos de agir.
Como você vê a questão proposta por Carlos Nobre, durante sua palestra na FAPESP, de que o futuro da humanidade é incompatível com o hábito de comer carne, de andar de automóvel… isso não soa como um exagero?
Talvez, mas acho um ponto importante colocar isso. Vivemos bem sem o carro antes — por que agora é tão essencial o carro? Porque temos criado sistemas de assentamento urbano que dificultam o transporte. Podemos criar situações que favoreçam usar os pés também. Ou bicicleta… Na Dinamarca, Suécia, todo mundo usa, até velhinhos de 80 anos. E têm preferência esse modo de transporte nas cidades. Muitas coisas são possíveis.
Como ser otimista nesse sentido quando o país que mais produz emissões nocivas se mantém numa posição extremamente conservadora, sem admitir de nenhuma forma entrar nos protocolos globais de redução das emissões? E estamos falando do país que detém a liderança da economia mundial.
Sou um grande crítico dessa posição dos Estados Unidos. Isso é ligado a um governo. Seria diferente se o presidente fosse Al Gore. E tudo pode mudar daqui a dois, três anos. Existe um movimento forte conservacionista nos Estados Unidos também.
Voltemos à mudança de modelo econômico, modelo social, mudança na cultura contemporânea que você vislumbra.
Veja, o comportamento atual não é sustentável e vai acabar com o planeta, com certeza. Então, temos que criar opções… Por exemplo, a Índia está num momento fundamental. Será o país mais populoso do mundo daqui a 30 anos. Vai passar a China. A Índia tem culturas tradicionais, não consumistas, muito conservadoras. Mas também tem um movimento rapidíssimo, hoje em dia, de consumo louco, descontrolado. Então esse é um momento de luta cultural na Índia entre as culturas tradicionais, que muitos diriam atrasadas, e a nova classe média, que quer consumir tudo o que não teve até agora. Se a Índia for pelo modelo americano, e a China também, aí acabou o planeta. Ninguém sabe o que vai ocorrer com o triplo do CO2 que temos hoje. Temos modelos para o dobro, o que vai ocorrer com certeza. O triplo é provável, pela falta de atenção de grandes países, como Japão e Estados Unidos, em mudar o comportamento.
Que cenário isso projeta?
Se não fizermos nada, uma grande parte da Antártida vai derreter. O nível do mar vai subir, a metade da Flórida vai ficar embaixo d’água, o que, em termos econômicos, é uma coisa enorme. Londres você esquece. Manhattan também vai ser inundada. Seria um desastre econômico, porque a maior parte da riqueza do mundo, em todos os países, está na costa. Se o comportamento não mudar, será esse o futuro. Se em 40 anos não mudarmos nada, existe uma grande possibilidade de que o padrão de mistura de água fria e quente nos oceanos, que mantém a temperatura mundial, seja quebrado, como já aconteceu há milhares de anos, esfriando algumas partes do mundo e esquentando outras. Esse tipo de mudança pode ocorrer de novo. Temos que começar a mudar já. Já deveríamos ter começado.