As variedades de Plasmodium vivax que hoje circulam nas Américas são muito distintas daquelas encontradas na África e na Ásia, segundo um grupo internacional de pesquisadores, entre eles o parasitologista Marcelo Urbano Ferreira, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Em um estudo publicado em junho na revista Nature Genetics, eles sugerem que, desde que chegou às Américas, o parasita causador da forma mais comum de malária fora da África acumulou mutações genéticas que podem tê-lo ajudado a se adaptar ao novo ambiente e a driblar os mecanismos de defesa de seus hospedeiros e principais vetores, os mosquitos do gênero Anopheles.
Os pesquisadores, coordenados pela bióloga Jane Carlton, da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, analisaram o material genético de 182 amostras do parasita obtidas em 11 países da África, da Ásia e da América Latina. O Brasil contribuiu com 20 amostras, coletadas no município de Acrelândia, no Acre, próximo da fronteira com a Bolívia. Por meio de uma técnica chamada seleção híbrida, os pesquisadores isolaram o material genético do protozoário a partir do sangue de indivíduos infectados. As amostras foram sequenciadas e, em seguida, comparadas entre si. Os pesquisadores verificaram que, do ponto de vista genético, as cepas de P. vivax provenientes de países da África e da Ásia eram bem diferentes das dos países da América Latina.
O P. vivax causa cerca de 16 milhões, de um total de 214 milhões, de casos de malária no mundo todos os anos. Só no Brasil, estima-se que a espécie responda por 85% dos 300 mil casos da doença notificados anualmente na região da Amazônia. Apesar de a malária ser considerada um grave problema de saúde pública em muitos países, pelo menos um dos parasitas que a causam, o P. vivax, ainda é pouco estudado. Isso ocorre, em parte, porque é quase impossível cultivar essa espécie de Plasmodium em laboratório para investigar a sua biologia. O P. vivax não causa mortalidade, e supostamente não é resistente às drogas. Nos últimos anos, no entanto, começaram a surgir casos de pessoas diagnosticadas com malária causada por P. vivax que apresentavam complicações de saúde e, em alguns casos, morriam. Também a partir dos anos 1990 foram verificados cada vez mais relatos em várias regiões da América Latina de resistência desse parasita ao fármaco cloroquina, o antimalárico mais usado no mundo.
Os resultados divulgados na Nature Genetics ajudam a explicar esses fenômenos, de acordo com Ferreira, que há alguns anos se dedica ao estudo de possíveis mecanismos de resistência aos medicamentos antimaláricos na Amazônia. “Esse repertório mais amplo de variantes genéticas confere ao P. vivax maior capacidade de se adaptar ao meio em que vive, o que inclui aprender a driblar as defesas do organismo hospedeiro e a desenvolver resistência às drogas usadas no tratamento da doença”, explica. Isso significa que, por ora, nenhuma vacina ou medicamento antimalárico seria completamente efetivo no controle do parasita.
Processo de adaptação
No estudo, os pesquisadores também verificaram que os genes com mais versões alternativas (polimorfismos) eram aqueles responsáveis pela produção de proteínas que são reconhecidas pelo sistema imunológico do hospedeiro, seja o mosquito ou o ser humano. Desse modo, ao chegar às Américas, é provável que tenham sobrevivido apenas os parasitas com uma variedade de genes que lhe permitissem escapar da resposta imune dos mosquitos da região, os quais são bastante diferentes dos que circulam em países da África e da Ásia.
Outra conclusão importante é que a variabilidade genômica do P. vivax é muito maior do que a do P. falciparum, espécie predominante no continente africano e responsável pela forma mais agressiva e fatal de malária. “Há muito mais polimorfismos em uma população de P. vivax na Amazônia do que em toda a população global de P. falciparum”, diz o parasitologista. Os pesquisadores ainda não sabem por que isso aconteceu, mas têm algumas hipóteses. Uma delas é que o genoma de P. vivax teria mecanismos de reparo de mutações menos eficazes. Outra possibilidade é que P. vivax e P. falciparum acumulem mutações de maneira semelhante e que o primeiro tenha agregado mais alterações ao longo do tempo por ser uma espécie mais antiga.
Alessandra FratusTambém não é possível dizer quando exatamente o P. vivax chegou às Américas. Segundo Ferreira, é provável que o protozoário tenha vindo com os colonizadores europeus e os escravos. Nesse caso, ele explica, o ciclo de vida do parasita pode ter sido crucial para sua sobrevivência durante a viagem. No organismo humano, o protozoário se instala inicialmente nas células do fígado, nas quais amadurece e se multiplica, antes de ganhar a corrente sanguínea. Ainda no fígado, alguns exemplares do P. vivax entram em estágio de dormência, com baixa atividade metabólica. “O parasita pode permanecer nesse estágio por meses, até despertar, multiplicar-se e se espalhar no sangue.” Isso daria tempo suficiente para fazer a travessia do Atlântico e chegar em plena atividade ao novo continente.
Outra hipótese aventada pelos pesquisadores é que parte dos parasitas que circulam nas Américas seja descendente de exemplares vindos há mais de 10 mil anos, a partir do leste asiático, com as primeiras migrações humanas.
Ferreira e sua orientanda de mestrado Thaís Crippa de Oliveira trabalham agora no sequenciamento de outras nove amostras do P. vivax obtidas no Acre. A partir delas, o pesquisador quer verificar diferenças e semelhanças com as cepas de outras regiões das Américas, como Colômbia, Peru e México. “Pretendemos desenvolver marcadores genéticos de resistência à cloroquina e comparar os dados obtidos em nosso laboratório com informações colhidas em outras regiões sobre relatos de resistência do parasita ao medicamento”, conclui.
Projeto
Resistência à cloroquina em Plasmodium vivax: avaliação fenotípica e molecular na Amazônia Ocidental brasileira (nº 2010/51835-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Marcelo Urbano Ferreira (ICB-USP); Investimento R$ 103.417,00.
Artigo científico
HUPALO, D. N. et al. Population genomics studies identify signatures of global dispersal and drug resistance in Plasmodium vivax. Nature Genetics. 27 jun. 2016.