Cidade do nordeste paulista cercada de canaviais, Jaboticabal guarda segredos valiosos numa sala climatizada do campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em gavetas de grandes freezers, a 86 graus Celsius negativos. Invisíveis a olho nu, esses segredos ficam em cilindros amarelados com menos de 2 milímetros de diâmetro, guardados em caixinhas de acrílico.
O material interessa a cientistas do mundo todo e atrai a curiosidade dos usineiros da vizinhança. São clones dos genes seqüenciados da cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) e de quatro bactérias causadoras de pragas agrícolas (fitopatogênicas): Leifsonia xyli, que provoca o raquitismo da cana; Xylella fastidiosa, responsável pelo amarelinho dos laranjais ou clorose variegada dos citrus; Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico; e Xanthomonas campestris, que ataca algumas verduras. Esse é o acervo do Brazilian Clone Collection Center (BCCCenter), centro de estocagem ali inaugurado em abril último com investimento de US$ 600 mil.
Bactérias hospedeiras
Criado nos moldes do American Type Culture Collection (ATCC) e do Image Consortium, dos Estados Unidos, o BCCCenter confirma a posição brasileira na elite da biotecnologia. “Corríamos o risco de ver todo o trabalho realizado nos últimos quatro anos se perder de uma hora para outra, porque antes da instalação do centro os dados estavam na memória dos computadores, mas os clones contendo os genes estavam dispersos em vários laboratórios”, diz o professor Jesus Aparecido Ferro, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, um dos coordenadores do centro.
Com capacidade para 1.612.800 clones, o BCCCenter já guarda em oito freezers um total de 65 mil genes, dos quais 40 mil da cana-de-açúcar. É o maior banco de genes da cana no mundo.Para obter todos esses genes únicos, foi necessário produzir 300 mil clones da cana e outros 200 mil das bactérias fitopatogênicas. “Os genes seqüenciados da planta ou das bactérias”, relata Ferro, “são clonados em um segmento de DNA (ácido desoxirribonucléico, portador do código genético) circular chamado de vetor, que é então introduzido em linhagens da bactéria Escherichia coli.”
“Essas bactérias”, prossegue o pesquisador, “contendo esses genes de outro organismo, multiplicam-se em grande quantidade, cada bactéria filha carregando também o gene exógeno. Assim, nãosó servem de hospedeiras, mas também para aumentar o número de cópias dos genes, de modo que eles possam serdistribuídos sem perda do clone original”.
Clonagem e estocagem são feitas numa área de 300 metros quadrados, com três salas. Na primeira, fica o principal equipamento: um robô que custou US$ 252 mil e faz a manipulação do material. Ele trabalha por meio de um braço mecânico de pouco mais de 1 metro, instalado numa caixa de vidro de 2 metros quadrados. Dotado de câmara de vídeo, o robô seleciona digitalmente as colônias que contêm os genes: coleta o material e consegue dispor 27 mil genes em duplicata numa membrana de náilon quadrada – 22,5 por 22,5 centímetros – o chamado chip de DNA. A vantagem do robô é a capacidade de escolher e pinçar 30 colônias de bactérias por minuto, com as agulhas situadas na ponta do braço. Assim, elimina o risco de erro humano e acelera o processo em mais de 100 vezes.
A partir do trabalho do robô, as amostras são organizadas em microplacas, cada uma comportando 384 genes, guardadas nos freezers para que as bactérias conservem seu material genético.”Apenas num lugar como este temos o acompanhamento da evolução da multiplicação dessas bactérias e de cada processo da fase de clonagem”, comenta o professor Paulo Arruda, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do projeto de seqüenciamento da cana.
Além de estocar, o centro comercializará genes para institutos de pesquisa e empresas. “Para ter acesso aos clones”, explica Ferro, “deve-se assinar um Termo de Transferência de Material Biológico, com o compromisso de utilizar o gene ou os genes apenas com a finalidade de pesquisa, e de não repassá-los para outro pesquisador. Para o setor privado, haverá uma negociação à parte, com a participação de um comitê designado pela FAPESP.” A solicitaçãopode ser feita via Internet e o pagamento por cartão de crédito.
O preço varia. As empresas privadas devem pagar de US$ 30 a US$ 100 por clone – o banco norte-americano cobra de US$ 32 a US$ 150. Os 60 laboratórios da rede brasileira Onsa (Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos), criada pela FAPESP, vinham tendo acesso gratuito aos materiais solicitados. “Pelo menos 500 clones da cana e outros 500 de bactérias já foram distribuídos para integrantes da rede Onsa, que geraram esses clones”, informa Ferro. “A partir de agora, esses grupos deverão cobrir o custo de mantenção e distribuição dos clones solicitados, que deverá ser de US$ 5 por clone. Para outros grupos o custo deverá ser maior, mas ainda abaixo do que será estabelecido para o setor privado.”
Auto-suficiente
Como a propriedade intelectual é da FAPESP, a receita fica no próprio centro, que deve tornar-se auto-suficiente em três anos, com orçamento anual em torno de R$ 200 mil. Além dos clones, serão vendidos os chips de DNA, membranas de alta densidade com todos ou quase todos os genes de um organismo: no caso, cana-de-açúcar ou bactéria fitopatogênica. Ferro revela que uma multinacional já demonstrou interesse nos genes da cana e negocia a compra deles com a FAPESP. Pesquisadores da Austrália estão interessados em adquirir membranas de alta densidade contendo os genes da cana. Nos Estados Unidos, o chip de DNA custa cerca de US$ 2 mil e a expectativa é que esse preço também caia no Brasil.
Interesse industrial
O centro guarda ainda uma cópia de operon -trecho do genoma que controla a expressão de um conjunto de genes em bactérias: é de uma bactéria Xylella que produz uma goma semelhante à xantana, espessante de alimentos e remédios e lubrificante de broca para exploração de petróleo. A pedido daequipe do Genoma Xylella, o centro enviou um clone desse operon auma empresa norte-americana que é grande produtora da goma xantana. A empresa testa o operon com a bactéria Xanthomonas campestri, a mais usada para produzir essa goma, enquanto a equipe brasileira recebeu as linhagens das bactérias e deve fazer os mesmos experimentos, para avaliar se as propriedades do operon e da goma resultante são de interesse industrial.
“Quanto mais indústrias quiserem testar, melhor para nós”, diz Arruda. A parceria é viável porque o grupo paulista já patenteou o operon nos Estados Unidos. “Se sair negócio, estamos garantidos.” Segundo ele, os testes devem terminar até o final do ano e, se positivos, podem fazer a cooperação evoluir para um acordo comercial.Falta satisfazer a curiosidade do usineiro vizinho. O BCCCenter é a segunda parte de um projeto que começou com o seqüenciamento da cana-de-açúcar e da bactéria do amarelinho, praga que causa prejuízos anuais de R$ 110 milhões à citricultura paulista. Desde 1997, os projetos de seqüenciamento da cana e de bactérias de interesse agrícola consumiram cerca de R$ 40 milhões, que a FAPESP financiou em parceria com instituições privadas, como o Centro de Tecnologia da Copersucar (CTC) e o Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus).
Genomas e aviões
O interesse dos parceiros por genomas é o mesmo: busca de melhorias para aumentar a produtividade agrícola com novas variedades de plantas, bem como reduzir custos do combate a pragas e doenças. “A partir da identificação do DNA da planta, podemos saber exatamente quais genes estão envolvidos na síntese da sacarose da cana, quais são responsáveis pelo crescimento, quais conferem resistência a pragas e à seca, entre outros tantos”, diz Ferro. “Por isso mesmo, temos de ter cuidado e saber exatamente nas mãos de quem esses genes estão indo parar.” Com os dados em mãos, institutos de pesquisa ou empresas poderão desenvolver variedades, para que afinal o usineiro vizinho possa beneficiar-se.
“Assim como a instalação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em São José dos Campos foi fundamental para a criação da Embraer, hoje uma das maiores fabricantes de aviões do mundo, o centro é testemunha da competência que deverá propiciar as condições para um maior vigor da indústria da biotecnologia agrícola”, disse José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP, na inauguração do BCCCenter. Os investimentos prosseguem: em 2001 o projeto Genoma receberá mais R$ 30 milhões. Entre as novas pesquisas, está o seqüenciamento da bactéria Schistossoma mansoni, que causa a esquistossomose, e estuda-se o seqüenciamento do eucalipto.
O projeto
Implantação do laboratório de estocagem e distribuição de clones do Projeto Genoma da Cana-de-Açúcar (SucEST) (nº 00/02898-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa- Programa GENOMA; Coordenador Jesus Aparecido Ferro – Unesp de Jaboticabal; Investimento R$ 435.411,47 e US$ 467.553,59