Um hormônio está por trás da contração uterina na hora do parto, da liberação do leite durante a lactação, da modulação de comportamento social e da formação de laços sociais e afetivos. É a oxitocina (ou ocitocina), que até recentemente se acreditava imutável em mamíferos. Não é surpreendente, dada a importância de suas funções. Mas nos últimos anos pesquisadores detectaram variações em primatas, agora corroboradas e ampliadas por um grupo coordenado pela geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mais do que isso, os resultados relacionam as alterações também à atividade paterna de cuidado dos filhotes. “O desafio que Cátira lança é central no papel do pai”, afirma o fisiologista Aldo Lucion, também da UFRGS e colaborador do trabalho, entusiasmado com os resultados que abrem caminho para novas questões.
O estudo analisou a composição da oxitocina e de um receptor para esse hormônio em 29 espécies de primatas, entre eles 20 macacos do Novo Mundo (América do Sul e Central), a partir de amostras cedidas pelo veterinário Alcides Pissinatti, do Centro de Primatologia do Rio de Janeiro. O grupo de Maria Cátira analisou as sequências genéticas que fornecem as instruções para a confecção das moléculas por meio de um modelo estatístico que compara as mudanças nas linhagens ao que seria esperado se a seleção natural não empurrasse a evolução para lado nenhum e as mutações acontecessem ao acaso – uma situação de neutralidade, no jargão evolutivo. “Vimos que em Cebidae o padrão foge da neutralidade”, resume a pesquisadora, se referindo à família que abriga boa parte dos macacos sul-americanos e 16 das espécies estudadas. O trabalho foi o resultado do mestrado do colombiano Pedro Vargas-Pinilla, aluno de Maria Cátira coorientado pela geneticista Vanessa Paixão Côrtes, também gaúcha, que implementou esse tipo de análise na UFRGS e agora é professora na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Detectar uma ação específica da seleção natural num hormônio tão essencial já chama atenção por si – a evolução é adepta da máxima “em time que está ganhando não se mexe”, em sistemas que não podem falhar. Até agora, variações na oxitocina só foram encontradas na linhagem que surgiu há cerca de 30 milhões de anos e deu origem aos macacos do Novo Mundo. São cinco tipos diferentes, com pequenas diferenças, que se manifestam de maneira uniforme nas linhagens em que se estabeleceram: quando o estudo analisou mais de um indivíduo de uma mesma espécie, a mesma variante estava presente em todos. Já a oxitocina do ser humano, um primata originado no Velho Mundo (África), é igual à do camundongo. Estima-se que o ancestral comum entre os dois animais viveu há 70 milhões de anos.
A descoberta fica ainda mais interessante quando se coteja as alterações genéticas com o comportamento dos pais. Entre as 12 espécies de saguis e micos consideradas no estudo (parte da família Cebidae), em quase todas é comum a gestação e nascimento de gêmeos, e em todas os machos têm a tendência de cuidar dos filhotes – um comportamento incomum quando se consideram mamíferos como um todo. Basta imaginar um animal pequeno como um sagui saltando de galho em galho carregando dois filhotes que ao nascerem têm, em conjunto, quase 20% do peso de uma fêmea. Fica óbvio que essas mães precisam de ajuda. “O valor adaptativo de uma alteração é maior naquele conjunto de organismos”, explica Maria Cátira, refletindo sobre o fato de a oxitocina ter deixado de ser mantida imutável nessa linhagem. Para ela, é certo que existem variantes moleculares por trás do comportamento. Falta identificá-las. “Um desafio das ciências biológicas é conectar genótipo e fenótipo”, afirma, referindo-se à manifestação das informações genéticas no organismo.
Outro cebídeo, o macaco-da-noite, também tem alteração na oxitocina e pais ativos no cuidado, embora não costume ter gêmeos. Já o macaco-de-cheiro tem a alteração, mas não se caracteriza por cuidado paterno, um dos exemplos de que não há uma relação absoluta entre o hormônio e o comportamento.
Para entender o efeito dessas alterações, resta averiguar exatamente qual a diferença no funcionamento da oxitocina modificada. Numa análise preliminar, o grupo gaúcho comparou as moléculas alteradas à estrutura tridimensional que já estava disponível para esse hormônio e viu que as conformações principais responsáveis pelas interações entre proteínas, essenciais ao funcionamento primordial da oxitocina, se mantêm (ver reportagem à página 54). Mas com sutis diferenças em cadeias laterais da molécula. “Supomos que essas alterações afetem a afinidade da oxitocina com receptores, ou aumentem o número de receptores com que ela é capaz de interagir”, imagina Maria Cátira.
Ela planeja testar a afinidade com receptores com moléculas que serão sintetizadas em laboratório pelo biólogo Claudio da Costa Neto, da Faculdade de Medicina do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). As mesmas moléculas também serão usadas em experimentos comportamentais pelo grupo de Aldo Lucion. “Vamos borrifar a substância nas narinas de ratos machos e observar o comportamento de cuidado dos filhotes”, planeja o fisiologista da UFRGS. O experimento deve começar em breve, assim que obtenha a autorização ética para o manejo dos animais e eles se adaptem ao ambiente experimental, um processo que pode demorar cerca de dois meses.
Na experiência de Lucion, os machos de ratos de laboratório não se ocupam diretamente da prole, mas “permitem que a mãe desenvolva na plenitude o cuidado maternal”. Um exemplo é ceder os melhores espaços (mais protegidos) de suas tocas artificiais para as fêmeas e sua cria durante o período de lactação. “Imaginamos que seja possível desenvolver um comportamento afiliativo mais completo.” É o que acontece com muitos primatas, conforme revela o estudo de seus colegas geneticistas liderados por Maria Cátira.
O laboratório de Lucion há anos estuda, por meio de experimentos, o efeito da oxitocina no comportamento, principalmente em ratas. “Sabemos que esse hormônio está por trás da formação dos vínculos afetivos e que tem papel fundamental desde o nascimento”, explica. “Quando um filhote de mamífero nasce, o primeiro desafio é encontrar o mamilo da mãe”, exemplifica. Quando há deficiência na produção da oxitocina, como acontece em pessoas com a síndrome de Prader-Willi, um distúrbio genético, o bebê não se dirige ao peito. Na natureza, um recém-nascido com esse problema dificilmente sobreviverá.
Lucion ressalta a importância do cuidado maternal na evolução dos mamíferos, que em sua maioria se concentram em produzir uma quantidade menor de filhotes e investir mais na sobrevivência de cada um. É diferente de peixes, por exemplo, que lançam centenas de ovos na água – cada um por si. A própria oxitocina, segundo ele, está por trás de garantir a dedicação materna, que desconsidera desconfortos e supera enormes demandas energéticas.
Experimentos anteriores feitos no grupo mostraram também que experiências durante o período de gestação já afetam o funcionamento da oxitocina. O estresse pré-natal altera o número de receptores de oxitocina e vasopressina (que também interagem com a oxitocina) nos embriões e causa deficiências na memória social e nas interações, conforme mostrou artigo publicado em 2013 na revista Neurochemical Research.
Esses achados, em conjunto, são meras sugestões da complexidade e da importância da formação de laços sociais e da relação entre os pais e suas proles. O raro encontro entre um estudo evolutivo, do tipo que costuma ficar entre o laboratório molecular e o computador, e experimentos comportamentais faz toda a diferença para entender um pouco mais.
Artigos científicos
VARGAS-PINILLA, P. et al. Evolutionary pattern in the OXT-OXTR system in primates: Coevolution and positive selection footprints. PNAS. v. 112, n. 1, p. 88-93. 6 jan. 2015.
SOUZA, M. A. de et al. Prenatal stress produces social behaviour deficits and alters the number of oxytocin and vasopressin neurons in adult rats. Neurochemical Research. v. 38, n. 7, p. 1479-89. 30 abr. 2013.