Causou polêmica um discurso feito recentemente pelo presidente Lula em que ele afirmava: “Eu liguei e disse: ‘Bush, o problema é o seguinte, meu filho, nós ficamos 26 anos sem crescer. Agora que a gente está crescendo vocês vêm atrapalhar, pô? Resolve a tua crise’”. Apesar do tom casual, a frase revela algumas das muitas complexidades das relações entre Brasil e EUA. Somos, assim, tão próximos do “grande irmão”, como se dizia nos tempos da Guerra Fria? Os EUA tentam mesmo “atrapalhar” o Brasil ou nos vêem com relativa indiferença? “Os dois países são um casal estranho em suas relações bilaterais. Em Brasília ainda há uma enorme resistência a pensar um programa de engajamento cooperativo com Washington. Para grande parte da opinião pública brasileira, o governo Bush tem um projeto imperialista que terminará por limitar a autonomia daqueles países que expressam valores e interesses alternativos”, observa Matias Spektor, professor de relações internacionais da Escola Superior de Ciências Sociais/CPDOC e coordenador do MBA em relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas.
“Como não há uma visão comum em Brasília e em Washington sobre o valor estratégico do eixo bilateral, suas lideranças não têm um mapa para guiar o relacionamento. O Brasil fica preso à visão de que os EUA são sempre um obstáculo e nunca uma oportunidade e chegamos ao século XXI sem um fórmula satisfatória para conduzir os negócios com a maior potência do planeta”, avisa. Por que os dois maiores países do hemisfério Ocidental não conseguem estabelecer uma cooperação de alto nível no longo prazo?, pergunta-se o pesquisador. De uma coisa Spektor tem certeza: não concorda com a “tese da rivalidade emergente” (a visão de que o Brasil, ao industrializar-se, transformou-se em ameaça ao Norte), que pauta várias das respostas ao dilema do “casal” diplomático. O pesquisador encontrou outra via ao trabalhar em sua tese de doutorado, “Equivocal engagement: Kissinger, Silveira and the politics of US-Brazil relations (1969-1983)”, defendida no ano passado na Universidade de Oxford, Inglaterra. “A relação entre as duas nações foi pautada pela barganha mais do que por uma relação séria e o projeto foi motivado por ambições políticas e sujeito a objetivos que variaram ao longo da interação bilateral”, afirma. “O ponto crucial foi a assimetria entre os dois: se os EUA foram um elemento central na grande estratégia do Brasil, nós só aparecemos tangencialmente na grande narrativa das relações internacionais americanas do período.”
A narrativa a que Spektor se refere inicia-se com a indicação de Henry Kissinger como conselheiro de segurança nacional da administração Nixon, em 1969, e termina com a saída, em 1983, do diplomata brasileiro Azeredo da Silveira do cargo de embaixador brasileiro em Washington, passando por 5 anos como ministro das Relações Exteriores do governo Geisel. O foco nas duas figuras não é casual, pois, para o autor, o ponto “fraco” das tentativas de aproximação entre Brasil e EUA é sua quase total dependência do empenho pessoal desses dois personagens. Com suas saídas de cena, nos governos Carter/Reagan e Figueiredo, as relações bilaterais, observa, se estagnaram. “É verdade que são melhores do que nas décadas de 1970 e 1980, quando os dois países passaram da hostilidade à apatia mútua. Nos anos 1990 teve início um processo de sintonia fina que dura até hoje, mas parece que daí não passa.”
“O Brasil é a chave do futuro”, afirmou, em 1971, Nixon. Um dos primeiros presidentes americanos a “acreditar” nisso, ele, em verdade, seguia o novo ideal de visão global da Casa Branca pregado por Kissinger, que defendia a necessidade de os EUA manterem relações especiais com poderes-chave regionais. “Ele estava preocupado com o desenvolvimento potencial de ruptura do mundo pós-colonial, procurando uma fórmula para lidar com isso que não se baseasse apenas na coerção. Daí o conceito de ‘devolução’, visto como uma hegemonia benigna: devolver poder e responsabilidade para um grupo de Estados regionais influentes, uma transferência de uns EUA fortemente engajados na periferia para um mundo em que a estabilidade não teria que ser mantida por uma intervenção americana direta.” Nações como Brasil, Irã, Turquia, África do Sul, Indonésia, entre outras, foram reconhecidas como parceiras potenciais, capazes de levar à frente essa nova forma de hegemonia em nome da América. Daí, nota Spektor, o interesse inusitado (e problemático, já que boa parte da diplomacia americana discordava da importância brasileira) da administração Nixon pelo Brasil, a ponto de lançar uma nova política para o país. A escolha, diz o pesquisador, também se ligava com a preocupação crescente americana pelo decréscimo de sua influência na América Latina e as prováveis conseqüências disso em tempos de Guerra Fria. Segundo a nova visão da Casa Branca, esse declínio não se explicava apenas em razão da rivalidade com a União Soviética, mas, acima de tudo, pela ascensão de um nacionalismo, de um ativismo econômico em países como o Brasil, bem como pela influência que Europa e Japão passaram a exercer, em detrimento de interesses americanos.
Para Kissinger, ganhar o apoio desses Estados era uma forma de legitimar a hegemonia americana e isso significava fazer concessões, usar a linguagem da ‘igualdade’ e do ‘respeito’, em suma, abrir um canal direto entre Washington e essas nações periféricas para, em troca, consolidar a posição dos EUA no mundo. Daí a atenção dada ao Brasil”, afirma Spektor. Tanto fazia se esses países, entre eles o Brasil, não eram governos democráticos. “Para Nixon e Kissinger, esses regimes eram aliados melhores, pois, pensavam, democracias estavam sujeitas às mudanças da opinião pública. Mas não era apenas o anticomunismo dos tais países-chave que os transformava em alvo de interesse da diplomacia americana; antes, era fundamental sua capacidade em oferecer aos EUA um grau de estabilidade e previsibilidade na conduta cotidiana das relações bilaterais.” Aqui, porém, o tom era outro. “Quando se inicia a aproximação entre os dois países, predominava, entre os brasileiros, a idéia de que era possível ao Brasil ganhar mais poder e influência global com essa relação e, ao mesmo tempo, reafirmar sua autonomia: em troca de pouco, esperávamos conseguir muito.”
Segundo o pesquisador, para apoiar esses cálculos diplomáticos do Brasil havia o fato de que o engajamento com os EUA permitiria aos generais manter controle em casa sem alienar a opinião pública nacionalista. “Nesse sentido, para os brasileiros, essa ligação foi uma ferramenta para construir uma política nacionalista conservadora com apoio dessa suposta relação ‘especial’ entre Brasil e EUA.” A reforçar esse pensamento estava a dificuldade americana em traduzir poder em influência na América Latina, o que levou as administrações a prestar atenção no Brasil por sua geografia, recursos, desenvolvimento industrial, postura anticomunista etc. Já para a liderança brasileira, observa o autor, o crescimento da economia trouxe novas ambições internacionais, o que deu à aproximação americana um interesse renovado. “Em Brasília, passou-se a ver os EUA como instrumental mais do que detrimental para o desenvolvimento nacional e para o objetivo de maior inserção global.” O início foi pouco promissor, no entanto. “A administração Médici aceitou a abertura americana com a intenção de legitimar o acirramento do controle interno. Quando o general visitou a Casa Branca, estava mais interessado em aparecer numa foto com Nixon do que discutir política mundial.”
Apesar da melhoria no nível da interlocução entre os países, a chegada em cena de Geisel e Silveira, em 1974, marcou a consolidação de uma política internacional ativista por parte do Brasil, o que trouxe nova complexidade ao projeto bilateral. “Geisel via a melhoria nas relações entre as duas nações como uma chance de abrir portas para o ativismo brasileiro no mundo”, nota Spektor. Ainda assim, era um momento histórico: “Nunca antes essa dupla tentou coordenar tão estreitamente suas respectivas políticas externas e nunca antes seus diplomatas observaram-se tão mutuamente para acertar o passo”. Tudo, porém, estava centralizado nas figuras de Kissinger e Silveira, ou seja, a aproximação se dava a despeito da burocracia diplomática dos dois países, e não em função dela. “E relações pessoais dificilmente são suficientes para transformar relações entre Estados.” Para piorar, Azeredo, em sintonia com Geisel (que rejeitou vários convites para visitar os EUA), estava “obcecado com a soberania e autonomia nacionais”. Ele acreditava, nota Spektor, que a defesa do interesse nacional estava na entrada do Brasil no clube seleto dos Estados influentes do planeta. “O Brasil, segundo ele, merecia um status especial pelo que era e não pelo que poderia ser para os EUA. Para os brasileiros, o engajamento era também sobre controlar a política doméstica: relações com os EUA era palatável para o nacionalismo, força-motriz da transição lenta e negociada desejada por Geisel.”
Foram anos de protocolos, encontros, agendas, correspondências, negociações difíceis, sem que se chegasse a um consenso de como se estabelecer essa relação bilateral. Não se pode negar o esforço de Kissinger para que ela funcionasse, aceitando muitas exigências brasileiras e “engolindo sapos” diplomáticos, que incluíram a expansão, por parte do Brasil, da agenda bilateral muito além dos seus limites previstos, com a inserção de tópicos espinhosos para a América como as revolucionárias Cuba e Portugal e a independente Angola; proliferação nuclear (com a compra de tecnologia nuclear alemã, apesar de pressões americanas para impedir o acordo entre os dois países); situação no Oriente Médio; direitos humanos etc. “O Brasil resistiu a qualquer discussão sobre questões sul-americanas, rejeitou qualquer comprometimento na luta anticomunista e enfatizou um status de prestígio nas relações internacionais.” Kissinger, em boa parte, observa o autor, aceitou essas novas orientações. O Brasil começava a se aventurar em áreas em que nenhum outro país latino-americano havia ousado, com exceção de Cuba. “Como previu um relatório da CIA: ‘Há uma sensação de que o Brasil ‘chegou’, o que vai levá-lo a diferir mais e mais com os EUA em mais e mais assuntos’.” Isso não ajudou muito a situação já precária de Kissinger, fustigado pela burocracia americana que não concordava com seus esforços em conceder um status privilegiado ao Brasil.
Com o aumento da rejeição da opinião pública e do Congresso americanos a alianças com regimes ditatoriais, continua o pesquisador, caíram as esperanças de consolidar efetivamente uma parceria entre as duas nações. O novo presidente, Jimmy Carter (que assume em 1977), já em sua campanha eleitoral, falou duramente contra um engajamento com o Brasil, quanto mais de dar a ele qualquer privilégio diplomático. Temas como poder nuclear e direitos humanos criaram tensão à incipiente ligação bilateral, que levou as relações entre Brasil e EUA ao seu nível mais baixo. “Os brasileiros se sentiram alienados pela forma e pela substância da política exterior de Carter, transformando as instituições de engajamento em escudo para resistir a pressões americanas. Apenas nos 2 últimos anos da administração Carter é que se retomou o ideal da devolução e se tentou retomar um contato Brasília-Washington.” A chegada de Reagan ao poder colocou uma pá de cal nessa aproximação, já que as prioridades do novo presidente deslocaram-se da América do Sul para a América Central, onde o Brasil tinha pouco a dizer ou fazer.
“Passaram-se décadas desse projeto malfadado, mas muitos dos problemas que afligem a ligação Brasil-EUA permanecem análogos”, observa Spektor. Apesar dos elogios feitos pela administração de George W. Bush ao país, “o gap entre as manifestações oficiais e a realidade das relações bilaterais permanece grande e com muitas dificuldades”. Para Spektor, é possível mesmo se observar hoje nos EUA um tímido reavivar do “devolucionismo”. Mas o Brasil permanece aferrado ao espírito ativista dos tempos da dobradinha Geisel-Silveira, aliás, nota o autor, elogiada pelo atual governo. “É uma pena, pois a noção de autonomia, com sua ênfase no desenvolvimento doméstico mais do que na produção da ordem internacional, permanece hoje como há 30 anos. E apesar das ambições do Brasil de ter status especial, o argumento de que ele tem algo diferente a contribuir para a sociedade internacional nunca é decifrado com clareza.”
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