Por mais de um século, um manuscrito de 1.657 páginas contendo verbetes de botânica agrupados por ordem alfabética dormiu esquecido em prateleiras e gavetas. Durante uma temporada de estudos no Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis, em 2003, a pesquisadora Nadja Paraense dos Santos foi consultada sobre a importância do calhamaço, que trazia numerosas referências à análise química de plantas. Com formação em engenharia química e história das ciências, Nadja percebeu ali um documento importante que merecia atenção especial. Tratava-se de um dicionário de botânica desconhecido, sem data e com autor anônimo.
“O livro é do século XIX, escrito provavelmente por mais de uma pessoa, e foi guardado no arquivo da família imperial”, conta Nadja, professora do Programa de Pós-graduação de História das Ciências das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sem capa nem ilustrações, o dicionário traz textos descritivos de 2 mil plantas divididos em verbetes pelo nome popular – a denominação científica, às vezes de mais de um autor, vem logo depois – e em português. “É uma obra pensada com um caráter mais popular e poderia ser entendida por qualquer fazendeiro, por exemplo.”
Das 2 mil plantas, 334 têm verbetes completos, divididos em história natural, análise química e propriedades. Em história natural conta-se a origem conhecida da espécie e descreve-se sua aparência; na análise química fala-se da consistência, do gosto, do cheiro e das substâncias de que é composta; e em propriedades os autores indicam sua serventia para debelar doenças.
“Uma das originalidades da obra para a época é a relação forte entre a química e a botânica”, observa Heloisa Maria Bertol Domingues, historiadora das ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), do Rio de Janeiro, e atualmente também diretora interina da instituição.
Outro ponto importante, de acordo com ela, é o interesse dos autores do dicionário pelo saber popular. “Eles se preocupavam em avalizá-lo, ou não, para o consumo da população”, diz. Além da descrição sensorial e química da planta, há também um trabalho de fitogeografia. Sempre que possível, os verbetes indicam em quais regiões do país determinadas espécies são mais comuns e como são conhecidas pela população.
Nadja e Heloisa se uniram em um projeto, que se tornou viável graças ao apoio do Mast e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, para estudar o dicionário e tentar descobrir seus autores. Este último objetivo não foi alcançado. “Pensamos que Theodoro Peckolt, naturalista e farmacêutico alemão radicado no Brasil, ou frei Mariano Velloso poderiam ter feito o trabalho, mas não conseguimos comprovar essas hipóteses”, relata Nadja. A última referência citada na obra é de 1865, o que leva a crer que o livro não avançou depois disso.
Elaine Andrade Lopes, pesquisadora bolsista do Mast e aluna do programa de história das ciências da UFRJ, foi quem fez a transcrição do manuscrito original. Ela viu diferenças de estilo, vocabulário e letra no documento, indícios de um trabalho realizado a várias mãos.“Há muitas citações de periódicos e livros brasileiros e estrangeiros, especialmente franceses, além de naturalistas e médicos do período”, conta Elaine. Segundo ela, os autores copiavam de almanaques, revistas e livros as informações que consideravam confiáveis, mas nem sempre davam os créditos. Isso não significa, no entanto, que eles não tivessem feito pessoalmente algumas análises químicas.
Para tornar pública pelo menos a parte mais importante do dicionário, Heloisa e Nadja criaram um projeto multimídia abrigado no endereço eletrônico do Mast. É possível acessá-lo a partir da home page www.mast.br pelo título“A química e o dicionário anônimo de botânica”, no ar desde outubro de 2012. Lá estão hospedados os 334 verbetes. As pesquisadoras ilustraram quase todos os verbetes on-line com pranchas de plantas desenhadas em períodos próximos do estimado para a obra anônima. O mesmo foi feito nestas duas páginas.
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