Daniel BuenoA causa genética da síndrome de Richieri-Costa Pereira, uma rara doença que provoca anomalias craniofaciais e defeitos na formação das mãos e dos pés, acaba de ser determinada. Um grupo internacional de médicos e geneticistas, coordenado por Maria Rita Passos-Bueno, do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP), identificou em 17 pacientes com a síndrome um tipo de mutação presente nos dois alelos (cópias) do gene EIF4A3, localizado no cromossomo 17. A alteração se caracteriza pelo excesso de repetições de um trecho do gene rico nos nucleotídeos C (citosina) e G (guanina), duas das quatro bases nitrogenadas que formam o DNA.
A mutação foi descrita em um artigo científico publicado em 2 de janeiro na revista American Journal of Human Genetics (AJHG). Também nesse dia e na mesma revista científica, outra equipe da USP assinou um segundo trabalho em que relata a descoberta de um defeito em um gene do cromossomo 3 responsável por desencadear uma forma pouco frequente de nanismo associado a problemas de visão. O CEGH-CEL é um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.
Os pesquisadores ainda não sabem como a mutação afeta o comportamento do gene, ligado ao metabolismo de RNA, e causa o surgimento da síndrome. Mas acreditam que ela possa levar à produção de uma menor quantidade da proteína associada ao EIF4A3. Esse gene foi parcialmente desativado em colônias de um peixe-modelo da biologia – conhecido como zebrafish ou paulistinha – e os descendentes que herdaram a modificação desenvolveram problemas de formação nos ossos craniofaciais compatíveis com a doença humana, uma evidência de que alterações no EIF4A3 podem desencadear o problema de saúde.
Descrita em 1992 pela equipe do médico Antonio da Costa Pereira, do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP de Bauru, mais conhecido como “Centrinho”, a síndrome foi descoberta em habitantes do Vale do Paraíba, no interior paulista. Os 20 pacientes diagnosticados com a doença no país – há um caso relatado no exterior – pertencem a 17 famílias da região. Embora formalmente não sejam aparentadas, as famílias provavelmente descendem de um único ancestral.
O traço mais característico da síndrome, que não tem cura, é a malformação da mandíbula e da laringe. Os ossos que normalmente se fundem para formar a mandíbula, que apresenta um formato em U, não chegam a se unir nos indivíduos com a doença. “Em casos mais graves, os pacientes não conseguem respirar direito e é preciso fazer uma traqueostomia”, diz Maria Rita. Os doentes têm dedos encurvados ou de menor tamanho, pés tortos e baixa estatura. Metade dos afetados pela síndrome também apresenta dificuldades de comunicação verbal e de aprendizado.
Antes da identificação da nova alteração genética, os pesquisadores sabiam apenas que se tratava de uma doença de herança autossômica recessiva, cujo risco de transmissão aumenta quando ocorrem casamentos consanguíneos. Para desenvolver a síndrome, o paciente tem de carregar mutações em ambas as cópias do gene associado ao problema de saúde, uma vinda do pai e outra da mãe. Pessoas com apenas um gene defeituoso não manifestam clinicamente a doença, mas podem passar a alteração molecular a seus descendentes. Filhos de casais em que tanto o pai como a mãe são portadores da mutação têm 25% de risco de serem afetados pela síndrome.
Daniel BuenoEncontrar a mutação associada à síndrome foi um processo demorado e complicado. Há anos os pesquisadores do Centrinho tentavam delimitar em que parte do material genético poderia estar a alteração molecular relacionada à doença. Um aluno do Centrinho chegou a passar uma temporada nos Estados Unidos em busca do gene, mas não obteve sucesso. “A mutação deve ter uma origem antiga e provavelmente a região comum entre os pacientes é muito pequena”, diz Maria Rita.
O cerco começou a se fechar depois que os pesquisadores usaram uma grande quantidade de marcadores ao longo de todo o genoma, cerca de 500 mil marcadores do tipo SNP (sigla em inglês para single nucleotide polymorphism, ou polimorfismo de um único nucleotídeo). O termo designa as várias formas que um nucleotídeo pode assumir. Com a ajuda de programas de computador, compararam o material genético dos pacientes entre si e também com o de familiares saudáveis e chegaram em uma região de 122 mil bases do cromossomo 17. Esse segmento abrigava quatro genes que poderiam estar relacionados à causa da doença.
A repercussão clínica dos defeitos em três desses genes já era conhecida: mutações em um gene estavam ligadas à psoríase, em outro a uma forma de glicogenose (doença do armazenamento do glicogênio) e em um terceiro à doença respiratória conhecida como discinesia ciliar primária. Como nenhuma dessas condições clínicas se assemelhava com a síndrome de Richieri-Costa Pereira, as atenções se voltaram para o quarto gene, o EIF4A3.
O ressequenciamento desse gene nos pacientes e a comparação dos resultados com a versão do EIF4A3 encontrada em 520 brasileiros sem a síndrome levaram à localização da mutação. A alteração se situa num pequeno trecho da sequência, composto de 18 a 20 nucleotídeos e rico nas bases citosina e guanina, que regula o funcionamento do gene, denominada região promotora no jargão da biologia molecular. As pessoas sem a doença têm de 3 a 12 cópias desse trecho do gene. Os pacientes apresentam de 14 a 16 repetições do segmento.
A confirmação de que a mutação ocasiona a doença foi obtida por um experimento coordenado pela pesquisadora Nora Calcaterra, da Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, coautora do trabalho e colaboradora de Maria Rita num projeto financiado pelo acordo de cooperação FAPESP-Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas). Em seu laboratório, ela alterou temporariamente o funcionamento do gene EIF4A3 em colônias de zebrafish, peixe cada vez mais usado como modelo biológico para estudar doenças humanas (ver reportagem de capa da edição 209 de Pesquisa FAPESP). “Usamos uma abordagem que leva à menor expressão do gene”, afirma Nora. “Mimetizamos a síndrome ao diminuir a quantidade de RNA mensageiro (necessário para produzir a proteína associada ao EIF4A3) transcrito pelo gene.”
Em seguida, a pesquisadora acompanhou o desenvolvimento das linhagens geneticamente modificadas do peixe com o emprego de microscopia de luz e registrou sua morfologia geral. Os paulistinhas alterados apresentaram malformações em suas cartilagens craniofaciais compatíveis com a síndrome registrada em humanos. Para comprovar que as alterações eram de fato causadas pela deficiência, Nora injetou RNA do EIF4A3 nos peixes. O procedimento equivale a restabelecer o funcionamento padrão do gene e permitiu o desenvolvimento normal das colônias de zebrafish.
Dessa maneira, ficou comprovado que a mutação identificada pelo centro da USP na região promotora do gene EIF4A3 é a principal responsável por ocasionar a síndrome. Principal, mas não a única. A equipe de Maria Rita identificou outro tipo de mutação nesse mesmo gene em um paciente que apresenta um quadro clínico mais brando da síndrome (a mandíbula se formou normalmente, mas ele apresenta alguns problemas anatômicos menos graves nos membros e na laringe). Também descrita no artigo científico, essa segunda alteração genética é de natureza distinta da anterior, mas parece ser suficiente para desencadear formas mais leves da doença. Sua descoberta reforça a ideia de que o funcionamento do gene EIF4A3 é chave para o desenvolvimento da rara síndrome.
Pequeno e com pouca visão
Defeito genético provoca uma forma de nanismo associada a problemas progressivos na retina
O gene responsável por uma forma muito rara de nanismo associado à perda progressiva da visão, denominada displasia espôndilo-metafisária com distrofia de cones e bastonetes, foi descoberto por pesquisadores da USP. Depois de sequenciar todos os segmentos do genoma responsáveis por codificarem proteínas de quatro pacientes brasileiros, oriundos de duas famílias, a equipe coordenada pela geneticista Débora Bertola, do CEGH-CEL e também médica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, encontrou duas mutações no gene PCYT1A, localizado no cromossomo 3. Os resultados do trabalho foram publicados no dia 2 de janeiro na revista científica American Journal of Human Genetics (AJHG).
Nessa mesma data, um grupo da prestigiada Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, assinou outro artigo na publicação em que igualmente relata a identificação de outras mutações no gene PCYT1A, também capazes de provocar esse tipo de displasia. Os pesquisadores americanos usaram a mesma técnica de sequenciamento empregada pelos brasileiros e analisaram o material genético de três pacientes de diferentes países. “Os dois trabalhos foram feitos de forma independente e concomitante. São equivalentes”, compara Débora. “Estamos orgulhosos. Nosso grupo utilizou a mesma tecnologia de ponta e chegou aos mesmos resultados tão rapidamente quanto um dos mais prestigiados centros de estudos de doenças genéticas dos Estados Unidos.”
Até agora existem menos de 20 casos da doença em todo o mundo descritos na literatura científica. Para que essa displasia se manifeste clinicamente, é preciso que o indivíduo carregue mutações nos dois alelos (cópias) do gene PCYT1A. Alguns afetados não atingem altura superior a 1 metro na idade adulta. O nanismo decorre de alterações ósseas na coluna e nos membros inferiores, que são muito encurvados. Os pacientes apresentam ainda alterações em células da retina (os cones e bastonetes que fazem parte do nome da doença) que minam progressivamente sua visão. Não existe tratamento efetivo para evitar o avanço da doença. Apenas cirurgias ortopédicas corretivas podem ser feitas
de maneira paliativa.
Foi uma surpresa o gene PCYT1A, que nunca tinha sido associado a qualquer doença genética, ser o alvo das mutações implicadas nessa displasia. “Num primeiro momento foi difícil associá-lo diretamente ao problema ósseo e de retina, uma vez que não havia descrição prévia de seu envolvimento em doenças humanas do metabolismo ósseo ou da formação da retina”, explica Guilherme Yamamoto, primeiro autor do estudo brasileiro. O gene codifica uma enzima que atua em uma via metabólica da formação da fosfatidilcolina, um fosfolipídio importante para o desenvolvimento das membranas celulares. “Nosso trabalho mostra apenas que o gene é o responsável pela doença. Falta ainda demonstrar de que forma isso acontece”, afirma Débora. “Para sabermos o real mecanismo de causalidade, estudos sobre como essa proteína funciona deverão ser realizados.”
Projetos
1 Investigation of the role of oxidative stress ND the CNBP protein in treacle-deficient mesenchymal stem-cells and in zebrafish models (FAPESP-Conicet) (nº 2010/52446-4); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Pesquisadora responsável Maria Rita Passos-Bueno – USP; Investimento R$ 12.708,67 (FAPESP).
2 CEGH-CEL – Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (nº 13/08028-1); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão – Cepid; Pesquisadora responsável Mayana Zatz – USP; Investimento R$ 2.266.005,51 e US 940 mil por ano para todo o Cepid (FAPESP).
Artigo científico
FAVARO, F.P. et al. A noncoding expansion in EIF4A3 causes Richieri-Costa-Pereira syndrome, a craniofacial disorder associated with limb defects. American Journal of Human Genetics. v. 94, n. 1, p. 120-8. 2 jan. 2014.
YAMAMOTO, G.L. et al. Mutations in PCYT1A Cause spondylometaphyseal dysplasia with cone-rod dystrophy. American Journal of Human Genetics. v. 94, n. 1, p. 113-9. 2 jan. 2014.