Qualquer paisagem com dinossauros não fica completa sem as cicas. No mesmo período em que esses répteis se agigantaram e se espalharam pela Terra, essas plantas – fisicamente semelhantes às palmeiras, mas aparentadas dos pinheiros – dominaram a paisagem do planeta. Registros fósseis mostram que as cicas surgiram há cerca de 270 milhões de anos e existem até hoje. Como a aparência delas quase não mudou ao longo do tempo, as cicas são tidas como fósseis vivos. Ou melhor, eram. Um estudo de uma equipe internacional que contou com a participação de um pesquisador brasileiro acaba de mudar radicalmente o rumo dessa história.
Nada como uma análise de DNA para trazer nova luz ao estudo da evolução da vida. Com base na morfologia – ou seja, no aspecto visível das plantas –, os biólogos não enxergavam muitas diferenças significativas entre os fósseis com dezenas de milhões de anos e suas contrapartes vivas. A única grande diferença era a quantidade de espécies. Aparentemente, em tempos antigos, a variedade era bem maior (o auge foi durante o Jurássico, entre 201 milhões e 146 milhões de anos atrás), o que fez muitos pesquisadores suporem até que foi o sumiço dos dinossauros que levou à redução na biodiversidade das cicas.
O novo estudo, liderado por Sarah Matthews e Nathalie Nagalingum, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, partiu das espécies que estão por aí (cerca de 300, um número bem modesto) para traçar sua filogenia – uma espécie de árvore genealógica reconstruída a partir do DNA. Para isso, analisaram um gene específico, o fitocromo P (PHYP). A ideia era usar as variações encontradas nesse gene, associadas às datações do registro fóssil, para especificar quando viveu o ancestral comum das espécies.
O conceito de datar com base nas diferenças genéticas parte de um pressuposto muito simples: mutações aleatórias acontecem no DNA num ritmo mais ou menos homogêneo – com variações maiores ou menores entre grupos distintos, que são também levadas em conta pelos cientistas. Criando uma correlação entre a quantidade de diferenças e o tempo que levaria para essa divergência, é possível estimar quando viveu o ancestral comum. É assim, por exemplo, que conseguimos confirmar nosso parentesco mais próximo com os chimpanzés (que têm 96% do DNA igual ao nosso) que com os camundongos (90%).
Pois bem. Ao analisar o gene PHYP em 199 espécies (dois terços das existentes hoje), além de outros dois genes (rbcL e matK) em um número menor de plantas, eles descobriram que o ancestral comum de cada um dos gêneros que agrupam as espécies atuais viveu 12 milhões de anos atrás. É um bocado de tempo, mas nada tão radical a ponto de sugerir que essas espécies estejam aí mais ou menos imutáveis por 200 milhões de anos.
“Esse resultado mostra que as espécies vivas hoje surgiram nos últimos 10 milhões de anos, o que no tempo geológico é muito recente”, afirma Tiago Quental, biólogo da Universidade de São Paulo (USP) que participou do estudo, publicado no periódico científico americano Science. “Isso indica que essas espécies não podem ser consideradas fósseis vivos e que as espécies hoje vivas certamente não estavam presentes na época dos dinossauros, extintos 65 milhões de anos atrás.”
Novo com cara de velho
Mesmo que indiretamente, esse resultado projeta uma sombra sobre todo o conceito de fóssil vivo. Uma vez que os paleontólogos só podem avaliar a morfologia nos fósseis – e se descobriu que essa não é uma técnica completamente segura para identificar o surgimento de novas espécies (fenômeno chamado especiação) e de modificações genéticas importantes – quem diz que outros fósseis vivos não são apenas novas espécies com cara de velhas?
Mais do que dizer o que as atuais cicas não são, a análise também ajuda a reconstruir sua narrativa evolutiva. As cicas são plantas gimnospérmicas, o que quer dizer que apresentam as sementes nuas, sem flores. No tempo dos dinossauros, os gigantes herbívoros as comiam e dispersavam as sementes em outros lugares. Mas aquelas que co-habitaram com esses répteis, agora se sabe por meio da análise filogenética, não são as espécies hoje viventes.
Na verdade, em vez de serem sobreviventes bem adaptadas desde o passado distante, as cicas quase sumiram de uma vez por todas no meio do caminho até o presente. Seu ressurgimento, documentado agora pela análise filogenética, aconteceu cerca de 10 milhões de anos atrás. “E o curioso é que esse ressurgimento ocorreu de forma sincronizada em todo o nosso planeta, o que sugere que um efeito global poderia ter causado esse padrão”, diz Quental.
Os pesquisadores sabem disso porque analisaram espécies de diversas partes do mundo. A maior variedade de espécies encontra-se na Austrália, mas também existem cicas em regiões quentes e temperadas da África, da Ásia e da América Central. E nessas diferentes regiões a variedade local de espécies parece ter aumentado de modo importante mais ou menos na mesma data.
Por essa razão, os cientistas especulam que foi algo que aconteceu em toda a Terra para dar essa nova chance às cicas – possivelmente uma mudança climática. Na ocasião, o que acontecia era um esfriamento global.
Não é à toa, portanto, que vivemos hoje uma época não muito boa para essas plantas. E o crescente aumento das temperaturas médias da Terra, em parte consequência das atividades antropogênicas, não deve ajudá-las a prosperar. “A atual diversificação das cicas parece estar diminuindo, e sua recente evolução provavelmente não é garantia contra a próxima onda de extinções”, avalia Susanne Renner, bióloga da Universidade de Munique, na Alemanha, que não participou da pesquisa e foi convidada pela revista Science para comentá-la.
Artigo científico
NAGALINGUM, N.S. et al. Recent synchronous radiation of a living fossil. Science. v. 334.