As ondas de calor no verão europeu de 2022, de magnitude semelhante às que se repetem agora naquelas latitudes, foram responsáveis pela morte de cerca de 61.600 pessoas entre o final de maio e o início de setembro do ano passado, a maioria idosos e mulheres. Essa foi a principal conclusão de um artigo publicado em julho de 2023 na revista científica Nature Medicine.
A população dos países mediterrâneos foi a mais atingida. Apenas na Itália e na Espanha houve, respectivamente, 18 mil e 11.300 óbitos, segundo o estudo. “O Mediterrâneo é afetado pelo processo de desertificação. As ondas de calor são amplificadas no verão somente por causa dessas condições mais secas”, disse à agência de notícias Reuters o climatologista espanhol Joan Ballester, do Instituto de Saúde Global de Barcelona, autor principal do estudo.
– Julho foi o mês mais quente da história recente e quebrou recordes de temperaturas
– Efeito das ilhas de calor urbano esquenta até cidades de médio e pequeno porte
Mas na Alemanha, país de clima temperado, o impacto do calor também foi expressivo: 8.100 habitantes sucumbiram a temperaturas que bateram na casa dos 40 graus Celsius (°C).
O número de mortes na Europa, uma das áreas mais ricas do planeta, impressiona por causa de episódios de calor intenso. Não se pode esquecer que a região tem uma população com expressiva proporção de pessoas com mais de 65 anos, mais vulneráveis às variações de temperatura, e historicamente preparada e acostumada a lidar com os rigores do frio – não com o ar sufocante e incêndios florestais de verões tórridos. A quantidade de óbitos globais anuais associados a variações extremas de temperatura, tanto para cima como para baixo da zona de maior conforto térmico para o ser humano (de 22 a 26 °C), é da ordem de milhões e coloca os números de vítimas fatais no verão europeu sob outra perspectiva.
Não há consenso sobre o total de óbitos em todo o mundo associados a alterações bruscas ou expressivas de temperatura. Estudos com diferentes metodologias atribuem um número distinto de óbitos à dança dos termômetros. Artigo publicado em 2021 na revista Lancet Planet Health calculou que 5 milhões de pessoas morram anualmente devido a variações térmicas bruscas ou expressivas. O número equivale a 9,5% de todos os óbitos globais. Pouco mais de três quartos das vítimas fatais moram na Ásia ou na África (ver quadro). Cerca de 10% das mortes se dão em razão do calor excessivo e 90% devido ao frio.
Outro estudo epidemiológico, coordenado por um grupo do Instituto de Métrica da Saúde e Avaliação, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, calculou em quase 1,7 milhão as vítimas fatais em todo o mundo de extremos de temperatura em 2019. O trabalho saiu no periódico Lancet em agosto de 2021. O artigo estimou em aproximadamente 17.300 as mortes anuais por variações térmicas no Brasil, dois terços delas associadas ao frio e um terço ao calor.
Um terceiro levantamento ainda mais recente, publicado em maio do ano passado novamente na Lancet Planet Health, calculou que, entre 2000 e 2019, pouco mais de 1,7 milhão de pessoas perderam a vida por ano em razão de variações significativas de temperatura. O estudo foi coordenado por uma equipe australiana da Universidade Monash. Independentemente de qual trabalho esteja mais perto da realidade, um ponto central e comum é que calor ou frio em demasia mata aos milhões.
Para o médico patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), coautor dos dois estudos publicados na Lancet Planet Health, a área de saúde pública precisa considerar a previsão climática como uma das variáveis que influenciam sua prática. “Há tempos, a agricultura se planeja em função das variações do clima, se vai chover mais ou menos, se vai estar mais quente ou frio”, diz Saldiva. “Precisamos fazer isso também.”
Ele cita um exemplo do que ocorre na capital paulista. Nas jornadas mais quentes, aquelas que entram na casa dos 2% dos dias mais tórridos de um ano, há um aumento de 50% no número de mortes em São Paulo. Em vez de 200 óbitos diários, ocorrem 300. As pessoas podem ter um mal-estar súbito devido às altas temperaturas, acompanhadas às vezes de baixa umidade e quase sempre de altas doses de poluição atmosférica.
As condições térmicas adversas interferem no metabolismo do corpo humano. Alteram as funções cardiovascular, renal e de controle da pressão arterial, além dos níveis de hormônios como o cortisol e o da tiroide. Os vasos periféricos se dilatam, podem ocorrer tonturas, o coração passa a bater mais forte. “Os idosos e as crianças são os mais expostos a essa situação”, diz o patologista.
Os óbitos são a perda mais extrema diante de um grande desconforto térmico. Há impactos mais sutis, que afetam de forma menos acentuada a qualidade de vida e levam a prejuízos materiais. Em um artigo feito em parceria com o grupo da Universidade Monash, publicado em maio deste ano na revista Science of The Total Environment, Saldiva e colegas da FM-USP estimaram que as perdas econômicas decorrentes do exercício do trabalho em condições térmicas inadequadas (muito quente ou frio) foram de US$ 105 bilhões no Brasil entre 2000 e 2019.
O estudo analisou indicadores de 510 regiões do país e os associou a mortes e menor produtividade laboral. Homens entre 15 e 44 anos foram os que tiveram seu rendimento profissional mais afetado pelos movimentos radicais do termômetro. Na região Sul, o frio extremo foi o desconforto térmico de maior impacto. No Nordeste e no Centro-Oeste, foi o calor acentuado.
Artigo publicado na revista Science em maio deste ano estimou que o fenômeno climático El Niño, que aquece as águas superficiais a leste do Pacífico Equatorial e altera o padrão de chuvas e de temperatura no planeta, promove perdas colossais na economia global. O evento de 1983-1984 estaria associado a prejuízos planetários de US$ 4,1 trilhões e o de 1997-1998 teria atingido US$ 5,7 trilhões, algo correspondente a 20% ou 25% da economia norte-americana. Ao longo deste século, em meio a um cenário de mudanças climáticas, os autores do trabalho projetam perdas globais da ordem de US$ 84 trilhões por conta do aparecimento do El Niño, como é o caso deste ano. Esse é mais um motivo sério para incluir as mudanças climáticas na agenda social e da saúde.
Artigos científicos
WEN, B. et al. Productivity-adjusted life years lost due to non-optimum temperatures in Brazil: A nationwide time-series study Science of The Total Environment. v.873. 15 mai. 2023.
CALLAHAN, C.W. e MANKIN. J. S. Persistent effect of El Niño on global economic growth. Science. v. 380, n.6649. 18 mai 2023.
WO, Y. et al. Global, regional, and national burden of mortality associated with short-term temperature variability from 2000–19: a three-stage modelling study. Lancet Planet Health. v.6, n.5. mai.2022.
BURKART, K. G. et al. Estimating the cause-specific relative risks of non-optimal temperature on daily mortality: a two-part modelling approach applied to the Global Burden of Disease Study. Lancet. v.398, n.10301. 21 ago. 2021.
ZHAO. Q. et al. Global, regional, and national burden of mortality associated with non-optimal ambient temperatures from 2000 to 2019: a three-stage modelling study. Lancet Planet Health. v.5, n.7. jul.2021.