Meio milênio após a chegada dos portugueses, uma nova ofensiva sobre o pau-brasil está em curso. Desta vez, os candidatos a conquistadores dessa bela e levemente perfumada árvore nativa da Mata Atlântica são cerca de 20 pesquisadores do Instituto de Botânica de São Paulo, que, auxiliados por colegas de outras instituições paulistas e até do exterior, atacam em várias frentes, há quase dois anos e sem trégua, esse recurso natural intimamente ligado à história do país. Só que, em vez de extrair a brasileína, o corante que emprestava o tom avermelhado às roupas da realeza, ou cortar sua preciosa madeira, como faziam os velhos algozes da árvore, o multifacetado time de, por assim dizer, exploradores contemporâneos (no bom sentido, é claro) da hoje escassa e ainda ameaçada de extinção Caesalpinia echinata persegue fins mais nobres.
Por meio de experimentos em fisiologia, bioquímica, anatomia, ecologia, tecnologia e até de pesquisas históricas, o grupo vai, aos poucos, iluminando algumas zonas de sombra que por vezes tornavam – e ainda tornam – obscuro ou pouco preciso o conhecimento científico a respeito do pau-brasil. Dessa forma, surgem mais elementos para balizar o trabalho de conservação das poucas reservas remanescentes da espécie e, quem sabe, auxiliar na promoção de seu reflorestamento ou mesmo de sua exploração sustentável se isso um dia se mostrar viável. “Reunimos competências para estudar a fundo a importância histórica, científica e econômica dessa árvore”, afirma Rita de Cássia Figueiredo Ribeiro, do Instituto de Botânica, coordenadora do projeto, que realiza entre 12 e 14 de março em São Paulo um simpósio internacional sobre o pau-brasil. “Muita gente acha que o pau-brasil já foi fartamente pesquisado, mas essa impressão é falsa.”
Em pouco tempo, menos de dois anos, o projeto ampliou o saber científico sobre o pau-brasil de forma considerável. Por ora, a descoberta mais significativa mostra que as sementes da árvore, conhecidas por serem relativamente frágeis e de difícil preservação no ambiente natural, podem ser conservadas, desde que submetidas a certas condições, por 18 meses, período seis vezes maior do que sustentava a rala literatura científica sobre o tema.
Até a publicação dos resultados desse trabalho, que ganhou as páginas da Revista Brasileira de Botânica em dezembro, acreditava-se que as sementes de pau-brasil tinham vida curta: duravam apenas um mês se mantidas em ambiente natural e no máximo 90 dias se guardadas numa câmara fria. Isso equivalia a dizer que, se não fossem plantadas logo, as sementes não germinariam e apodreceriam. O domínio de técnicas mais eficazes de armazenamento de sementes de pau-brasil torna mais fácil a tarefa de quem se dedica a projetos de conservação e reflorestamento dessa árvore.
Alguns especialistas chegavam a desconfiar de que as sementes de pau-brasil não toleravam a secagem, o principal método empregado para conservação desse tipo de estrutura reprodutiva. Para as sementes de boa parte das espécies vegetais, reduzir o teor de água de sua massa total a níveis inferiores a 10% é um modo eficaz de lhe garantir longevidade. A dessecação quase paralisa a sua atividade metabólica e reduz a ocorrência de reações prejudiciais, além de diminuir a atuação de microrganismos e insetos danosos. Com o pau-brasil, tal procedimento parecia não provocar efeito protetor semelhante. Parecia. Até que os pesquisadores paulistas mostraram que, com alguns cuidados extras, a secagem também estende a vida útil das sementes de pau-brasil.
Eles selecionaram apenas as melhores sementes, mais maduras, e submeteram-nas a um calor de 40 a 50° Celsius (C), que as deixava com umidade pouco superior a 8%. Por fim, estocaram-nas num ambiente com temperatura controlada em torno dos 8° C. “Com esses procedimentos, conseguimos aumentar de forma expressiva a sua longevidade”, diz Cláudio José Barbedo, também do Instituto de Botânica. “Mas o método só dá resultado com sementes de boa qualidade.” Os pesquisadores viram que, seguidos os procedimentos descritos, mais de 80% das sementes germinavam se mantidas em ambiente refrigerado por um ano e meio. “Estamos tentando agora entender quais são as alterações metabólicas que fazem essas sementes secas perderam a sua viabilidade num dado momento”, afirma Rita. “Há indícios de que isso esteja relacionado a alterações em seus níveis de carboidratos (açúcares) solúveis.”
Da semente do pau-brasil germinaram outros achados. Os cientistas constataram que o revestimento das sementes de pau-brasil é menos espesso e composto por um tipo de célula diferente da usualmente presente nas sementes leguminosas, família à qual pertence a C. echinata. “No lugar das estruturas celulares que conferem rigidez à cobertura das sementes de leguminosas, encontramos estômatos nas sementes do pau-brasil”, afirma a especialista em anatomia vegetal Simone Teixeira de Pádua, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Normalmente alojados nas folhas das plantas, onde regulam as trocas gasosas com o ambiente e funcionam como poros, os estômatos raramente ocorrem em sementes.
Fragilidade
Essa peculiaridade anatômica pode ser uma das razões de o pau-brasil apresentar sementes mais frágeis e de conservação mais complicada do que outras leguminosas. Um pouco de anatomia comparativa ajuda a entender essa situação. Simone confrontou sementes de pau-brasil e de pau-ferro (Caesalpinia ferrea), uma leguminosa típica. Mais especificamente, analisou a testa das duas sementes, o tegumento que envolve e protege o embrião, chamado popularmente de casca. Conclusão: a testa da semente de pau-ferro apresenta duas camadas de células ricas em lignina, a mesma substância que confere rigidez à madeira, enquanto a do pau-brasil é, literalmente, mais porosa, com estômatos.
Não é de se estranhar, portanto, que os dois tipos de estrutura germinativa se comportem de maneira tão distinta quando colocados no ambiente natural. “As sementes de pau-ferro são tão duras e resistentes que podem se conservar na terra, sem germinar, por até dois anos, o que não acontece com as do pau-brasil”, comenta Simone. Outras linhas de pesquisa também chegaram a resultados preliminares importantes. O engenheiro agrônomo Marcelo Dornelas, que faz pós-doutoramento na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, estuda a estratégia reprodutiva da espécie e viu que o desenvolvimento das flores na C. echinata se dá de forma semelhante ao que ocorre em outras leguminosas. “Esse dado pode ser útil no manejo das reservas naturais da espécie e de áreas plantadas”, acredita Dornelas.
Há também trabalhos que buscam compreender as reações da espécie tropical em condições ambientais bastante diversas das dominantes na Mata Atlântica. Nessa linha de investigação, experimentos feitos na cidade de São Paulo e num centro de estudos da Espanha indicam que o pau-brasil parece crescer menos em ambientes com altas taxas de um tipo específico de poluente, o gás ozônio, e se desenvolve melhor em locais com ar puro. “Aparentemente, a espécie é mais afetada pela presença de ozônio do que pelos poluentes primários, como o monóxido de carbono ou dióxido de enxofre”, comenta Marisa Domingos, da seção de ecologia do Instituto de Botânica. A primeira pista nesse sentido foi fornecida pelos resultados, ainda preliminares, de um estudo comparativo que há dez meses está em curso na capital paulista.
Resistência a poluentes
Cerca de 600 plantas de pau-brasil foram expostas em quatro pontos distintos da cidade: Parque do Ibirapuera, Aeroporto de Congonhas, um grande jardim mantido pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente às margens do rio Pinheiros (Projeto Pomar) e um viveiro especial (Casa de Vegetação) do próprio Instituto de Botânica. Cada um desses locais foi escolhido em função dos poluentes a que estão mais freqüentemente expostos.
Em Congonhas, há grande quantidade dos chamados poluentes aéreos primários, gases como o monóxido de carbono e dióxido de enxofre, que são subprodutos diretos da queima de combustíveis. No Ibirapuera, predomina o ozônio, um poluente secundário, que não é emitido diretamente por nenhuma fonte poluidora: forma-se naturalmente na atmosfera por meio de reações químicas entre moléculas de hidrocarbonetos e de óxidos de nitrogênio, mediadas pela luz solar. No Projeto Pomar, existe um pouco de tudo: poluentes primários e secundários, mais o efeito nefasto da vizinhança de um rio em agonia. Com temperatura máxima controlada, a 28° C, ar puro e filtrado, a Casa da Vegetação funciona como ponto de controle, como a representação de um local urbano livre de poluição.
Embora ainda não tenham chegado à metade do estudo, os pesquisadores já notaram uma tendência: as plantas cultivadas no viveiro com ar puro, onde recebem normalmente a luz solar, crescem mais que as outras, e as expostas ao ambiente com muito ozônio aparentam se desenvolver de forma menos expressiva em relação às de outras localidades. Para ver se o excesso de ozônio pode ser a causa desse retardo no crescimento das mudas do Ibirapuera, um ensaio mais detalhado foi feito na Fundación Centro de Estudios Ambientales del Mediterráneo (Ceam), de Valência.
Em câmaras especiais, mudas de pau-brasil permaneceram durante um mês em três ambientes com características distintas: um com ar puro, outro com certa dose de ozônio e um terceiro com uma quantidade ainda maior desse gás. “De forma geral, vimos que, quanto maior era o nível de ozônio na atmosfera, menores eram as taxas de fotossíntese das plantas e a produção de substâncias antiestresse (antioxidantes)”, diz Marisa.
Cidades e cupins
Por que estudar o comportamento de uma árvore típica da Mata Atlântica fora de seu hábitat natural e, ainda por cima, em locais poluídos? Resposta: para ver se faz sentido estabelecer uma política pública que impulsione o plantio de pau-brasil nas grandes cidades brasileiras, um projeto que, além de seu inegável valor simbólico-histórico, poderia ajudar a embelezar os centros urbanos. Capaz de emprestar ao ar um sutil aroma que lembra o do jasmim, o pau-brasil é, patriotismos à parte, uma bonita árvore ornamental, sobretudo no período em que suas flores amareladas se abrem, entre agosto e novembro, embora alcance dimensões um pouco avantajadas para se incorporar maciçamente ao cenário urbano, podendo chegar a 20 metros de altura.
Com uma abordagem igualmente prática, só que voltada para as características físicas e acústicas da madeira de pau-brasil, ensaios laboratoriais conduzidos no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) começam a fornecer os primeiros indícios de que o lenho avermelhado da árvore que outrora dava cor ao mundo pode apresentar boa resistência natural à ação de cupins. A espécie parece ter propriedades semelhantes às do angico-preto (Anadenanthera macrocarpa), árvore que suporta bem o ataque desses insetos (e também de fungos).
“Por ora, vimos que o desgaste sofrido pelo pau-brasil, quando em contato com os cupins, limita-se à superfície”, relata a bióloga Maria Beatriz Bacellar Monteiro. Ainda no IPT, está sendo feito um estudo sobre as propriedades mecânicas e acústicas do pau-brasil, uma tentativa de entender por que essa madeira é a preferida dos construtores de arcos para instrumentos de corda (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), talvez o único uso comercial ainda hoje protagonizado por essa árvore tropical.
Numa vertente incomum em projetos de botânica, o esforço dos pesquisadores do Instituto de Botânica contempla uma investida sobre a história do pau-brasil e uma revisão de sua distribuição geográfica no território nacional, no passado e no presente – hoje, essa espécie é encontrada naturalmente nos estados de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. No ano passado, trabalhando como um misto de historiador e taxonomista, o engenheiro agrônomo Yuri Taveres Rocha, do Instituto de Botânica, fez duas grandes viagens. Entre abril e maio, esteve em Portugal, de onde trouxe cópias de cerca de 800 documentos datados dos séculos 16 ao 19.
Sua principal fonte de pesquisa foi o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa. Ali, Rocha examinou 500 manuscritos, com o objetivo de fornecer subsídios para se contar a exploração e comércio do pau-brasil nos séculos 17 e 18 a partir da análise dos carregamentos de navios que partiam do litoral brasileiro, sobretudo de Pernambuco, rumo a Portugal. “Até hoje, não se sabe ao certo quanto pau-brasil saiu daqui e onde eram exatamente as ocorrências naturais da árvore”, diz ele.
No segundo périplo, Rocha percorreu 12 cidades paulistas a bordo de um carro cedido pela Fiat, para realizar um levantamento dos principais pontos do Estado onde foram plantadas mudas de pau-brasil. “Essa informação é fundamental para sabermos como anda a conservaçãoex situ (fora de seu hábitat natural) do pau-brasil em São Paulo”, comenta o pesquisador. Algumas constatações: em Iperó, no Bosque de Pau-brasil para ConservaçãoEx Situ , há mais de mil exemplares da árvore, plantados em 1999; em Paulínia, no Bosque Brasil 500, existem outros 500 espécimes; na Fazenda Lageado no câmpus da Unesp, em Botucatu, Rocha deparou com um pau-brasil de 15 metros de altura, com prováveis 80 anos de idade.
O tour paulista também serviu para tentar responder a uma questão que intriga os cientistas e historiadores: a espécie ocorria de forma espontânea em São Paulo? Há relatos de que houve reservas nativas de pau-brasil em Ilhabela e Ubatuba, mas até hoje não há comprovação científica. Rocha percorreu trilhas do Parque Estadual de Ilhabela, sempre com o mesmo resultado: todas as formações arbóreas que lhe apontaram como pau-brasil eram, na verdade, exemplares de outras espécies, cujos nomes populares oscilam entre o engraçado e o quase obsceno: jacarandá-bico-de-pato (Machaerium sp.), casca-de-barata ou pindaíba (Xylopia brasiliensis), araçá-piranga ou goiabão (Eugenia leitonii) e mamica-de-porca (Zanthoxylum rhoifolium).
A confusão se devia ao fato de essas árvores terem cascas avermelhadas ou protuberâncias em forma de espinhos (acúleos) no caule ou ramos, características que remetem ao pau-brasil. Apesar de ter sido de fundamental importância para a história e economia do Brasil colonial e até mesmo imperial, sob muitos aspectos, para usar um chavão, o pau-brasil ainda é um ilustre desconhecido. Nas mãos do homem, a trajetória desse recurso natural seguiu quase sempre uma máxima não-escrita: árvore boa era árvore cortada.
Durante cerca de 370 anos, entre o início do século 16 e o fim do 19, enquanto a Mata Atlântica ainda teve estoques expressivos dessa árvore tropical e as tinturas artificiais não ganhavam terreno, a C. echinata emprestou seus tons de fogo a roupas, papéis e quadros, além de ser usada na construção civil e naval. Depois disso, foi esquecida ou relegada a um papel superficial nos livros de história. Felizmente, esse cenário começa a mudar com o avanço dos esforços de conservação da espécie, que tomaram impulso, três anos atrás, durante as comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, e o lançamento de grandes projetos científicos sobre a mais nacional das árvores.
O insuperável pernambuco
Há cerca de 230 anos, o francês François Tourte construiu o primeiro arco de violino com o pernambuco, madeira que juntava uma rara combinação de atributos físicos: rigidez, flexibilidade, densidade, beleza e a capacidade de adquirir e manter, por anos e anos, uma curvatura. Desde então, ninguém descobriu um material, sintético ou natural, melhor que o pernambuco, como o pau-brasil é conhecido no exterior, para fabricar arcos de violino, viola, violoncelo e contrabaixo. “É possível fazer arcos de altíssimo padrão com outras madeiras, como o ipê, mas os músicos são tradicionalistas e têm preconceito com novos materiais”, diz Daniel Romeu Lombardi, 54 anos, arquiteto de formação que, na década de 80, virou arqueteiro, como se denominam os artesãos que esculpem esse complemento fundamental dos instrumentos de corda de uma orquestra.
Por mês, de seu ateliê na cidade de São Paulo – na verdade, um cômodo nos fundos de sua casa, no bairro de Perdizes – saem quatro arcos. Os mais caros, que podem custar até R$ 3 mil, são sempre de pau-brasil. Isso não quer dizer que qualquer pedaço de Caesalpinia echinata exiba potencial para ganhar as formas de um arco de primeira linha. “Pode haver muita diferença de qualidade entre dois pedaços de pau-brasil”, assegura Lombardi, que, informalmente, troca informações práticas com Edenise Segala Alves, pesquisadora do Instituto de Botânica de São Paulo que coordena os estudos anatômicos com a madeira que lhe serve de matéria-prima para seu trabalho. “Por isso, às vezes, tenho de descartar alguns pedaços.” Com o auxílio de um aparelho italiano, que emite um campo elétrico nas ripas de pau-brasil em estado semibruto destinadas a se transformar em arcos, o arqueteiro mede o que acredita ser o potencial acústico da peça examinada. Quando o resultado do exame é pouco promissor, Lombardi simplesmente descarta a ripa de padrão duvidoso. No Japão, pesquisadores já tentaram transferir alguns compostos químicos do pau-brasil para outras madeiras, na esperança de passar adiante as características acústicas da árvore brasileira. Mas os resultados ainda não são animadores. A natureza está vencendo essa batalha – por enquanto.
O PROJETO
Caesalpinia echinata Lam. (pau-brasil): da Semente à Madeira, um Modelo para Estudos de Plantas Arbóreas Tropicais Brasileiras
Modalidade
Projeto temático
Coordenadora
Rita de Cássia Leone Figueiredo Ribeiro – Instituto de Botânica
Investimento
R$ 400.648,82 e US$ 68.754,88