Podcast: Erika Hingst-Zaher
“Os observadores de aves podem ajudar muito a pesquisa científica, porque fazem registros de espécies ou de comportamentos em lugares onde os pesquisadores ligados à universidade nunca estiveram ou dificilmente estarão”, diz o biólogo Henrique Rajão, responsável pelos levantamentos sobre a Drymophila. Ele e a bióloga Érica Santos estão agora escrevendo um artigo científico contando sobre a ampliação do espaço ocupado pelas aves desse gênero, que não passam de 14 centímetros de comprimento e podem ter penas ruivas ou vermelhas, de acordo com a espécie.
Rajão interage com observadores de aves desvinculados de instituições acadêmicas desde fevereiro de 2002. Foi quando o presidente da Associação de Amigos do Jardim Botânico do Rio do Janeiro perguntou se ele poderia guiar um grupo de visitantes em um passeio de observação, porque um dos sócios havia doado 12 binóculos e ninguém sabia usá-los corretamente. Sentindo-se aviltado, Rajão alegou que não era guia, mas cientista, nessa época fazendo o doutorado em genética de aves. Mas, mesmo a contragosto, aceitou o convite e observou o encantamento do grupo de cerca de 20 moradores do Rio que pela primeira vez viam um tucano, um beija-flor-de-fronte-violeta ou um pica-pau enquanto caminhavam pela mata de 137 hectares do Jardim Botânico, anexa à Floresta da Tijuca. Rajão gostou da experiência a ponto de conduzir os passeios seguintes, realizados no último sábado de cada mês, de modo contínuo, há 14 anos. Inspirados nessa experiência, biólogos do Instituto Butantan criaram o Observatório de Aves e desde 2014 organizam passeios mensais com dezenas de pessoas que igualmente se deslumbram com pica-paus, carcarás, sabiás-brancos, pula-pulas e outras aves da mata de 60 hectares do instituto paulista. Atualmente, além das atividades de educação e divulgação científica, o Observatório faz um monitoramento de longo prazo de populações de espécies silvestres e pesquisas sobre ecologia, história natural e vigilância epidemiológica, por meio da coleta e análise de microrganismos encontrados em aves.
Reconhecimento
Na manhã de 22 de maio, último dia do Avistar, um congresso de observadores de aves realizado no Butantan, Rajão expôs sua admiração pelo trabalho de especialistas não acadêmicos ao apresentar os artigos científicos escritos pelo médico Roberto Stenzel e pelo dentista Pythagoras Souza sobre, por exemplo, os hábitos reprodutivos do cuspidor-de-máscara-preta (Conopophaga melonops), que os ornitólogos ainda não haviam descrito. Embora não seja a regra, pesquisadores não acadêmicos conquistam respeito dos acadêmicos também em outras áreas, como o desembargador Elton Leme, que se tornou um especialista em bromélias e assina artigos científicos ao lado de botânicos profissionais (ver reportagem).
“Precisamos de mais colaboradores”, disse várias vezes o biólogo Pedro Develey, diretor-executivo da organização não governamental Save/BirdLife, durante o Avistar. “Somente os ornitólogos não vão dar conta de mapear a biodiversidade do Brasil.” Dez dias antes, no computador de seu escritório, Develey havia observado mais uma vez com inquietação um mapa animado mostrando o deslocamento de 118 espécies de aves migratórias do norte ao sul das Américas. O mapa foi produzido na Universidade Cornell, Estados Unidos, a partir de milhões de registros obtidos de 2002 a 2011 e publicado em janeiro de 2016 no site do laboratório de ornitologia da instituição. Nesse mapa, o território brasileiro aparece praticamente vazio, sem registro de batuíras, piru-pirus, maçaricos, pernilongos, maçaricos-de-bico-torto, narcejas, pisa-n’água e outras espécies de aves migratórias que passam pelo Brasil.
A prioridade agora são os maçaricos, grupo de aves com 15 centímetros de comprimento e peso de 100 a 200 gramas, com cinco espécies ameaçadas de extinção. Todos os anos, milhares de representantes desse grupo se reproduzem no Ártico ou no Canadá. Quando chega o inverno, partem para uma viagem de 6 mil quilômetros rumo ao Sul. Param, descansam e se alimentam, principalmente no litoral do Maranhão, Rio Grande do Norte, Paraíba, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul. Depois seguem até a Argentina, de onde partem no início do inverno rumo ao Norte. Segundo Juliana de Almeida, gerente de projetos da Save/BirdLife, por causa da perda de lugares de descanso e alimentação, no Brasil e em outros países, uma das espécies desse grupo, o maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus), está ameaçada de extinção.
“Todos podem participar do processo de entender o que está acontecendo com as aves no mundo”, reforçou John Fitzpatrick, diretor do laboratório de ornitologia de Cornell. Nos Estados Unidos, cerca de 50 milhões de pessoas se dedicam à observação de aves. “Somos um exército”, disse Fitzpatrick. Desde 1997, o grupo de Cornell publicou mais de 60 artigos científicos fundamentados em registros feitos por observadores de aves não acadêmicos, uma forma de colaboração que ganha força nos Estados Unidos. Em janeiro de 2016, o governo federal reconheceu o valor dos colaboradores não acadêmicos e distribuiu um conjunto de orientações para os órgãos públicos aproveitarem mais a participação dos cidadãos como parte de suas estratégias de inovação. Um comunicado de abril da União Geofísica Americana incentiva a participação da população: “Viu um deslizamento, sentiu um tremor de terra ou observou os primeiros brotos da primavera? Pegue seu celular e envie um registro”.
Em uma experiência similar, em 2015, por meio de cartazes de “procura-se”, pesquisadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul lançaram uma campanha para encontrar uma espécie invasora de abelha, a mamangava-de-cauda-branca (Bombus terrestris), que já se espalhara pela Argentina e avançava rumo ao Uruguai. Sua chegada, provavelmente pelo sul do Brasil, poderia prejudicar a agricultura e as espécies nativas de abelhas. Em um ano e meio, desde que lançou a campanha, o biólogo André Luis Acosta, pesquisador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Biodiversidade e Computação da Universidade de São Paulo (USP), recebeu cerca de 100 fotos sobre potenciais avistamentos da abelha procurada, mas nenhuma era a espécie procurada. “Como a campanha continua”, diz ele, “a qualquer momento poderemos identificar o momento de sua chegada ao país e tomar as medidas necessárias para reduzir seu impacto na agricultura”. Esse recurso já foi utilizado outras vezes. No início do século XX, o médico Vital Brazil, primeiro diretor do Butantan, incentivava os moradores das fazendas do interior paulista a enviar para o instituto serpentes que encontravam, devidamente acondicionadas em caixas que ele enviava por meio dos trens da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, e em troca remetia soros antiofídicos, também pela ferrovia e sem custos.
WikiAves e eBird
Os 40 mil observadores de aves não acadêmicos e cerca de 500 ornitólogos ligados a instituições formais de pesquisa acadêmica podem registrar em duas bases de dados as informações sobre as espécies que veem pelo Brasil. A primeira é a WikiAves, criada em 2008 e mantida pelo analista de sistemas e observador de aves Reinaldo Guedes. De alcance nacional, a WikiAves contém registros de 1.860 das 1.916 espécies brasileiras conhecidas. A segunda base é o eBird, criado na Universidade Cornell e de abrangência mundial. A versão em português, criada e mantida em parceria com o Observatório de Aves do Instituto Butantan, a PUC-Rio e Save Brasil, está em funcionamento desde o ano passado e reúne cerca de 1.200 usuários no Brasil, bem menos que os 24 mil da outra base.
As duas bases são abertas a qualquer interessado, geram informações que dimensionam a riqueza biológica de cada lugar, são acompanhadas por monitores voluntários e podem ser acessadas e manipuladas por meio do celular. Enquanto a WikiAves valoriza as fotos e seus autores, o eBird enfatiza o número de exemplares de cada espécie observada, o que permite calcular a variação do tamanho das populações e fazer estudos de migrações pelas Américas.
Os ornitólogos reconhecem a qualidade da informação e a importância das bases de dados construídas por não acadêmicos, mas se inquietam diante de uma característica da WikiAves que limita os estudos acadêmicos: essa base indica apenas os municípios, que são imensos na região Norte, e não o lugar exato de cada registro. Além disso, os observadores de aves nem sempre registram informações com o rigor e a precisão desejados pelos ornitólogos de instituições formais de pesquisa. Para assegurar a qualidade das informações, biólogos dos Estados Unidos e do Canadá, no editorial da edição de junho da Conservation Biology, propõem que a interação e o treinamento dos colaboradores não acadêmicos na coleta de informações sejam intensificados.
“Os eventuais erros tendem a desaparecer diante do volume de informações”, ressalvou Mario Cohn-Haft, ornitólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus. “Há também erros coletivos, como os de identificação de espécies, que se propagam, mas podem ser rastreados e corrigidos.” Em consideração aos observadores de aves, Cohn-Haft apresentou no Avistar, na forma de filmes curtos e gravações de sons de aves, os primeiros resultados de uma expedição científica coordenada por ele à serra da Mocidade, em Roraima. Realizada em janeiro e fevereiro de 2016, com quase 70 participantes, a viagem resultou na identificação de 40 possíveis novas espécies de animais e plantas e deve ser apresentada em um documentário a ser lançado no segundo semestre deste ano.
Foi também no Avistar que o biólogo Rafael Bessa anunciou a redescoberta da rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis). Descoberta em 1823, essa espécie, com olhos azuis e cabeça com penugem marrom, peito acobreado e asas marrom e esverdeadas com manchas azuis, foi vista pela última vez em 1941 no Cerrado do sul de Goiás, e ele a reencontrou em julho de 2015 no interior de Minas Gerais. Bessa postou uma foto da rolinha-do-planalto na WikiAves, mas sem revelar o lugar exato para impedir uma corrida de observadores ou caçadores de aves, até que seja implantado o plano de preservação de uma área particular de Cerrado com 400 hectares em que 12 exemplares dessa espécie já foram vistos desde 2015.
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Artigo científico
LUKYANENKO, R. et al. Emerging problems of data quality in citizen science. Conservation Biology, v. 30, n. 3, p. 447–9, 2016.