É possível usar a mesma teoria para o estudo de sistemas físicos, relativos a objetos inanimados, e de sistemas biológicos, que contemplam formas de vida tão distintas como os embriões humanos e as plantas? Esse é o tipo de questão que interessa ao norte-americano William Bialek, professor de física e membro do Instituto Lewis-Sigler, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Bialek esteve em São Paulo no final de janeiro para dar um minicurso sobre o emprego da física em sistemas biológicos durante a School on Physics Applications in Biology, evento promovido pelo Centro Internacional de Física Teórica/Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP/SAIFR) e o Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Nesta entrevista, o pesquisador, que publicou em 2012 o livro Biophysics: Searching for principles (sem edição em português), fala das dificuldades de empregar experimentos quantitativos e leis físicas para explicar o funcionamento de sistemas biológicos complexos.
Você estuda quais questões da biofísica?
A grande questão sempre foi, para mim, trabalhar com a tensão que existe entre tentar estabelecer os princípios gerais dos sistemas biológicos e prestar atenção nos detalhes dos casos particulares que ocorrem dentro da biologia. Uma das lições da física é que fenômenos qualitativamente surpreendentes são abundantes no mundo vivo e têm profundas explicações teóricas. Mas os sistemas biológicos em que ocorrem esses fenômenos são complexos e essas complicações vão contra a busca dos físicos pela simplicidade. Temos modelos detalhados e quantitativos de muitos sistemas biológicos, mas a física é mais do que uma coleção dessas histórias isoladas: temos princípios gerais a partir dos quais podemos derivar o comportamento de determinados sistemas. Podemos fazer isso no contexto mais complexo dos sistemas vivos?
Como e por que a física que descreve a matéria inanimada pode ser usada para caracterizar sistemas vivos?
As leis da física funcionam tanto para o átomo como para a Lua. Acho que isso é parte da resposta. Na física, não há força motriz que faça com que o hélio superfluido se arraste pelas paredes e escape de um contêiner. Esse fenômeno emerge das interações entre átomos de hélio, que, em outros contextos, fazem coisas muito menos surpreendentes. Da mesma forma, há algo que distingue os sistemas inanimados dos sistemas vivos. Mas hoje não acreditamos mais em alguma “força vital” que anime coisas inertes. Os físicos que estudam os fenômenos da vida não estão procurando uma nova força da natureza. Eles querem entender como esses fenômenos surpreendentes emergem de forças conhecidas.
A seu ver, quais são as limitações dos experimentos feitos em sistemas biológicos?
Havia uma forte impressão de que os experimentos em sistemas biológicos seriam sempre caóticos e irreprodutíveis e não poderiam ser quantificáveis. Usar uma abordagem quantitativa seria, então, na melhor das hipóteses, estimar probabilidades e coletar evidências contra ou a favor de hipóteses particulares. Mas, cada vez mais, os fenômenos que vemos no mundo vivo estão se tornando suscetíveis aos experimentos quantitativos que fazem parte da tradição da física. Esses experimentos levaram à descoberta de que muitos fenômenos biológicos são bastante surpreendentes, não apenas em termos qualitativos mas também quantitativos. Eles têm revelado que os sistemas biológicos podem apresentar comportamentos muito precisos. Esses desenvolvimentos estão ocorrendo em todas as escalas, desde uma única molécula até grandes populações de organismos. Tudo isso significa que devemos exigir mais de nossas teorias, devemos procurar pelas comparações detalhadas e quantitativas entre teoria e experiência, que são características da física em geral. Esse cenário é muito diferente de quando eu era jovem e é muito entusiasmante.
Quais são os desafios para quem estuda a interface entre a física e os sistemas biológicos?
As disciplinas acadêmicas se definem por seus objetos de estudo ou por seu estilo de fazer perguntas. Um biólogo está interessado naquilo que está vivo; os físicos se orgulham de “pensar como um físico”. Em física, tentamos ensinar princípios e derivar previsões para casos particulares. Em biologia, o ensino se baseia no estudo de casos. A biofísica ainda não é um campo maduro e é mais difícil superar a história de duas disciplinas ao mesmo tempo. É muito mais complicado estudar conjuntamente física e biologia do que apenas uma das duas. Como estimular os estudantes a ter ideias próprias e fazer suas perguntas quando eles têm que lidar com idiossincrasias de duas disciplinas institucionalizadas?
Como estudar efeitos quânticos em sistemas vivos?
Às vezes, cometemos erros ao tentar usar a mecânica quântica na descrição de sistemas biológicos. Muitos anos atrás pensei ter encontrado evidências de que as células de nossos ouvidos poderiam realizar medições limitadas pela física quântica, mas, no fim, estava errado. Aprendi o quão difícil é esse problema. Ainda tenho esperança de que efeitos quânticos sejam mais importantes em sistemas biológicos, mas sou cauteloso. A observação desses efeitos quânticos em um sistema biológico sempre provoca excitação. Mas, para ver efeitos como o tunelamento [em que uma partícula pode atravessar barreiras intransponíveis para a física clássica], é preciso atingir temperaturas muito baixas. Isso não é algo que se observe nos sistemas biológicos do cotidiano. Mas fenômenos quânticos, como a coerência [quando um sistema está simultaneamente em uma sobreposição de estados], podem ocorrer nos momentos iniciais da fotossíntese e quando moléculas biológicas interagem com a luz, como nos primeiros passos da visão. Mas não há evidências de que a coerência quântica possa ocorrer em escala macroscópica.
Existe algum tipo de fenômeno quântico que seja observado tanto em sistemas biológicos macroscópicos como nos microscópicos?
Os efeitos realmente profundos e belos da coerência quântica são difíceis de ver em uma escala macro porque as variáveis que estamos observando interagem com tantas outras variáveis que não podemos acompanhá-las de uma só vez. Há remanescentes de comportamento quântico na aleatoriedade de certos fenômenos, como o decaimento radioativo. Quando a matéria absorve a luz, as etapas elementares são aleatórias. Isso é assim por causa da mecânica quântica.
Você tem estudado algum tema mais específico da biofísica?
Existem limites físicos para a sensação e a percepção. Olhos, ouvidos e outros sentidos enviam sinais para o cérebro. Gostaria de descobrir quais são os sinais menos intensos que podem ser percebidos pelo cérebro, tendo como base os limites físicos dos dispositivos de medição sensorial. Em que medida nossos sistemas sensoriais, que, afinal, são dispositivos de medição, atingem os limites impostos pelas leis da física? A ideia de que os limites da percepção são definidos por princípios físicos fundamentais é muito atraente. Usamos essas mesmas ideias para estudar como as células “sentem” os sinais internos.
Quais seriam as implicações cognitivas de fenômenos como a internet?
Parece que sempre pensamos que nosso tempo é especial. Mas as pessoas sempre se preocuparam com o fato de que os desenvolvimentos tecnológicos mudam as coisas de um jeito que envolve perdas e ganhos. A invenção da prensa de tipos móveis certamente causou alguma perda da tradição oral: o contador de histórias local tornou-se obsoleto. Agora podemos ter acesso à história sem sequer imprimir um livro porque podemos “dar um google”. Não precisamos mais lembrar e transmitir as histórias, embora essa ainda seja uma atividade muito humana. Não precisamos ter informação em nossa memória. Em vez disso, transferimos parte de nosso processo de pensamento e de memórias para nossos computadores e celulares. Isso não é algo exatamente ruim, na verdade. Hoje em dia, mais pessoas têm acesso a essas coisas, a informações que eram uma vez muito exclusivas. Ainda não podemos entender as implicações cognitivas, uma vez que os efeitos só poderão ser observados em meus netos.