Desde maio um novo equipamento investiga a turbulenta atividade do Sol. O instrumento, um radiotelescópio com antena de 1,5 metro de diâmetro, foi concebido no Brasil e desenvolvido com parceria internacional. O Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST) opera no comprimento de onda do infravermelho distante, uma faixa do espectro situada entre a luz visível e as ondas de rádio. A atividade solar é praticamente desconhecida nessa janela, segundo o radioastrônomo Pierre Kaufmann, diretor do Centro de Radioastronomia e Aplicações Espaciais (Craae).
O centro é um consórcio para investigação em ciências espaciais que envolve o Instituto Presbiteriano Mackenzie e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além da USP e da Unicamp. O SST consumiu sete anos de trabalho, desde que foi concebido pelo próprio Kaufmann, até ser implantado junto ao observatório argentino de El Leoncito, num ponto a 2.550 metros de altitude, nos Andes argentinos. No início de maio ele fez o que os astrônomos chamam de “coleta da primeira luz”. É uma espécie de batismo para um equipamento já instalado, mas ainda em fase experimental, preparando-se para a entrada em atividade rotineira.
No caso do SST, que reuniu esforços de parceiros como o Instituto de Física Aplicada da Universidade de Berna, na Suíça, e dois institutos argentinos (o Complejo Astronómico El Leoncito e o Instituto de Astronomia y Física del Espacio) há boas razões para comemorações, festeja Kaufmann. As principais foram que a operação experimental demonstrou que o equipamento tem o desempenho que se esperava e as excelentes condições de transparência da atmosfera.
Além de investigar o Sol e ter aplicações em outras áreas, como a climatologia e propagação atmosférica, o instrumento materializou uma experiência em colaboração internacional por parte da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), diz Kaufmann. A FAPESP cobriu aproximadamente 70% do custo total de US$ 1 milhão do equipamento.
Instrumento único para investigar o Sol nessa freqüência e pesquisar, entre outros fenômenos, os mecanismos que produzem as explosões que acontecem em plasmas ativos na atmosfera junto às manchas dessa estrela, o SST teve seus subsistemas construídos em diferentes países. A antena cassegrain representou um dos maiores desafios, com precisão próxima ao espelho de um telescópio óptico. A dificuldade, neste caso, envolve tanto o processo de usinagem quanto o material para sua construção.
O desafio de construir a antena foi aceito pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, mas não sem um atraso que somou doze meses. Esse descompasso criou problemas adicionais e, no conjunto, a instalação final do SST acumulou um atraso de dois anos. Para obter o resultado desejado para a antena, os engenheiros dobraram uma peça de alumínio de alta qualidade e, a partir dela, fizeram a usinagem. A construção convencional fazendo uso de um bloco fundido tem porosidade e também estresse que comprometeriam a precisão de superfície desse subsistema, justifica Kaufmann.
A integração e testes do telescópio foram feitos na Suíça. Seus subsistemas principais, além da antena, são os receptores, o posicionador de precisão e a redoma protetora. Os receptores foram construídos sob encomenda pela RPG na Alemanha para operação em 212 GHz e 405 GHz. O posicionador foi feito pela Orbit, uma empresa de Israel, e a redoma transparente para o comprimento de ondas submilimétricas foi encomendada da ESSCO nos Estados Unidos. O posicionador atinge precisão de um segundo de arco, equivalente ao de uma pessoa observada a uma distância de seis quilômetros.
Absorção atmosférica
Conceber um equipamento no Brasil, arcar com a maior parte do seu financiamento e fazer sua instalação num sítio argentino pode parecer um contra-senso, à primeira vista. Mas, no caso de telescópios, não há alternativa. O Brasil não dispõe de pontos suficientemente elevados, secos e com longos períodos de céu claro exigidos por esses equipamentos. Radiotelescópios operando em outras freqüências podem até trabalhar sob céu encoberto, mas um equipamento preparado para o infravermelho é mais exigente.
O vapor d’água atmosférico tornaria o SST imprestável num sítio inadequado. A razão disso é que a água atmosférica absorve o infravermelho, deixando cego um telescópio que opere nessas freqüências. Numa região elevada, seca e de céu aberto, como o sítio andino de El Leoncito, no entanto, o equipamento cativou os técnicos.
Antes de se decidir pelo sítio argentino, Kaufmann e sua equipe consideraram a possibilidade de ele ser instalado nos Andes chilenos. Em Cerro Tololo, no Chile, estão os instrumentos ópticos do Observatório Interamericano e em La Silla, também no Chile, os equipamentos do Observatório Europeu para o Sul (ESO).
Havia a chance também de o instrumento ser instalado no Monte Graham, ou mesmo no famoso Kitt Peak, onde estão instalados equipamentos do Observatório Nacional Óptico e do Observatório Nacional de Radioastronomia dos Estados Unidos. Nessa região, no Arizona, está o conhecido telescópio solar com espelho de 200 centímetros de diâmetro. Ele capta a imagem do Sol e a envia por um túnel inclinado de 180 metros de comprimento. Um jogo de espelhos faz múltiplos desvios da imagem até ela chegar ao laboratório solar, onde estão os equipamentos de análise. Os instrumentos começaram a chegar em Kitt Peak em 1958 e agora somam 17 cúpulas, abrigando telescópios com espelhos que vão de 60 a 395 centímetros de diâmetro.
A decisão de instalar o projeto SST na Argentina resultou de uma oferta feita por Horácio Ghielmetti, diretor do Instituto de Astronomia y Física del Espacio, durante encontro da União Astronômica Internacional (UAI), em Buenos Aires, em 1991. Ghielmetti não pôde acompanhar o início da operação do radiotelescópio. Ele morreu em 1995.
Investigar o Sol em comprimentos de ondas curtas (30GHz e 90 GHz) já trouxe resultados animadores para a equipe que Kaufmann dirige no radiotelescópio de Itapetinga. Esse observatório está montado na concha protetora de um fundo de vale nas proximidades de Atibaia, 80 quilômetros ao norte de São Paulo.Em 1984, Kaufmann e sua equipe detectaram pulsos extremamente rápidos e altamente energéticos até então insuspeitos nas explosões que periodicamente cobrem a superfície solar.Em janeiro de 1985, o trabalho saiu publicado na prestigiosa revista britânica Nature . Uma das conseqüências dessa descoberta foi a atração de parceiros internacionais interessados na astrofísica solar, entre eles os pesquisadores da Universidade de Berna, que agora participa do desenvolvimento do SST.
Sol instável
Investigar o Sol tem diversas vantagens. A primeira delas é que essa estrela de 1,4 milhão de quilômetros de diâmetro e a 150 milhões de quilômetros – o outro lado da rua, numa escala comparativa de distâncias astronômicas – é a usina de força para a vida na Terra. Outra, para ficar em duas justificativas, é que o conhecimento da atividade solar pode fornecer indicações precisas para o funcionamento de estrelas distantes – supergigantes que podem ter mais de 300 vezes seu diâmetro, caso de Antares, o coração do Escorpião, ou corpos esmaecidos, situados no limite entre uma estrela e um planeta.
O próprio Sol, na classificação dos astrônomos, é uma anã amarela, um astro de média idade, que deve durar 5 bilhões de anos, além dos 5 bilhões em que já está ativo. Observações intensificadas a partir do século 17 revelaram um acúmulo periódico de pontos escuros na superfície do Sol. Mais recentemente, essas manchas foram associadas às explosões, e o sonho atual dos astrofísicos é desvendar os mecanismos de aceleração de partículas a energias muito elevadas durante as explosões solares.
Essas investigações exigem diagnósticos na freqüência do infravermelho. Eles também estreitam colaborações com outras áreas da ciência, como a climatologia, para estabelecer a relação entre explosões e comportamento climático na Terra. Equipes internacionais investigam, por exemplo, a relação entre ausência de manchas e temporadas mais frias e secas na Terra. Esse trabalho é inspirado num período conhecido como Mínimo de Maunder, entre 1645 e 1715.
Além das explosões, cujo máximo de ocorrência acontece no período médio de onze anos – o seguinte se inicia no próximo ano -, o Sol também tem uma oscilação em seu diâmetro. Os astrofísicos ainda não dispõem de um mapa das profundezas solares indicando como esses fenômenos podem estar associados e, por isso mesmo, na interpretação de Kaufmann, a entrada em operação de equipamentos como o SST, espreitando a estrela de uma janela em que ela não é usualmente observada, acena com perspectivas animadoras.
Explosões mais intensas na superfície solar podem produzir mais que bons resultados científicos. Elas podem também trazer problemas acompanhados de grandes prejuízos para empresas proprietárias de satélites de comunicações em órbita da Terra. Atingidos por jorros de partículas produzidas por essas explosões, o vento solar – fluxo de partículas emitidas pelo Sol e outras estrelas – é intensificado. O resultado disso são panes temporárias ou definitivas, interrompendo as comunicações internacionais.
Explosões anteriores, além das coloridas auroras polares, já protagonizaram enormes blecautes, pelas interferências nas linhas de transmissão de energia elétrica. E, ironicamente, derrubaram um instrumento posto em órbita exatamente para vigiar a atividade do Sol, o satélite norte-americano Solarmax, que caiu em dezembro de 1989. Dez anos antes, despencou o laboratório norte-americano Skylab pela mesma razão.
Frentes de trabalho
Além de ajudar a desvendar os mistérios do Sol, o SST trará pelo menos outras três contribuições interessantes, na interpretação de Kaufmann. Uma delas é de natureza tecnológica, envolvendo as pesquisas para a otimização operacional do equipamento. Uma segunda aplicação está prevista para a área de radiometeorologia.
Neste caso, assegura Kaufmann, a concepção do SST vai permitir investigações envolvendo a sazonalidade do vapor d’água atmosférico, um parâmetro com desdobramentos que vão da previsão do tempo a variações climáticas com implicações na atividade produtiva.Nas investigações na área de radiometeorologia Kaufmann prevê que será possível acompanhar a variação de monóxido de cloro atmosférico. Essa substância, de origem artificial, é o principal destruidor da camada de ozônio atmosférico.
Contribuição tecnológica
Para complementar os trabalhos do SST, Kaufmann já tem praticamente concluídos os planos para um experimento em satélite. Livre da absorção atmosférica, ele avalia que o experimento espacial potencializaria ao máximo o trabalho do SST. Esse equipamento, no entanto, está em fase preliminar. Satélites e câmaras de infravermelho estão desenhando uma nova imagem do céu. O Iras, sigla em inglês para Satélite Astronômico do Infravermelho, lançado em janeiro de 1983, detectou nuvens de poeira em torno de estrelas como Vega, alfa da Constelação de Lira, em meio a pelo menos 200 mil outras fontes de infravermelho.
O uso anterior desse comprimento de onda esteve limitado por dificuldades tecnológicas relacionadas à emissão dessa radiação pelos próprios instrumentos de pesquisa. Na astronomia óptica, as câmaras de infravermelho estão permitindo que os astrofísicos mergulhem mais profundamente em regiões como berçários de estrelas, cobertas por nuvens densas de gases e poeira interestelar.
No caso do SST, para ampliar sua performance futura, o equipamento deverá depender de seus próprios resultados. Por enquanto, ele é o único instrumento a vigiar o Sol dessa janela privilegiada.
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