Depois de ganhar o Quarto Prêmio Ford de Conservação Ambiental, na categoria Iniciativa do Ano em Conservação, em novembro, o programa Biota-FAPESP, o Instituto Virtual da Biodiversidade, recebeu, no início de dezembro, mais um aval importante: o dos pesquisadores estrangeiros que compõem seu Comitê Científico Consultivo. “É um programa empolgante, talvez único no mundo”, disse um deles, o professor Arthur Chapman, coordenador científico do Environmental Resources Information Network (ERIN), do governo australiano.
Chapman participou da primeira reunião de avaliação do programa, entre os dias 6 e 9 de dezembro, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), juntamente com o professor James Staley, do Departamento de Microbiologia da Universidade de Washington, em Seattle, e o professor Donald Potts, do Departamento de Ciências Terrestres e Marinhas da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. O quarto integrante do Comitê, o professor Barry Chernoff, não pôde vir ao Brasil para o encontro. Além dos cientistas estrangeiros, participaram da reunião os coordenadores dos 15 projetos temáticos do programa já em curso naquele momento (hoje são 18) e 11 pesquisadores com projetos em fase de avaliação na FAPESP (há agora um total de 21 projetos nesse estágio).
O ambicioso objetivo do Biota-FAPESP, lançado em 25 de março de 1999, é mapear e analisar o conjunto da fauna e da flora do Estado de São Paulo, desde os microorganismos até as formas de vida mais complexas encontradas nesse território de 250 mil quilômetros quadrados. E entre alguns resultados iniciais do programa, apresentados em Campinas, estão a identificação de compostos biológicos importantes para a indústria farmacêutica e a descoberta de novas espécies de peixes de água doce, além do término da estrutura básica do banco de dados do programa (ver mais detalhes na Pesquisa Fapesp 47).
Integração
“A avaliação mostrou que o programa é também muito saudável porque congrega projetos com enfoques diferentes”, diz o coordenador-geral do Biota-FAPESP, o professor Carlos Alfredo Joly, do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia da Unicamp. Mas justamente essa variedade de enfoques levantou entre os consultores estrangeiros uma certa preocupação quanto ao risco de dispersão do programa, caso seus vários projetos não sejam ligados de forma eficiente. Joly concorda. “Precisamos alinhavar todos os estudos para não perder o foco do programa”, diz.
De qualquer sorte, isso não parece difícil, dada a própria estrutura do programa, em rede virtual, seguindo o bem-sucedido modelo da rede Onsa, do Programa Genoma-FAPESP. Tal estrutura facilita o contato constante entre os pesquisadores por meio da Internet e desfavorece situações em que cada um volta-se apenas para suas preocupações. “O Biota proporciona a integração de informações e o uso de ferramentas comuns”, diz Joly. Entre essas ferramentas estão o sensoreamento remoto, ou seja, o uso de fotografias tiradas por satélites, e o amplo uso do GPS (Global Position System), sistema que permite a determinação exata da latitude e longitude de um local por meio de comunicações com uma rede de satélites. Esses novos métodos chegam em boa hora.
“A escala das mudanças é tão rápida e atinge áreas tão enormes que, usando apenas os métodos tradicionais, jamais conseguiríamos documentar o que está ocorrendo”, diz, por exemplo, o professor Potts. Documentar é exatamente uma das metas do Biota-FAPESP – e tornar disponíveis para governos e sociedade informações que possam ser usadas para proteger o que ainda resta da biodiversidade em São Paulo. Por isso as informações colhidas passam para um banco de dados, no qual mapas e modelagens mostram o que está acontecendo em cada parte do Estado de São Paulo com relação à biodiversidade. “Isso permitirá que seja determinada a localização numa área de uma espécie animal ou vegetal e que sejam traçados planos para protegê-la, se, por exemplo, houver a necessidade da construção de uma rodovia nesse local”, lembra o professor Joly.
Essa integração com a sociedade é um fator muito importante para os contatos entre os coordenadores, previstos para os próximos meses. “Vamos rediscutir continuamente o programa, no sentido da colaboração que podemos oferecer com relação ao avanço do conhecimento, ao aperfeiçoamento da legislação de conservação e à melhoria do ensino nesse campo, nos três níveis escolares”, afirma o professor da Unicamp. “Estaremos permanentemente definindo as metas e os impactos dos estudos do programa para a sociedade”, acrescenta.
Finda a reunião em Campinas, nenhum dos três consultores estrangeiros voltou imediatamente para seus países. Potts visitou o Centro de Biologia Marinha, em São Sebastião, onde conversou com uma equipe que aguarda a aprovação de um projeto sobre biodiversidade marinha para ingressar no programa Biota. Staley esteve na Fundação André Tosello, conversando com um grupo que trabalha em um projeto sobre ecologia molecular e taxonomia de bactérias com importância para o meio ambiente e a agroindústria. Quanto a Chapman, continuou em Campinas, conversando com o grupo que elabora o projeto do sistema de informação ambiental do programa. “No bom sentido, nós sugamos dele o máximo de informações”, comenta Joly. “E ele, certamente, aprendeu muito com a gente.”
No balanço sobre a reunião de avaliação, o coordenador do Biota-FAPESP pôde ainda comemorar “a forte impressão causada nos especialistas estrangeiros pelo grau de maturidade atingido na execução dos estudos feitos em tão curto espaço de tempo”, o reconhecimento explícito de todos três à importância do programa e sua admiração manifesta pela possibilidade de integração dos objetivos do programa com demandas da sociedade.
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A fonte de todos os remédios
O professor Arthur Chapman é coordenador científico do Environmental Resources Information Network (ERIN), organismo do governo australiano encarregado da coleta e distribuição de informações sobre o meio ambiente. O objetivo do ERIN, que funciona em Canberra, a capital do país, é dar subsídios ao governo para a formulação de políticas ambientais, fundamentadas em fatos e informações reais. “Aos políticos, cabe usar os fatos para a tomada de decisões políticas”, diz Chapman. Como pesquisador, seu principal interesse é o mapeamento de espécies em perigo.
Como funciona o ERIN?
O programa é antigo e irregular. Seus recursos vêm das verbas públicas para desenvolvimento da ciência. O programa ajudou muito a organizar o conhecimento sobre a biodiversidade no país, mas depende das verbas que recebe do governo, e elas dependem da prioridade que o governo quiser dar ao assunto.
Há semelhanças entre o ERIN e o Biota?
O Biota é um programa empolgante, talvez único no mundo. A segurança do financiamento permite o desenvolvimento de projetos em prazo muito curto. Impressiona como ele se desenvolveu em apenas dois anos, desde que começou a ser discutido, em Serra Negra. E é revigorante ver dezenas de pessoas se reunindo com seriedade, para estudar temas diversos e compartilhar informações de muitas disciplinas, da química, biologia e informática à lógica.
As experiências podem ser trocadas internacionalmente?
Acho que há enormes possibilidades. É importante que a política ambiental se baseie em informações científicas e um programa bem feito fornece-as em muito maior volume. É importante, então, ter uma política científica capaz de produzir informações sobre o meio ambiente.
E se ela não existir?
Nesse caso, simplesmente não saberemos o que está acontecendo. O grande problema, do ponto de vista mundial, é que a biodiversidade está desaparecendo de forma mais rápida que nossa possibilidade de conhecê-la. Nos últimos 300 anos, houve um grande esforço científico para tentar descrever a amplidão do mundo. Mas só conseguimos chegar a uma pequena fração do que existe. Agora corremos o risco de perder a biodiversidade.
O que aconteceria?
A biodiversidade é um recurso importante para todo o mundo. Por vários motivos. Mantém a temperatura média estável. Fornece recursos para a sobrevivência do homem. Afinal, tudo vem da biodiversidade. Todos os remédios vêm da biodiversidade. É importante entendê-la da maneira mais rápida possível, antes que ela desapareça.
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Sinais de perigo no gelo marinho
A principal área de interesse do pesquisador norte-americano James Staley, professor do Departamento de Microbiologia da Universidade de Washington, em Seattle, é a diversidade e a taxonomia dos micróbios. Nos últimos anos, ele vem dedicando atenção especial às chamadas comunidades do gelo, grupos de microorganismos que vivem no gelo marinho dos oceanos polares. Outras áreas de estudo do professor Staley são as diversidades de bactérias que compõem poluentes, especialmente os carbônicos do meio ambiente marinho, além da evolução e extinção de microorganismos em geral.
Qual a importância dos microrganismos do gelo marinho?
Eles têm uma importância muito grande. Um terço da produção primária das partes meridionais dos oceanos vem das comunidades do gelo, grupos de microorganismos que vivem no gelo marinho das regiões polares. Essas comunidades estão em perigo. Elas sentem os efeitos do aquecimento global sobre os pólos.
A situação é muito grave, então?
Sim. O acelerado crescimento da população humana e as práticas industriais e agrícolas estão levando a biodiversidade ao colapso. E acordos internacionais sobre o meio ambiente são importantíssimos para que isso não continue acontecendo.
Qual o papel do Brasil nesse contexto?
O Brasil é uma fonte excepcional de recursos da biodiversidade do planeta. O programa Biota vai ajudar a aumentar a compreensão da vasta e fascinante diversidade deste país.
O programa, então, é importante?
Sim. O programa não é um modelo apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro. Nos Estados Unidos, não temos um quadro tão claro sobre como abordar os problemas da biodiversidade.
E por que o Biota é um modelo?
Uma das vantagens do programa Biota-FAPESP é que ele se concentra num Estado de um país. Nos Estados Unidos, a maior parte das pesquisas é feita olhando-se os aspectos de toda a nação. Aqui no Brasil, há um grupo de cientistas, representando todas as disciplinas, que pode se encontrar numa sala e conversar. Não conseguiríamos fazer isso nos Estados Unidos. Realmente não conseguiríamos. E fico empolgado ao ver todo esse potencial do Biota, que é simplesmente maravilhoso. Podemos dizer que todos os aspectos da biodiversidade estão representados aqui.
Como é possível coordenar este programa de São Paulo com outros programas internacionais?
Eu acredito que o interesse de cientistas de vários outros países no Biota-FAPESP é muito grande. E existe um desejo natural de que programas desse tipo sejam realizados em conjunto. O intercâmbio de informações em bases mundiais é um assunto empolgante e, na minha opinião, deve ser livre e aberto. Na minha avaliação, o papel do Brasil é importantíssimo para que isso se torne realidade.
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Impacto sobre a população de corais
Donald Potts é professor de Biologia, diretor do programa Education Aboard e responsável pela Iniciativa Internacional da Biodiversidade Marinha do Departamento de Ciências Terrestres e Marinhas da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Sua principal área de trabalho é a ecologia e evolução das barreiras de coral e dos ecossistemas associados a essas estruturas. Também estuda o desenvolvimento de novas técnicas de sensibilidade de alta resolução para o mapeamento em escala dos organismos de ambientes biológicos. “Junto um trabalho de pesquisa em áreas pequenas, bem localizadas, com outro em áreas amplas, com centenas de metros quadrados”, comenta. “Procuro juntar técnicas novas a teorias tradicionais.”
Qual a importância de programas como o Biota?
A escala das mudanças na biodiversidade é tão rápida e atinge áreas tão grandes que, usando apenas os métodos tradicionais, jamais conseguiremos documentar o que está ocorrendo. Estou falando só do que está mudando, não do conhecimento global da biodiversidade. Mudanças excepcionalmente rápidas estão acontecendo, por exemplo, nas áreas onde ocorre a maior parte da população de corais do mundo. Nos países em desenvolvimento, onde muitas pessoas vivem da economia costeira, esses ecossistemas estão mudando rapidamente devido ao impacto humano, crônico e local. Mas as transformações não se limitam a essas áreas. Já se acredita que todos os ecossistemas onde vivem os corais estão mudando devido a transformações globais.
Como assim?
Veja, o aumento do dióxido de carbono na atmosfera faz com que a água dos oceanos se torne mais ácida. Pode ser que estejamos chegando a um ponto no qual se torna fisiologicamente difícil a produção de argonita, um mineral de carbonato de cálcio presente nos esqueletos dos corais. É possível que estejamos chegando a um ponto no qual não será mais possível produzir essa substância em quantidade suficiente. Os biólogos estão cada vez mais insistindo nisso. Comunidades costeiras que não deveriam mudar estão mudando. Sistemas inteiros estão sendo dominados por outros tipos de carbonato de cálcio, mais estáveis em águas ácidas, mas que não entram na composição dos esqueletos de corais.
O que isso significa?
É possível que a composição do conjunto da biodiversidade da Natureza esteja passando por uma completa transformação. Achamos que já existem sinais disso. Isso é um problema. Existem os efeitos locais da atividade humana, as conseqüências daquilo que as pessoas fazem diretamente com o meio ambiente. Mas também há coisas além do controle da sociedade. Os efeitos da emissão de dióxido de carbono para a atmosfera estão nesse caso. As conseqüências da poluição em geral, também.
Qual o potencial do programa Biota?
Em termos gerais, o programa Biota tem o potencial, embora local, em São Paulo, de transformar-se numa fonte responsável e objetiva de opiniões, informações, juízos e aconselhamento sobre assuntos ligados à biodiversidade e às conseqüências das mudanças no meio ambiente. Isso para toda a sociedade. Por isso, acho importante que o Biota seja visto sempre como independente. Não deve tomar partido em questões ambientais, mas apresentar resultados confiáveis, que sejam aceitos pela comunidade.
Há algo mais que o senhor gostaria de acrescentar sobre o programa?
Abordei um lado da questão. Há outro. Pelo que pude observar aqui em Campinas nesses últimos dias, o programa Biota me parece único. Há outros programas semelhantes, ao redor do mundo, mas nenhum tem potencial e características tão abrangentes.
Isso significa que o programa pode se tornar referência para iniciativas similares, inclusive internacionais?
Sim, acho que ele pode ser um modelo para outros programas não só no Brasil, mas no mundo. Se seu desenvolvimento prosseguir da forma como se apresenta hoje, creio que criará muitas oportunidades para que o Brasil desempenhe um papel importante no futuro da pesquisa da biodiversidade, em escala mundial.