Ao longo de uma peregrinação científica – que começou em Piracicaba nos anos 50 e prosseguiu em Rio Claro, Ribeirão Preto (SP), Manaus (AM), São Luís (MA) e Uberlândia (MG) -, o paulista Warwick Estevam Kerr tem exibido uma rara habilidade de criar e deixar raízes, na forma de equipes e linhas de pesquisa bem estruturadas que florescem mesmo depois que ele parte. Por causa desse carisma e de sua própria contribuição à Ciência brasileira, Kerr foi o homenageado no 46º Congresso Nacional de Genética, realizado em setembro em Águas de Lindóia, São Paulo. Nascido em Santana do Parnaíba em 1922 e formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), tornou-se uma das autoridades mundiais em genética de abelhas, a ponto de ser o primeiro cientista brasileiro eleito na Academia de Ciências dos Estados Unidos, em 1990.
Além de cuidar de sua própria produção, expressa em 622 artigos publicados em revistas especializadas do país e do exterior, soube fazer Ciência de modo ainda mais amplo: foi o primeiro diretor científico da FAPESP e está de volta à direção do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que havia dirigido nos anos 70. Nesta entrevista a Carlos Fioravanti, entre histórias e conselhos bem-humorados, Kerr fala de sua experiência à frente dessas instituições e da diretriz de seu trabalho: fazer a Ciência contribuir para o bem-estar do povo brasileiro. É uma preocupação tão intensa que em suas constantes viagens nunca deixa de levar punhados de sementes de moringa (Moringa oleifera), um arbusto cujas folhas, ele descobriu, são riquíssimas em vitamina A e as sementes, depois de moídas, têm o poder de limpar a água mais suja possível.
O senhor foi o primeiro diretor científico da FAPESP, entre 1962 e 1964. Que problemas enfrentou?
O primeiro problema foi uma pergunta subjetiva: “Será que eu estou fazendo certo?”. Com uma verba da Fundação Rockfeller, viajei para os Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Noruega, Suécia, França, Alemanha, Itália e Portugal. Queria ver como esses países faziam o financiamento à pesquisa científica. O sistema dos Estados Unidos era impraticável: o julgamento era muito caro, já que os assessores eram pagos. Optamos pelo processo de avaliação dos países mais pobres. Usei muito as ideias de Israel, mesmo sem ter ido para lá, e da Noruega. Israel estava em dificuldades econômicas, mas recebeu muito dinheiro de fora, e a Noruega em dificuldades econômicas, por causa da guerra. Mas os meios que tinham de gastar esse dinheiro eram muito sérios e mui-to bons.
Que ideias o senhor aproveitou desses países?
Uma das coisas que coloquei em prática foi que o projeto não precisava redundar diretamente no benefício do Estado de São Paulo. Mas o pesquisador tinha de estar prevenido e assinava um documento se comprometendo a fazer o possível para buscar o benefício científico do estado. A pesquisa também poderia ser feita fora de São Paulo, desde que favorecesse o estado. Um caso é a pesquisa do Vanzolini [Paulo Emílio Vanzolini, zoólogo]. Com um barco comprado pela FAPESP, ele rodou a Amazônia inteira à cata de lagartos e descobriu muitas coisas importantes, a ponto de fazer um panorama globalizado dos lagartos em todo o Brasil.
Como diretor científico, quais eram suas preocupações?
Minha primeira preocupação foi fazer um regimento interno, que depois foi aprovado pela Assembléia Legislativa. Eu contava com dois excelentes juristas, um era José Geraldo de Ataliba Nogueira, que era assessor jurídico da FAPESP, e o outro William Saad Hossne, seu diretor administrativo. Os dois faziam a lei e traziam para mim. Eu saía literalmente da sala, voltava e dizia: “Agora eu sou o usuário, quero saber como isso prejudica ou melhora minha atividade de cientista”. Dessa maneira foi feito não só o regimento, depois copiado por outras instituições, como também as próprias leis que regem a Fundação. A própria Constituição de São Paulo já dizia que era função da FAPESP executar pesquisas que favorecessem o estado de São Paulo. Também me preocupava muito com a agilidade no julgamento dos processos. Eu poderia decidir rapidamente se entendesse do assunto. Se não, teria de convocar assessores, especialistas no assunto. Nunca fizemos perseguição política. Schenberg [Mário Schenberg, físico, 1914-1990] era comunista e recebeu uma verba boa. O reitor da USP Miguel Reale era considerado de direita e também ganhou recursos para vários projetos.
Como era o ambiente político?
Na década de 60 havia a ditadura, que é sempre ruim para a universidade. Chamo de ditadura o períodoentre 1964 a 74. Geisel [Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979] acabou com a ditadura e começou uma abertura política maior. Veio um grupo de americanos, desses chamados brasilianistas, que queria exatamente mostrar que a ditadura foi a pior coisa que aconteceu no Brasil. De repente concluíram que para a universidade não foi. O governo militar criou uma universidade em cada estado. Não quer dizer que tenham bons professores, a ditadura sempre esquece que ter bons professores é essencial. Mas nunca houve outro governo que, em proporção à população, tivesse dado mais dinheiro para a pesquisa científica no Brasil. Mas, apesar do dinheiro e do progresso aparente, ditadura nunca é bom para a Ciência. Temos de ter liberdade de pensamento.
Que tipo de danos a ditadura causou à Ciência?
O primeiro dano foi a saída de pesquisadores do Brasil, que estão saindo agora por razões econômicas, não mais políticas. Mas ainda pagamos mais aos professores do que a Argentina e o Chile.
O que significava ser diretor científico da FAPESP naquela época?
O diretor científico tem muito poder. Sem querer ou querendo, corremos o risco de dirigir a Física, a Biologia, a Química do país numa só direção. Era uma responsabilidade muito grande – era, não; é. A do Perez [José Fernando Perez, atual diretor científico] é maior que a minha, porque ele administra um orçamento muito maior. Mas era também uma felicidade muito grande. Conheci praticamente todos os bons pesquisadores do estado e é muito bom ter umavisão globalizada do que o estado produz ou pode produzir e como a ciência pode se envolver em seu desenvolvimento.
Que ligação o senhor poderia estabelecer entre os momentos pioneiros da genética e a pesquisa genética atual?
As novas técnicas de seqüenciamento só melhoram o conhecimento sobre a biodiversidade, que sempre foi importante na minha vida. Mesmo assim, nem tudo é fácil. Tenho atualmente seis alunos, fazendo as mais diversas coisas. Um deles, Maurício Bezerra, fez doutoramento e agora é professor na Universidade Estadual do Maranhão. Ele está fazendo a caracterização e descrição das abelhas daquela região, de maneira morfológica e molecular. Mas a universidade em que ele está não tem muitos recursos. Eu aconselho: “Não desanime, continue trabalhando e use bem o pouco dinheiro que você está recebendo, que é dado pelo povo maranhense. E não se esqueça de que, além de sua pesquisa, você tem de fazer alguma coisa para as pessoas que pagam sua pesquisa também progredirem na vida”. Vivo lembrando: temos de trabalhar para o povo brasileiro.
Essa preocupação é comum?
Não, não é. Não sei por que, não sou sociólogo, mas nosso presidente não soube juntar o povo ao redor dele para realizar projetos melhores. Episódios como a venda da Vale do Rio Doce e a privatização de modo geral diminuíram muito o patriotismo. A gente perdeu muita coisa de que se orgulhava e não se orgulha mais. Sou absolutamente contra a globalização. Sou brasileiro. Não quero a globalização porque acho que está nos prejudicando demais! Prefiro pagar um pouquinho mais por um produto brasileiro do que pagar menos por um que veio da China ou veio não sei de onde… Meu compromisso é com o povo brasileiro. Há quem diga que sou fanático. Mas não. Estou simplesmente vendo como posso melhorar a vida do povo brasileiro. Cientista às vezes tem a ideia de que ele não tem nada a ver com o país…
Que conselho o senhor daria para quem está começando?
A primeira coisa é ter amor pelo povo que nos rodeia e gradualmente pensar o que pode fazer pelo bem dessas pessoas. Uns seis meses atrás, numa festinha, perguntaram para um caboclo lá do Inpa, Osmarino, aposentado: “Como é que deve ser feita a pesquisa?”. Ele pensou um pouco e respondeu: “Pesquisa tem que ser feita com muito amor”. Também recomendo a todos os meus alunos que tenham um caderninho de ideias. (tirando o dele, de capa azul) Aqui está. (lendo) Fazer uma linha de dois alelos… toda a ideia de como fazer abelhas que tenham alelos precisamente conhecidos. Investigar a respiração e a temperatura usando infra-vermelho e analisar o CO2 que sai da colônia. Esse caderninho tem umas quarenta ideias, dos últimos 15 dias. Antigamente eu fazia anotações em guardanapo e jogava dentro de um saco. Era o meu saco de ideias.
E encontrava as anotações?
Um dia uma senhora lá do Maranhão, pensando que estava fazendo bem, me comunicou: “Professor, o senhor me desculpe, não sei como ficou tanto tempo um saco de papel velho atrás da sua mesa, eu mesma levei ao incinerador e queimei tudo!”. “Obrigado”, eu disse, com um nó na garganta. Lá se foram 1.400 pesquisas boladas durante anos! Um exemplo, só para mostrar que a gente tem ideia o tempo todo: vimos lá fora uma planta amarela fantástica. Vi outra também muito bonita, há uns dez quilômetros daqui. Mas só vi duas. Por que não pegamos sementes dessas árvores e fazemos uma multiplicação de maneira a transformar a cidade, nessa época, numa cidade mais alegre? Aqui faltam árvores que dêem flor em várias épocas do ano. Outra coisa: sou um amante das abelhas brasileiras, nativas, sem ferrão. É importante que os professores falem delas, de maneira que todo aluno tenha umas 10, 20 ou 40 caixas em casa, a fim de manter a variabilidade local de abelhas, que estão desaparecendo. Cada vez que sefaz uma plantação de cana-de-açúcar, destruímos todas as abelhas sem ferrão. Mas se antes o pessoal coletar as abelhas das árvores que serão cortadas… Temos de marcar essas ideias e passar para o prefeito, que não é obrigado a ter todas as ideias boas do mundo.
E para os atuais chefes de equipe, o que o senhor recomenda?
A primeira coisa é ter capacidade, estudar bastante e investir em si mesmo e no seu preparo. Às vezes vejo pesquisadores reclamando que não têm dinheiro para trabalhar, mas tiveram para comprar um carro novo. Quando eu estava em Piracicaba, em vez de comprar um automóvel, comprei uma bicicleta e fazia assinatura de revista científica e comprava livros que iam para a biblioteca. É muito triste quando o aluno faz uma pergunta e o professor não pode dizer: “Agora eu não sei, mas amanhã eu lhe digo”. Melhor ainda é quando ele já sabe e responde imediatamente.
O que o senhor pretende fazer no Inpa?
O Inpa é um instituto de certa maneira bem dotado e bem formado. O diretor anterior, Ozório José de Menezes Fonseca, fez um bom trabalho. Agora é só tocar para frente, acrescentando algumas linhas de pesquisa e reduzindo outras. Preciso também melhorar alguns aspectos, porque recentemente vi uma crítica preocupante. A primeira coisa que se tem que dar atenção para manter uma floresta é a polinização. Sem polinização não há semente, nem frutos, nem dispersão do frutos. Mas recentemente foi rejeitado o financiamento para três projetos que tinham como âmago o estudo da polinização. Ou seja: as pessoas que estão olhando para os projetos não têm uma visão ecológica perfeita.
O que o senhor está pesquisando no momento?
Estou pesquisando fruteiras e hortaliças, como sempre. Já estou conseguindo uma variedade nova de tangerina, que agüente mais a seca. Peguei as boas tangerinas do Maranhão, que resistem a até seis meses de seca, e plantei lá em Uberlândia. Estou com 15 pés que vão variar, claro, porque foram plantadas de semente, mas são muito bons e já estão produzindo. Duas já deram fruta, foi ótimo. Este ano todas devem frutificar. Agora vou ver como eles se comportam na enxertia, que é uma necessidade na cultura da laranja. Depois vou oferecer essas tangerinas para todos os lugares que têm um período grande de seca. Outra fruteira queestou mexendo é o camu-camu, que na minha opinião deve ser distribuída para o mundo inteiro. Cada 100 gramas tem de 3.000 a 3.500 miligramas de vitamina C! Pretendo ampliar essa pesquisa e fazer com que mais pesquisadores se interessem por essa planta.
Tudo isso lá na Universidade de Uberlândia?
Sim. A pesquisa de fruteiras e hortaliças são pagas pela Fapemig [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais]. Nas hortaliças, estou trabalhando com alface, que todo mundo gosta de comer. Mas a alface mais consumida não chega a ter mil unidades internacionais de vitamina. A que estamos fazendo está com 10 mil. Duas folhas dela já fornecem toda a vitamina A de que uma pessoa precisa em um dia. Essa pesquisa já está com 16 anos. Já deu certo, mas continua porque temos de saber a que ela não é resistente.
Já foram publicados os resultados?
Ainda não publicamos nada porque tenho medo de uma firma grande e poderosa roubar a alface epôr certos marcadores genéticos que indiquem que ela é que fez. Quero fazer esses marcadores para que a alface seja facilmente identificável se ela for roubada. Não quero é que cobrem do caboclo. Pode até roubar, mas não quero que roubem do caboclo nem que me impeçam de distribuir minha própria semente.
Os marcadores substituem as patentes, de que o senhor não gosta, não é?
É verdade. Não gosto de patentes. Sou um velho socialista.