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Patentes

Apelo à Flexibilização

Regras para a propriedade intelectual acirram debate entre países ricos e pobres

LAURA BEATRIZA situação atual das patentes no mundo só pode ser definida como esquizofrênica. De um lado, seu uso como instrumento de proteção da propriedade intelectual e de estímulo à inovação tecnológica nunca foi tão pregado por ricos e pobres: a intenção da Organização Mundial de Comércio (OMC) é estender um mínimo de proteção patentária a todos os seus 142 países membros até 2006, e nações como o Brasil têm como meta quase obsessiva aumentar o número de patentes nacionais depositadas aqui e no exterior.

De outro, os países subdesenvolvidos parecem ter entrado numa luta mortal (por enquanto, relativamente bem-sucedida) para reduzir o monopólio patentário dos países ricos, principalmente nas áreas da biotecnologia e da indústria farmacêutica. A última vitória nessa guerra, por sinal, veio em outubro passado: durante a assembléia-geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em Genebra, na Suíça, os países pobres conseguiram deter o avanço de um projeto que pretende estabelecer um sistema global de patentes, abolindo as prerrogativas dos escritórios de patentes nacionais para aprovar ou negar determinado pedido.

A resposta para essa oscilação entre dois extremos pode estar num princípio muito citado nas cúpulas mundiais sobre desenvolvimento sustentável, em geral ignorado na prática: o das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. “Não estamos dizendo que os países pobres não deveriam obedecer às leis de patentes”, afirma John Barton, professor da Faculdade de Direito da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. “O que estamos dizendo é que as regras devem ser estabelecidas com os interesses deles em mente”, diz o advogado.

Barton coordenou a criação do relatório Integrando Direitos de Propriedade Intelectual e Política de Desenvolvimento, encomendado pelo governo britânico a uma comissão internacional de especialistas e concluído em setembro. A mensagem do texto, uma brochura de 200 páginas pesadas, mas elucidativas, é um chamado à flexibilização.”Chegamos a essa conclusão observando três pontos principais: em primeiro lugar, a eqüidade exige que os pobres paguem uma parcela menor dos custos de R&D [P&D ou “pesquisa e desenvolvimento, em inglês] do que os ricos. Em segundo lugar, países mais pobres freqüentemente não têm cientistas que possam ser beneficiados por regras de propriedade intelectual. E, finalmente, a história nos mostra que muitas das atuais nações desenvolvidas prosperaram em períodos de propriedade intelectual mais fraca”, afirma Barton.

Lições da História
De certo modo, a discussão sobre fortalecer ou flexibilizar o sistema de patentes não faria o menor sentido para os atuais países desenvolvidos se fosse colocada quando eles próprios ainda estavam subindoa rampa para o Primeiro Mundo. Quase todos, nessa fase de seu desenvolvimento, optavam por um modelo que privilegiava a incorporação da tecnologia alheia ao menor custo possível. Basta dizer que os Estados Unidos, até 1861, tentavam inibir o registro de patentes estrangeiras cobrando uma taxa dez vezes maior do que a exigida de inventores norte-americanos; até 1836, só eram concedidas patentes a naturais do país.

O crescimento econômico de países asiáticos, como Japão e Coréia do Sul, também esteve atrelado, na origem, a um sistema patentário mais frouxo. Para alguns tipos de produtos, o tempo de proteção não ia além de três anos, enquanto outros (como remédios e produtos químicos) só passaram a gozar de garantia patentária muito recentemente (no caso dos medicamentos no Japão, apenas em 1976). Não é à toa que, de acordo com estimativas feitas pelo Banco Mundial, a Coréia do Sul seria o maior perdedor com o estabelecimento de um sistema único de proteção patentária no mundo: os coreanos perderiam até US$ 15 bilhões anuais, enquanto os Estados Unidos seriam os maiores beneficiários, ganhando US$ 19 bilhões a mais por ano.

Batalha farmacêutica
Por enquanto, o campo de batalha no qual os países subdesenvolvidos estão conseguindo impor em bloco o seu poder de barganha é o da indústria farmacêutica. Mas não sem resistência, em especial dos Estados Unidos – embora o mundo subdesenvolvido responda por apenas 20% do mercado farmacêutico do planeta, essa porcentagem se refere a uma soma de US$ 406 bilhões anuais.

A política dos países mais importantes do bloco subdesenvolvido, notadamente Brasil e Índia, vem sendo ameaçar medicamentos caros, mas indispensáveis, como o coquetel de drogas anti-retrovirais usado para combater a Aids, com a chamada licença compulsória. Nesse caso, indústrias do país recebem permissão para produzir uma versão genérica do medicamento da multinacional. Por enquanto, só a ameaça já tem funcionado na maioria dos casos: para evitar a quebra de patente, as empresas farmacêuticas têm concordado em reduzir o preço de seus medicamentos.

A pressão para obter preços mais razoáveis tem, aparentemente, razão de ser: para um paciente dos países ricos, o coquetel anti-Aids custa US$ 10 mil anuais, enquanto os gastos para produzi-lo não ultrapassam US$ 500, de acordo com estudo do economista norte-americano Jeffrey Sachs, da Universidade de Harvard.

Os US$ 9.500 que sobram nessa conta, argumentam as multinacionais farmacêuticas, se referem aos gastos do setor com pesquisa – que chegam a US$ 20 bilhões por ano e cobrem testes com nada menos que 10 mil medicamentos para que cinco deles cheguem aos testes com humanos. Para recompensar esse esforço, a legislação norte-americana confere 20 anos de monopólio patentário a cada novo medicamento registrado.

Apesar de todos esses argumentos, porém, o desafio parece estar sendo vencido pelo outro lado: na última conferência mundial da OMC, realizada em Doha, no Qatar, em novembro do ano passado, os países pobres conseguiram incluir uma declaração de que a defesa da saúde pública não poderia ser impedida pelas determinações do Acordo sobre Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), na sigla em inglês, a Bíblia da OMC para a questão patentária. A inclusão da declaração em defesa da saúde pública foi considerada uma vitória do Brasil e seus aliados do Terceiro Mundo e do então ministro José Serra.

Para Barton, o resultado de Doha é um exemplo do caminho a seguir: “O sistema de propriedade intelectual é crucial para a indústria farmacêutica no mundo desenvolvido. Mas a extensão desse sistema para os países mais pobres, como os da África Subsaariana, por exemplo, traz pouco ou nenhum incentivo (a área responde por apenas 1% das vendas)”, afirma. De outro lado, a vitória também traz benefícios econômicos para países subdesenvolvidos, como a Índia, cuja indústria de genéricos é uma das maiores do mundo.

Patenteando a evolução
Está longe o tempo em que o cientista Jonas Salk, criador da primeira vacina a derrotar a paralisia infantil, respondeu com a frase: “Alguém pode patentear o Sol?” aos que sugeriram que ele reservasse direitos de propriedade intelectual sobre a sua descoberta. Uma batalha ainda indefinida nesse campo é saber se o avanço da biotecnologia e da engenharia genética vai transformar a patente de genes e até de organismos vivos inteiros em regra no mundo todo.

Quem deu início aos dilemas éticos ligados a essa questão foi a empresa norte-americana General Electric, que conseguiu, em 1980, a primeira patente sobre um ser vivo – no caso, uma bactéria geneticamente modificada pelo microbiologista indiano Ananda Chakrabarty para digerir petróleo. No rastro desse caso polêmico, que recebeu parecer positivo da Suprema Corte dos EUA depois de dez anos de debate, outras patentes vieram – dessa vez sem a desculpa ecologicamente correta de limpar derramamentos de petróleo. Tornou-se moda patentear genes dos mais variados organismos. Em 2000, somente a Celera Genomics (ex-empresa de seqüenciamento da estrela genômica Craig Venter) havia depositado 6.500 patentes referentes a genes no USPTO, o Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos (USPTO). A única exigência do órgão é que a função do gene seja conhecida.

A legislação brasileira e a da maioria dos países da América Latina proíbem o patenteamento de seres vivos no todo ou em parte – o que, claro, inclui genes. “Seria como patentear a tabela periódica”, costuma comparar Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e coordenador do Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Dessa forma, só seria possível patentear processos ou produtos (como diagnósticos ou medicamentos) baseados numa seqüência de DNA, uma vez que ela, por si só, poderia ser encontrada por qualquer um na natureza.

Mesmo assim, a pressão norte-americana para incluir seres vivos ou seus genes debaixo do guarda-chuva legal de um sistema global de patentes vem crescendo. Nesse ponto, a União Européia e sua política francamente contrária ao abuso genético se alinham à América Latina – como foi demonstrado na última assembléia da OMPI, em Genebra.Paradoxalmente, há um campo que a imensa maioria dos países pobres tem tentado incluir no sistema de proteção à propriedade intelectual, e não retirá-lo dele.

Trata-se do conhecimento tradicional sobre a biodiversidade nativa dos países megadiversos do Terceiro Mundo, uma área que se tornou o centro de muitas expectativas (quase sempre frustradas) desde a criação da Convenção da Biodiversidade, na esteira da Eco-92. Nesse documento (ratificado até hoje por 168 países, entre os quais não estão os EUA), estipula-se que produtos criados a partir do conhecimento de populações tradicionais sobre a biodiversidade deveriam render direitos de propriedade intelectual a esses povos – os quais teriam de ser informados previamente e concordar com o uso desses recursos. A realidade se mostrou muito aquém dessas boas intenções.

Até agora, não existem casos bem-sucedidos em queo consentimento prévio e informado e a repartição de benefícios para a comunidade ocorreram – em parte porque a dinâmica do conhecimento tradicional não se presta muito bem à transformação em patentes. “O caso hipotético clássico para explicar isso é o de uma tribo indígena que vive espalhada pela Amazônia colombiana e brasileira e usa determinada planta com potencial para gerar um remédio”, diz a bióloga Nurit Bensusan, da organização não-governamental Instituto Socioambiental (ISA). “Se uma empresa faz um acordo com a parte brasileira da tribo, tem de fazer com a parte colombiana também, que pode estar sob uma legislação totalmente diferente da brasileira,”  questiona a bióloga.

O futuro
A resposta ao dilema acima, assim como os que cercam a internacionalização cada vez maior do sistema patentário, só pode vir caso a caso, sugerem os especialistas. Apesar das vitórias farmacêuticas, o Brasil não poderá se esquivar indefinidamente de um regime de patentes mais rígido, afirma Zanotto. “Patentes devem ser respeitadas, a não ser em raros casos de epidemia ou catástrofe. O problema, então, resume-se a quem, com que velocidade e como julgar eventuais pedidos de quebra.

Que um órgão apropriado, como a própria OMC, crie um comitê de alto nível, representativo tanto dos países emergentes como dos desenvolvidos, que analise rapidamente, caso a caso, cada solicitação de quebra de patente.” Para o coordenador do Nuplitec, os países emergentes, como Índia e Brasil, também precisam fortalecer seu próprio sistema patentário.

Barton diz acreditar que o equilíbrio pode ser alcançado: “Doha mostrou que um meio-termo viável entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento é do interesse de todos. Não é esquizofrênico concluir que precisamos de mais propriedade intelectual em alguns contextos e menos em outros – o segredo é tornar ambas as partes do sistema apropriadas e efetivas”.

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