Foi como se a posteridade quisesse punir as malvadezas medievais de Joanna de Flandres, a mulher que renegou pai para não perder a coroa e o amante. A ópera que Carlos Gomes escreveu sobre ela em 1863 – e de certa forma foi seu “passaporte” para estudar na Itália – foi deixada pelo compositor no Brasil antes de ele partir para a Europa e amargou 140 anos de esquecimento total, não mais encenada desde a sua tormentosa estréia no Rio de Janeiro. Muitos chegavam mesmo a dá-la como perdida, o que ela nunca esteve. “Fim de um triunfiasco!”, anotou Gomes na última página de sua partitura, antevendo, sem querer, o futuro. Mas agora a moçoila terrível está de volta e em dose dupla.
A professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Lenita Waldige Mendes Nogueira acaba de compilar a versão integral de Joanna de Flandres, trabalho concluído com o apoio da FAPESP, ao mesmo tempo em que dois outros pesquisadores, Achille Picchi, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e o maestro Fábio Gomes de Oliveira, também terminaram a sua edição integral da ópera de Gomes, com apoio da Unisys e da Secretaria de Cultura do Estado.
O detalhe é que nenhum sabia do trabalho do outro. “Foi uma surpresa. Mas, como há várias edições de uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, não há mal em termos essas duas compilações de Joanna“, conta Lenita. Afinal, foram décadas de ausência. Em verdade, a partitura estava à disposição dos interessados, em forma de microfilme, nos acervos da Biblioteca Nacional (o ato I) e da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (do ato II ao ato IV). “Não sabemos por que estavam em arquivos separados, mas isso deve ter confundido os pesquisadores que a declararam perdida”, explica a professora.
Seja como for, não há mais desculpa para que orquestras e maestros não voltem a reviver a segunda ópera de Gomes, escrita (como a anterior, A Noite do Castelo, de 1861), sobre libreto em português de Salvador de Mendonça para Ópera Nacional, que tentava incentivar o gênero em língua portuguesa. Joanna foi o canto de cisne do projeto nacionalista musical de José Amat, criador da instituição.
A história, no entanto, não é das mais tropicais: Balduíno, pai de Joanna, e conde de Flandres, está desaparecido nas Cruzadas. A moça assume o poder e se apaixona por um trovador, Raul, e casa-se com ele. No momento em que o rapaz está para ser proclamado o novo senhor de Flandres, reaparece Balduíno. Sem querer perder o poder e o amante, Joanna chama-o de impostor e o aprisiona. Raul, arrependido, tenta convencê-la a libertar o pai e acaba por apunhalá-la.
Balduíno está livre, saudado pela multidão e chega a tempo apenas de ver a filhota morta e o “genro” se matar diante dele. Pano. “Gomes foi ousado ao musicar um drama sobre uma mulher má como Joanna, algo inédito para o tempo. Pegou gosto pela coisa e, depois, fez várias outras óperas com mulheres difíceis, como Fosca“, observa Lenita. “Musicalmente, a obra também é um progresso sobre A Noite do Castelo e já mostra traços do que seria Gomes mais tarde”, nota. “Embora ligada a uma estética algo passada já na época, há momentos muito bons, coros bonitos e uma orquestração mais avançada e menos ligada às modinhas, o que se observa na sua criação anterior.”
Há muito de Donizetti e Bellini, compositores que Gomes então admirava, na escrita de Joanna. “Mas”, observa o musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo, “a melodia dessa ópera, sem ter a preocupação de seguir as pegadas de modelos consagrados, tem momentos de abandono que deixa os céus mediterrâneos pela ardência dos trópicos e evoca, imprecisamente, qualquer coisa que está bem próxima de nós.”
Troca de ofensas
Para Lenita, Joanna de Flandres, prova do desejo de Gomes em superar os seus limites técnicos, sofre um pouco da ousadia do músico. “A partitura é muito irregular. O ato I é muito longo, quase metade de toda a ópera, com duetos enormes. Curiosamente, nos atos seguintes, como se ele quisesse compensar essa dimensão ou se sentisse cansado da partitura, a ação vai muito rápida. A morte da protagonista é curtíssima. Nesse todo, ainda pode estar faltando uma abertura da peça, talvez perdida. Pouco antes da estréia, o compositor e a produção da ópera trocaram ofensas em cartas publicadas nos jornais.
“Apelo para a lealdade que distingue o sr. Nicolai (o regente da produção em 1863), para que declare ante o público em que ponto a partitura da minha ópera sofre as suas correções, cortes e acréscimos, que não fossem por mim apontadas, ou sugeridos apenas por necessidade da execução”, disparou Gomes, enfurecido com o ritmo da produção, a falta de cantores, o despreparo da orquestra, as alterações feitas em sua partitura. Ele se mostrou furibundo até com o atraso do libretista em lhe enviar o texto para musicar.
Gênio difícil
A polêmica, fascinante, mostra a situação precária da cena musical carioca de então e o gênio difícil de Gomes, que seria testado várias vezes com o descaso dos teatros com suas óperas, mesmo em Il Guarany, estreado em 1870, no Scala, de Milão. Os produtores chegaram a organizar uma claque para vaiar a estréia de Joanna e destruir o compositor, sem sucesso. Em 15 de setembro de 1863 ela, por fim, foi encenada com a presença do imperador. No ano seguinte, Gomes embarcava para a Europa. Sem, no entanto, levar a partitura. “Creio que sabia não haver interesse por uma peça em português na Itália e talvez a considerasse uma obra indigna do futuro glorioso que esperava ter”, avalia a professora. Aqui contou mesmo foi o talento do músico.
Havia um decreto do Conservatório de Música do Rio de Janeiro que estabelecia como função dos mestres “propor ao governo, de cinco em cinco anos, o nome de algum aluno ou artista que se haja distinguido por seu talento transcendente a fim de ser mandado à Europa aperfeiçoar-se em música”. Foi com a ópera que o compositor conseguiu o direito de estudar no exterior e não por uma benesse de Pedro II. A maldade da moça foi a sorte do moço de Campinas.
O projeto
Restauração da ópera Joanna de Flandres de Carlos Gomes (nº 01/07227-3); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenadora Lenita Waldige Mendes Nogueira – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Investimento
R$ 23.894,00