MIGUEL BOYAYANNinguém permanece indiferente à presença do farmacologista Gilberto De Nucci. Alto, corpulento e de andar acelerado, De Nucci é dono de uma voz grave e um ar bonachão que o ajudam a fazer amigos quase com a mesma facilidade com que arruma desafetos. É que esse médico de 46 anos tem opiniões tão sólidas quanto polêmicas e não teme dizer o que pensa. “Ao menos dois terços dos medicamentos não produzem o efeito desejado”, afirma. De modo mais claro, teriam uma ação mais psicológica que farmacológica. Mesmo assim, ele defende o uso dos remédios: os maiores avanços da medicina se devem à adoção de novas drogas.
Atualmente De Nucci desenvolve três medicamentos. O primeiro a chegar ao mercado – possivelmente já em 2005 – é o lilafil, destinado a tratar a dificuldade de manter a ereção. Produzida por ele para o laboratório nacional Cristália, a molécula do lilafil é semelhante à do Viagra e começou a ser testada em seres humanos em agosto. O pesquisador trabalha ainda na síntese de um antiinflamatório e de uma nova classe de anti-hipertensivos.
Se suas idéias são controversas, sua competência é inegável: De Nucci é um dos pesquisadores mais produtivos do país. Desde 1985, publicou 217 artigos científicos em revistas internacionais. Hoje ele está entre os três pesquisadores brasileiros mais influentes, cujos trabalhos aparecem entre os mais citados por outros estudos, segundo levantamento da base de dados ISI Highly Cited, que inclui os 4.800 pesquisadores mais influentes de um total de 5 milhões de cientistas.
De Nucci já registrou 22 patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial e 8 na World Intellectual Property Organization. Também foi alvo de 12 processos judiciais, administrativos ou éticos. Segundo ele, o único que perdeu, em primeira instância, foi o movido por uma das instituições em que dá aulas – a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – por usar funcionários da universidade como voluntários em estudos clínicos. “Posteriormente ganhei a disputa no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo”, diz.
Formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), foi estudar farmacologia na Inglaterra por identificação pessoal com um de seus professores, o farmacologista Sergio Henrique Ferreira. Em 1986, De Nucci concluiu o doutorado no Royal College of Surgeons of England e, dois anos depois, publicou nos Proceedings of the National Academy of Sciences um de seus mais importantes artigos científicos sobre o papel da endotelina, hormônio vasodilatador liberado pela parede interna dos vasos sangüíneos.
Além de ensinar farmacologia na Unicamp, De Nucci dá aulas na Universidade de São Paulo (USP), onde ajudou a criar a Unidade Analítica Cartesius, responsável por 60% dos estudos de bioequivalência realizados no país. Como se fosse pouco, há dois anos abriu seu próprio laboratório de pesquisas em Campinas: o Galeno, no qual são feitos testes de bioequivalência de medicamentos e a análise de substâncias tóxicas em frangos e crustáceos destinados à exportação.
Há alguns meses, o senhor declarou numa entrevista que 80% dos medicamentos não funcionavam. Em dezembro passado, um dos vice-presidentes do laboratório GlaxoSmithKline, Allen Roses, disse ao jornal inglês The Independent que a maior parte dos remédios produzidos por sua empresa não atuava como se esperava em mais da metade das pessoas. O senhor poderia explicar melhor essa questão?
Pelo menos dois terços dos remédios atuam como placebo [substância inócua]. Não produzem efeito. Ou não há evidências científicas de que funcionem, pois não é possível avaliar a sua ação contra uma série de patologias. Imagine uma pessoa que sofreu derrame cerebral. Nesse caso, o efeito do medicamento depende de diversos fatores, como o tipo de derrame e a área afetada. Como não dá para saber como eram o comportamento e a memória antes do problema, é difícil saber se o remédio está auxiliando a recuperação. O mesmo acontece com o mal de Alzheimer. Dá-se o medicamento acreditando que a pessoa vá melhorar, mas não se tem certeza. Afinal, não sabemos como essa patologia surge. Sabemos como ela evolui, e medir se a evolução é melhor ou pior com o remédio é complexo. Não há evidência de que o remédio funcione contra a doença. Na verdade, nesse caso, isso nem é necessário.
Não é necessário?
Como no mal de Alzheimer há acúmulo de determinadas proteínas, basta mostrar que o medicamento diminui esse acúmulo [para que seja considerado útil]. Às vezes, nem se sabe se esse problema é realmente importante para o surgimento da doença. Mas, como não há modo de descobrir isso, o melhor é colocar a droga no mercado e verificar o que ocorre. Quando não se sabe se um remédio funciona é porque ainda não temos meios de verificar isso.
Mas não é preciso saber que o remédio ao menos não faz mal antes de receitá-lo?
Supostamente. São feitos testes clínicos para verificar se o medicamento, a priori, não faz mal. Agora isso não quer dizer que não surgirão efeitos indesejados quando administrado para seres humanos. Aceita-se esse risco.
Faz sentido receitar remédios assim?
Faz. E o pessoal receita assim mesmo. Há uma frase interessante sobre essa questão dita por Sir William Osler [médico canadense autor de The principles and practice of medicine, de 1892, referência na área de saúde no início do século 20 ]. Ele diz que a vontade de tomar medicamentos é talvez a principal característica que diferencia o ser humanos dos outros animais.
Mas há remédios que funcionam, cuja ação extrapola o efeito placebo.
Hoje existem medicamentos que realmente agem contra determinadas doenças. Com isso, ficam todos contentes: o paciente, que compra o remédio, e o médico, porque os estudos clínicos mostram que o efeito do medicamento é altamente significativo. Um exemplo é o uso da aspirina na prevenção do infarto. Diversos estudos mostram que, em certa dose, a aspirina reduz em quase três vezes a reincidência do problema. Mas é um benefício relativo, uma vez que 80% dos pacientes não sofreriam um novo infarto mesmo que não tomassem aspirina.
Nessa situação, é melhor consumir o remédio ou deixar de tomar?
Toda a lógica do sistema está justamente voltada para que se tomem medicamentos. Não estou dizendo que os remédios não sejam efetivos. Mas os melhores estudos clínicos mostram que, para 90% da população, os remédios não produzem benefício nenhum ou que raramente há benefício. Isso não significa que os medicamentos não tenham utilidade, mas que a porcentagem dos pacientes que se beneficiam é muito pequena, às vezes 2% ou 3%. Um exemplo? Um remédio conhecido para tratar diabetes, a acarbose, que não é absorvido pelo organismo e compete com a absorção de açúcar. De fato, com o remédio, a glicemia da pessoa não aumenta, mas estudos feitos na Alemanha – na Europa o pessoal é mais cuidadoso com isso – mostram que as pessoas morrem do mesmo jeito. O remédio não altera a evolução da doença.
Em tese, os médicos acompanham publicações específicas da área deles e têm de estar atualizados, saber o que é eficaz antes de dar para o paciente, não?
Na verdade, não. Os médicos são muito pouco científicos. A avaliação médica é subjetiva, apesar de as pessoas terem a fantasia de que os médicos apresentam uma atitude científica. A história mostra que não.
Mas o senhor não é médico?
Sou médico.
Quer dizer que os médicos fazem diagnóstico e receitam com base apenas nos resultados que vêem no consultório?
É difícil aplicar os métodos científicos usados em laboratório na prática da medicina. Em congressos se vê muita conduta baseada em critérios subjetivos, os médicos dizendo “como eu trato, como eu faço”. São decisões pessoais, sem nenhum tipo de raciocínio científico nem controle metodológico.
Eles não levam em consideração os trabalhos de medicina baseada em evidências, revisões que mostram se uma certa droga serve para tratar uma doença?
As pessoas chamam de medicina baseada em evidências ouevidence based medicine. Eu chamo de evidence biased medicine [medicina baseada em resultados tendenciosos]. As condutas da medicina baseada em evidências são definidas a partir de metaanálises: juntam-se os trabalhos sobre efeitos positivos e negativos de uma droga, na tentativa de descobrir sua eficácia real. Mas, é sabido, a probabilidade de estudos com resultados favoráveis serem publicados é maior que a de trabalhos com resultados desfavoráveis. Isso contamina as conclusões derivadas das metaanálises, daí a expressão evidence biased medicine.
Essa é uma questão importante. No exterior há um debate cada vez mais intenso sobre a obrigatoriedade de as empresas farmacêuticas tornarem públicos todos os resultados, inclusive os ruins.
Há uma confusão aqui. Tornar os dados públicos não implica divulgá-los em uma publicação científica. Os laboratórios têm de informar o resultado de todas as suas pesquisas, sejam favoráveis ou não ao seu produto, ao órgão regulatório, que, então, decide autorizar a venda do medicamento ou não.
Não é pouco? Não seria melhor publicar os estudos numa revista científica? Assim o médico que prescreve um remédio poderia ver esses dados.
Avalio trabalhos científicos e estudos clínicos e há uma diferença entre ambos. O órgão regulatório faz uma revisão do estudo clínico porque ali estão todos os dados brutos. No artigo científico não, aparecem só as tabelinhas e os gráficos, e se questiona isso. Mas no ideário das pessoas a indústria farmacêutica é bad boy, é gente que quer ganhar dinheiro. Como se todos trabalhássemos de graça…
Sem querer satanizar nem santificar ninguém, sabe-se que há procedimentos da indústria farmacêutica altamente condenáveis, como o pagamento de viagens e benefícios a médicos para que receitem os seus remédios. Na Itália, 4 mil médicos foram processados recentemente por isso.
Não estou santificando…
O modelo atual de trabalho da indústria farmacêutica não é ineficiente? Os laboratórios dizem que desenvolver uma droga pode custar US$ 800 milhões, pois é necessário criar centenas de moléculas antes que uma vire um produto comercial. É correto manter esse modelo?
É o modelo capitalista. A indústria farmacêutica visa ao lucro e seus produtos têm alto valor agregado. Ela só não cobra mais porque as pessoas não conseguem pagar.
É a lógica do mercado.
Exato. Por que a diária em um hospital privado de ponta é muito mais cara que a de outro não tão bem conceituado? Porque o primeiro tem seus custos, seu valor agregado e pronto. Sem entrar na questão do preço, o fato é que existem medicamentos bons, que ajudam a medicina avançar. Aliás, a medicina só progride com medicamento. O resto não conta muito.
Os procedimentos clínicos, a conversa com o paciente, não contam?
Bobagem. Medicamento é que realmente faz a diferença. E temos grandes medicamentos. Talvez o preço seja absurdo, mas representam grandes avanços. Além desses medicamentos importantes, há uma faixa enorme cujo valor é dúbio, a avaliação é complexa ou a prescrição é inadequada. Mas um terço é eficaz. Na verdade, ainda assim há dúvidas. São eficazes porque seguimos um determinado modelo de avaliação. Em outros modelos talvez não precisassem ser eficazes.
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, alguns antidepressivos estão sendo acusados de induzir ao suicídio e há quem diga que a indústria farmacêutica ocultou alguns dados sobre os seus produtos. Como um órgão público que zela pela qualidade dos remédios deve proceder num caso desses?
A preocupação fundamental do órgão não é que o medicamento funcione – acho que até perderam a esperança disso -, mas que ele não faça mal. Para a cultura americana, se uma droga não funciona é uma questão debatível. Mas, quando se prova que é nociva, o órgão regulatório passa a ser co-responsável ao lado da indústria farmacêutica. Então existe uma preocupação de fato com a segurança do medicamento. A eficácia, o mercado pode eventualmente ajudar a esclarecer.
Por que as pessoas deveriam tomar remédios de efeito duvidoso? Essa não é a lógica dos laboratórios? As pessoas não usam mais remédio que o necessário?
Sim, mas, como falei, existe um efeito placebo. Isso não significa que esse efeito não seja bom. Veja o caso dos anti-histamínicos. Se a pessoa é picada por pernilongo e está com coceira, você diz: “Toma logo o remédio senão não faz efeito”. A coceira passa antes de o medicamento ser absorvido, perde-se o remédio. Isso é complexo. Existe a noção de que medicamento é algo bom, mas, quando se procuram as evidências, poucas classes de drogas são eficazes.
Poderia dar exemplos de drogas realmente eficazes?
Quando eu era estudante de medicina, cirurgia de úlcera duodenal era freqüente. Havia várias técnicas de operação. Hoje toma-se Tagamet (cimetidina) ou Antak (ranitidina) e a úlcera cicatriza em três semanas. Ninguém mais sabe operar úlcera, é muito raro. Além disso, cirurgia nunca foi uma especialidade médica. Ela surgiu no século 19 e deve desaparecer no século 21.
O Sr. acha que a especialização em cirurgia está com os anos contados?
Em algumas especialidades, as cirurgias quase terminaram, pois houve uma redução drástica no número de procedimentos. Há cada vez menos cirurgias na urologia e na gastroenterologia. As cirurgias oncológicas ainda existem, mas eventualmente podem ser abandonadas. Hoje se trata tumor de próstata com calor, radioterapia ou medicamentos. Com exceção da área estética, cirurgia é algo pouco sofisticado.
Quanto custa desenvolver um remédio no Brasil? Não é mais barato que lá fora?
Com US$ 5 milhões é possível chegar a um me-too [cópia de um medicamento existente]. O me-too é um análogo estrutural, que permite escapar da lei de patentes no Brasil e em alguns países, mas não nos Estados Unidos. Lá são muito elevados os custos dos processos judiciais movidos pelo laboratório fabricante de um medicamento inovador, sob a alegação de similaridade da droga análoga. Aqui não. Estou fazendo isso com um produto do laboratório Cristália, o lilafil, que vem sendo chamado de Viagra brasileiro.
Quais tipos de medicamento o país poderia fazer com essa verba?
Aqueles que apresentam química pouco complexa e cuja síntese não é complicada. Se a obtenção da molécula for complexa, o preço será alto. Além disso, poderíamos fazer medicamentos cuja avaliação clínica não é cara, como o análogo do Viagra, em que se deseja saber se a pessoa tem ereção. É diferente de um tratamento para Alzheimer, em que é preciso tratar pacientes por um ano e fazer uma série de exames.
É comum pesquisadores brasileiros identificarem moléculas, mas não chegarem ao medicamento por falta de quem o financie. Por que isso ocorre?
Falta de interesse. Sou farmacologista. Minha formação foi na indústria farmacêutica e quero fazer medicamento, que é a forma que tenho de controlar um fenômeno biológico. Mas é necessário ver a viabilidade de se fazer isso. Aqui não há química de medicamentos, não se sintetizam remédios.
Por que isso não existe?
Perdemos o bonde. Nunca tivemos pessoal preparado. Como não tínhamos uma lei de patentes, a troco de que haveria interesse em sintetizar remédio se era possível copiar. E para copiar não se consegue competir em preço com países como a Índia e a China. Nesses países o custo da mão-de-obra é muito baixo e há o que chamo de subsídio ecológico.
Subsídio ecológico?
Exato. Veja o caso do rio Tietê. Por que o rio está desse jeito, poluído? Porque há um certo nível de prejuízo que se aceita. Para o Tietê ficar como o Tâmisa, de Londres, as indústrias terão de sair daqui e será necessário trataro esgoto. Há um custo. Na Europa não se consegue sintetizar uma molécula de medicamento. O custo é tão absurdo que não vale a pena. Vocês acham que, na Inglaterra, vão querer uma fábrica jogando dejetos químicos ali ao lado? A síntese de remédios para a Europa e os Estados Unidos é feita na Índia e na China. Cubatão, por exemplo, é do jeito que é porque existe um subsídio: “Pode produzir nesse local, fazer o que bem entender que a gente não liga.” É uma opção da sociedade.
Não seria, então, o caso de o Brasil também usar a China e a Índia para a síntese de remédio?
Não tem valor nenhum sintetizar medicamento. O problema não é a síntese, mas a propriedade intelectual que se gera. O knowledge é que tem valor. Mas acho complicado pegarmos esse bonde de novo. No Canadá, 80% das pessoas com idade entre 18 e 25 anos estão na universidade. No Brasil, esse número chega a 8%. O bonde vai passar mais longe. Somos muito mais subdesenvolvidos hoje do que há 20 anos.
A biodiversidade nacional não pode ser uma fonte de moléculas e extratos que seriam a base de novos remédios?
Essa é uma visão romântica.
O senhor não está subestimando o papel e o peso do país? A atuação internacional do Brasil não ajudou a baixar o preço de alguns remédios contra a Aids?
Não sei. Se fosse em futebol, estaria subestimando. Exceto isso, não vejo nada de excepcional aqui. Commodities? Talvez o Brasil tenha o maior rebanho de gado, talvez seja um dos maiores produtores de frango no mundo.n Seria interessante produzir um medicamento inteiramente nacional, da descoberta da molécula até a pílula?- Não. Acho uma burrice. O fundamental é o valor agregado, o conceito, a idéia da molécula. A segunda coisa mais importante na vida, depois da sua existência, o que é? Tempo. Quem faz isso bem? França, Itália, Hong Kong? Então vou produzir onde fazem bem e rápido.
Mas, nesse aspecto, o da idéia de novas moléculas, o Brasil não estaria bem? Afinal, os pesquisadores nacionais já publicaram diversos trabalhos sobre moléculas eficazes contra algumas doenças. Ou seja, o passo mais difícil, o fundamental, já não teria sido dado?
Creio que não. Provavelmente não terei mais emprego depois dessa resposta… Existe certo ufanismo em dizer que a produção científica brasileira é 1% dos trabalhos publicados.
Mas esse é o dado do ISI (Institute of Scientific Information), que, na verdade, estima que 1,5% dos artigos publicados em periódicos internacionas sejam de brasileiros. O senhor é um dos pesquisadores brasileiros mais citados, segundo o ISI.
Há uma lista de cientistas mais citados. Nela há três brasileiros: Boris Vargafgit, que morou a vida toda na França. O outro é um colega da Unicamp, Jorge Stolfi. Parte da minha produção também não é do Brasil, mas de quando eu estava na Inglaterra.
Analisando bem, grande parte da ciência norte-americana é feita por estrangeiros.
Sim, mas são estrangeiros que geram conhecimento lá. Essa questão é difícil. O salto que o Terceiro Mundo precisa dar é muito grande. No Brasil ainda persiste a visão de que tem de se fazer tudo aqui. Não funciona. Não é assim que se faz medicamento.
Como se deve fazer?
Há dois aspectos: um é desenvolver medicamento, o outro é preço. Uma coisa é querer desenvolver um medicamento porque é um investimento interessante do ponto de vista econômico e decidir como fazer isso. A segunda é viabilizar idéias para chegarem ao mercado e saber como se pode conseguir isso. Quando se consegue investir e criar o fato novo, seguramente haverá capital, seja do país, seja externo.
Para o produto chegar ao mercado…
Idéias boas e viáveis são poucas. Nesse aspecto, acho que a função do cientista que quer chegar lá é correr atrás. Se ele está vendendo o produto que criou, tem de saber quem pode comprá-lo.
Falta empreendedorismo na universidade?
Escritório de patentes em universidade é uma gelada, uma pá de cal sobre as universidades públicas. Passo longe para não brigar. Hoje esses escritórios estimulam a redação de patentes. Como menos de 0,01% das patentes é comercialmente viável, isso deve gerar uma grande despesa sem a necessária contrapartida. Nesse tipo de escritório, quem vai negociar com o laboratório é o economista, que não tem idéia de qual é a finalidade daquilo que foi criado. O cientista que deseja que sua descoberta chegue ao mercado é quem tem de saber quem procurar.
Para negociar com uma grande empresa é preciso ter noções de mercado e marketing. O escritório de patentes não teria um papel nisso tudo?
Tenho a impressão de que nosso sistema universitário ficou muito polarizado a respeito da questão do que é público e do que é privado. Acham que a indústria vai roubar. Em uma entrevista sobre o Viagra brasileiro, me perguntaram: “A universidade ficou com que parcela dos royalties?” Falei: “Com zero por cento”. “O senhor ficou com quanto?” “Também fiquei com nada, mas fui contratado como consultor para desenvolver o medicamento.” Foi o laboratório Cristália que fez a síntese da droga. Eles estão negociando o desenvolvimento. Ganhei como profissional para desenvolver o produto. A universidade não ganhou nada? Ganhou: não teve ônus e permitiu a criação de um medicamento.
Mas o senhor não usou nada da universidade?
Usei o meu tempo, sou pago também pela universidade.
Mais nada?
Fiz alguns experimentos na universidade.
A nova Lei de Inovação prevê que o professor de universidade pública também possa ter vínculo com empresas privadas.
Isso significa criar lei para tirar entraves de outras leis. É a visão de quem acha que a universidade está sendo prejudicada. Nunca geramos nada, essa é a grande verdade. E temos medo de criar algo porque vão roubar. Assim, é melhor fechar.
Não é necessário ter regras claras?
Não. É preciso ter resultados, não regras. Em vez de criar lei a toda hora, as pessoas devem deixar as coisas fluírem. Se a universidade não tem mecanismo legal para cobrar os royalties, não tem importância, porque a venda do novo remédio movimenta a economia do país. Alguma coisa entra na forma de ICMS para o Estado. Depois que houver resultados, a gente aprende a lidar com essa questão.
Então teria de haver alguma regra num segundo momento?
Num segundo momento. Certa vez fiz uma proposta à FAPESP. Por que não podemos vender para a indústria privada equipamentos caros que se tornam ultrapassados para fazer pesquisa? O laboratório da universidade ficaria com 50% da venda e a FAPESP, com os outros 50%. Mas isso não pode ser feito porque se trata de patrimônio público.
O senhor é a favor da existência de laboratórios públicos para a produção de remédios, como Far-Manguinhos?
Far-Manguinhos [Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz, no Rio de Janeiro ], Furp [Fundação para o Remédio Popular, no Estado de São Paulo], tudo isso deveria ser fechado o mais rápido possível. Acho um absurdo e já disse a eles. O laboratório Bristol-Myers Squibb produz o captopril em um ou dois lugares no mundo. No Brasil há uns 20 laboratórios oficiais fabricando esse medicamento. Economicamente não sai barato. Há mecanismos para um país modular o preço do medicamento. Mas não haverá remédio de graça. Há um erro estratégico do governo: não é função do governo produzir medicamentos.
É um problema de gestão?
A função do governo é assegurar à população o acesso aos medicamentos.
Como isso aconteceria?
Pode haver políticas de saúde em relação à indústria farmacêutica. Há vários modelos. Na França, o governo fala: “Vou pagar tanto por esse medicamento. Se vender por esse preço, compro e ofereço para a população”.
Joga-se com o poder de compra para baixar o preço.
Na Europa, as seguradoras de saúde pagam medicamentos genéricos para seus clientes. Se a pessoa não gosta de genérico e quer o de marca, paga a diferença. O governo pode organizar o mercado e parar de fornecer medicamentos que já deveriam ter sido proibidos porque fazem mal para o paciente. Costumo falar: “Função de médico é fazer diagnóstico e prescrever remédio. Indicar o tratamento correto”. Se o paciente pode ou não comprar o medicamento, nunca foi problema médico. Isso cabe a outro profissional.
A qual profissional?
Ao político, àquele que vai gerir sistemas de saúde, aos administradores hospitalares.
E se o paciente disser: “Custa R$ 100 e não tenho dinheiro”?
A função médica é diagnóstico e tratamento. Pára por aí.
É um problema de distribuição de renda e de ter um sistema que proteja as pessoas mais pobres.
Sim, mas não é função do médico proteger o doente. É aí que se fazem as maiores barbaridades.
O senhor acredita em homeopatia?
Não tenho evidências científicas de que funcione. Mas não trabalho com homeopatia. Quando o bioquímico francês Jacques Benveniste publicou aquele trabalho na Nature [em 1988, mostrando que a molécula de água seria capaz de armazenar informações sobre compostos nela diluídos], eu estava na Inglaterra. Perguntei a James Black, prêmio Nobel de Medicina em 1988, o que ele achava do estudo. Black comentou que outros trabalhos mostravam evidências sobre essa questão das alterações na molécula da água. Ele é um prêmio Nobel e não falou que era impossível. Conheço bem o Jacques. É um excelente cientista, descobridor, antes dessa história da homeopatia, de um composto importante: o PAF-aceter, um fator de ativação de plaquetas. Mas Jacques é um cara de esquerda, comunista, com idéias políticas contrárias ao establishment.
Ou seja, seu perfil desagradava muitos.
A esse respeito, há uma história engraçada. Na Inglaterra, Sir Cyril Burt [psicólogo morto em 1971] exerceu grande influência por alterar o sistema de educação do país. Com base em estudos com gêmeos idênticos, afirmava que a inteligência era determinada pela genética. Burt ganhou prêmios e morreu em glória, com colaboradores no exterior. Um estatístico norte-americano viu que era impossível chegar àqueles dados. Publicou um artigo e foi escorraçado. O que falava foi considerado um crime, como falar mal de Jesus Cristo? Foram ouvir os colaboradores de Burt. Mas eles não existiam.
As pessoas acreditam nas personalidades e não na ciência?
Acreditam no que querem acreditar. Depois que se descobre que um conceito está furado, todo mundo demonstra a mesma coisa. Mesmo que antes tivessem provado o contrário.