Quem vê uma montanha de areia em frente a um prédio em construção não imagina que ela esconde segredos de uma época em que as praias começavam a ser formadas por sedimentos arrastados ao sabor da flutuação do nível do mar. É a composição da areia que conta o enredo e o tempo dessa história, como vem descobrindo o físico Roberto Meigikos dos Anjos, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Paulistano formado em todos os estágios de graduação na Universidade de São Paulo (USP), Meigikos trocou os laboratórios da capital paulista pela praia fluminense. Em Niterói, seu trabalho começou com a medição da radioatividade natural da areia das praias e avaliação do risco de se usar essa areia na construção civil. Mais recentemente ele e sua equipe passaram a escrever uma espécie de história da formação do litoral brasileiro.
Algumas partes da costa norte do Rio apresentam uma concentração de elementos químicos radioativos que podem expor a população a uma dose de radiação natural de três a cinco vezes superior à média mundial, efeito que os pesquisadores costumam chamar de anomalia. O contato ocasional com essa radiação não chega a ser prejudicial para quem freqüenta a praia, mas se essa areia for usada em grande quantidade na construção de uma casa, por exemplo, pode trazer problemas de saúde para seus moradores. É que as pessoas ficam expostas permanentemente à radiação emitida pelos elementos enclausurados nas paredes. Intrigado com o nível de radiação detectado na areia de praias como Guaxindiba, no município de São Francisco de Itabapoana, Meigikos resolveu analisar outros pontos do litoral. Em diversas excursões, muitas vezes usando o seu próprio carro, ele e seus alunos recolheram amostras de areia de 50 praias de um trecho da costa que vai do norte do Espírito Santo ao sul de São Paulo. O alvo então já não eram mais as anomalias propriamente ditas, mas descobrir as origens daqueles sedimentos e os mecanismos que os transportaram até ali.
Estudando as correlações entre os elementos químicos radioativos tório, urânio e potássio, os pesquisadores conseguem traçar as propriedades mineralógicas da areia da praia, estimar o tipo de formação rochosa que a originou e dizer se esses sedimentos chegaram ali por ação dos ventos, dos rios ou arrastados pelas águas do oceano. Também permite avaliar se os sedimentos que hoje se depositam na orla marítima permaneceram muito tempo em ambientes terrestres ou ficaram submersos em águas profundas ou rasas. É uma informação relevante, uma vez que, no caso brasileiro, as flutuações do nível do mar foram importantes para moldar as planícies costeiras. Aqui as praias começaram a se formar nos últimos 18 mil anos – durante o período geológico Quaternário – e ainda hoje continuam em transformação. Durante esse período houve uma drástica variação no nível do mar, que ora expôs grandes áreas da plataforma continental, ora as deixou submersas. “Esse sobe-e-desce fez o oceano funcionar como um filtro, reprocessando os sedimentos que originam a areia das praias”, conta Meigikos.
De modo geral, a areia contém minerais leves, que se espalham nas águas mais superficiais, e pesados, que se concentram no fundo do oceano. As ondas e as correntes marítimas, porém, se encarregaram de reunir em algumas de nossas praias os minerais mais pesados – e também mais interessantes economicamente -, como ilmenita e rutilo, usados para a produção de pigmentos; o zircônio, que abastece a indústria siderúrgica; e a monazita, empregada na confecção de catalisadores. Esses minerais mais pesados contêm altas concentrações de tório e urânio, ao passo que os mais leves, como o quartzo e o feldspato, apresentam alto nível de potássio.
Na praia, todos esses minérios estão misturados. A cor da areia costuma ajudar a identificá-los – as mais escuras, num tom entre o vermelho e o preto, sinalizam maior presença de elementos pesados, enquanto a areia clarinha representa elementos mais leves. Só que dizer o que veio de onde não é tão simples assim. É aí que a técnica de radiometria de Meigikos entra em ação porque a identificação dos elementos radioativos ajuda a determinar o tipo de rocha que originou esses sedimentos.
Depois de analisar a areia de 50 praias, o grupo da UFF calculou a razão entre as concentrações dos elementos tório e urânio e entre tório e potássio das amostras. A primeira proporção ajuda a estimar os principais meios de transporte e o tempo que os sedimentos passaram debaixo d’água. Isso porque uma parte do urânio sofre oxidação e assume uma forma mais solúvel em contato com o ar – portanto, o sedimento que fica muito tempo exposto à atmosfera apresenta menor concentração de urânio -, ao passo que o tório é bastante estável.
Como conseqüência do comportamento distinto desses elementos, se a divisão de tório por urânio resultar em um número alto, é sinal de que o urânio passou muito tempo fora d’água e sofreu um intenso processo de oxidação. Meigikos avalia essa relação por meio de uma escala que vai de 0 a 7. Quando o resultado é maior que 7, significa que o sedimento passou muito tempo fora d’água, ou seja, o urânio se oxidou bastante. Entre 2 e 7, passou muito tempo em ambientes de águas rasas, como rios ou lagoas. Resultado menor que 2 indica que o sedimento passou a maior parte do tempo em águas profundas, onde o nível de oxigenação é menor.
A relação entre tório e potássio, por sua vez, permite contar outra parte da história. Quase todos os sedimentos que formam a areia da praia provêm da decomposição e da erosão das rochas ao longo de milhares de anos. O enigma, no entanto, é saber como eles chegaram à praia. Podem ter sido carregados por ventos e depositados diretamente na praia ou levados por rios até o mar, onde passaram um tempo sendo arrastados de um lado para o outro até se fixarem na praia. Os pesquisadores perceberam que, se a areia contém grande quantidade de potássio, esse sedimento provavelmente veio direto da rocha para a orla. Já se a quantidade de potássio é baixa, passou por várias outras etapas que levaram à decomposição desse elemento químico.
Praias com faixa de areia mais estreita, como as da região entre Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, e Angra dos Reis, no sul do Rio de Janeiro, possuem nível de potássio comparável ao de rochas graníticas. Para Meigikos, é um sinal de que a areia dessa região originou-se principalmente na serra do Mar – cadeia de rochas graníticas muito antigas, formadas há mais de 500 milhões de anos – e foi carregada para a costa pelo vento. Mas há exceções. Em Caraguatatuba e Ubatuba a areia foi arrastada pelos rios e passou muito tempo submersa em águas profundas antes de se depositar nas praias.
Em áreas com faixa de areia mais larga, comuns ao norte do Rio e no Espírito Santo, o nível de potássio é consideravelmente mais baixo. A explicação é que a areia dali veio de vastos depósitos de sedimentos que se acumularam entre 65 milhões e 2 milhões de anos atrás a alguns quilômetros do litoral. Rios como o Paraíba do Sul e o Doce transportam esses sedimentos até o oceano, onde permanecem longos períodos antes de chegarem às praias.
Mais do que esclarecer pontos da história geológica, a compreensão de como se formaram as praias pode resolver dúvidas sobre como se deu sua ocupação do litoral pelos primeiros brasileiros. Compreender a variação dos níveis do mar pode ajudar a entender as condições que propiciaram ou dificultaram a instalação humana do litoral muito antes da chegada dos europeus.
Os principais registros arqueológicos da presença de gente na região são os sambaquis, montes de até 30 metros de altura formados por conchas e areia ou terra, construídos ao longo da costa pelos primeiros povos nômades a habitarem o local. Datações feitas nos sambaquis indicam que a região teria sido ocupada há no máximo 6 mil anos, a data mais aceita por arqueólogos e antropólogos. Mas estudos recentes sugerem que os sambaquis podem ter até 8 mil anos.
Os críticos alegam que ao menos duas dessas datações são questionáveis. A mais antiga atribui ao sambaqui da praia de Camboinhas, em Niterói, a idade de aproximadamente 8 mil anos. Os geomorfologistas que discordam desses números afirmam que essa região de restinga, extensa faixa de areia que avança sobre o mar, formou-se mais tarde, há 5 mil anos. A técnica de radiometria de Meigikos pode contribuir com dados que corroborem a datação de Camboinhas.
O físico também pretende reunir elementos para confirmar a idade do sambaqui de Algodão, na baía de Ribeira, em Angra dos Reis. Datações feitas em 2002 por Meigikos e Kita Macário, também da UFF, e pela arqueóloga Tania Andrade Lima, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sugerem que esse sambaqui tenha sido construído há cerca de 7,8 mil anos. A partir da análise dos elementos radioativos encontrados na areia de Ribeira, os pesquisadores esperam descobrir se a região estava ou não submersa naquele período – e, portanto, se era viável construir sambaquis ali. “Vamos usar a correlação entre tório e urânio. Se o resultado for entre 2 e 7 ou superior a 7, é possível que houvesse gente vivendo ali naquela época”, explica o físico. Caso os sedimentos sejam provenientes principalmente de águas profundas, é quase impossível que o local tenha sido ocupado por grupos humanos.
Em parceria com a arqueóloga Ângela Buarque, da UFRJ, Meigikos tenta encontrar uma resposta para outro enigma: por que algumas regiões da costa fluminense não apresentam nenhum sambaqui. “A região dos Lagos é uma das mais ricas nesses montes de conchas, comuns em Búzios, Cabo Frio, Arraial do Cabo, Saquarema. Mas não existe nenhum sambaqui em Araruama”, diz Meigikos. “Os estudiosos sempre se perguntaram por quê. Meu palpite é que essa região, por alguma condição específica da natureza, ficou muito abaixo do nível do mar durante o período em que ocorreu esse tipo de ocupação, o que pretendemos responder analisando o teor de tório e urânio das areias de lá.” Em última instância, esse estudo pode fortalecer a idéia de que o litoral centro-sul brasileiro foi colonizado muito antes do que se acredita.
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